Resulta de tudo isto para o meu
esforço
que eu não intento nunca demasiadamente.
Pessoa - Livro do Desassossego
E eram outras que foram as paisagens que não vi nunca; eram novas sem terem sido as paisagens que deveras vi.
Que me importa?
Findei a acasos e interstícios, e, enquanto o fresco do dia é o do sol mesmo, dormem frios, no poente que vejo sem ter, os juncos escuros da ribeira.
[381]
Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogênio e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende — como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço — nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia.
O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade frusta numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.
E é isto que eu sinto ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trêmula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível, um tom algendo [sic] de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustas, tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de desolação.
Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um sol já submisso? Que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isto — céu, terra, mundo, — o que há em tudo isto não é senão eu!
[382]
Cheguei àquele ponto em que o tédio é uma pessoa, a ficção encarnada do meu convívio comigo.
[383]
O mundo exterior existe como um ator num palco: está lá mas é outra coisa.
[384]
e tudo é uma doença incurável.
A ociosidade de sentir, o desgosto de ter de não saber fazer nada, a incapacidade de agir, como um
[385]
Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu? Não se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação. Por vezes parecia mais uma doença dos olhos do que uma realidade da natureza.
Fosse o que fosse ia por toda a paisagem uma inquietação turva, feita de esquecimento e de atenuação. Era como se o silêncio do mau sol tomasse para seu um corpo imperfeito. Dir-se-ia que ia acontecer qualquer coisa e que por toda a parte havia uma intuição pela qual o visível se velava.
Era difícil dizer se o céu tinha nuvens ou antes névoa. Era um torpor baço, aqui e ali colorido, um acinzentamento imponderavelmente amarelado, salvo onde se esboroava em cor-de-rosa falso, ou onde estagnava azulescendo, mas aí não se distinguia se era o céu que se revelava, se era outro azul que o encobria.
Nada era definido, nem o indefinido. Por isso apetecia chamar fumo à névoa, por ela não parecer névoa, ou perguntar se era névoa ou fumo, por nada se perceber do que era. O mesmo calor do ar colaborava na dúvida. Não era calor, nem frio, nem fresco; parecia compor a sua temperatura de elementos tirados de outras coisas que o calor. Dir-se-ia, deveras, que uma névoa fria aos olhos era quente ao tato, como se tato e vista fossem dois modos sensíveis do mesmo sentido.
Nem era, em torno dos contornos das árvores, ou das esquinas dos edifícios, aquele esbater de recortes ou de arestas, que a verdadeira névoa traz, estagnando, ou o verdadeiro fumo, natural, entreabre e entrescurece. Era como se cada coisa projetasse de si uma sombra vagamente diurna, em todos os sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem lugar de projeção que a justificasse como visível.
Nem visível era: era como um começo de ir a ver-se qualquer coisa, mas em toda a parte por igual, como se o a revelar hesitasse em ser aparecido.
E que sentimento havia? A impossibilidade de o ter, o coração desfeito na cabeça, os sentimentos confundidos, um torpor da existência desperta, um apurar de qualquer coisa anímica como o ouvido para uma revelação definitiva, inútil, sempre a aparecer já, como a verdade, sempre, como a verdade, gêmea de nunca aparecer.
Até a vontade de dormir, que lembra ao pensamento, desapetece por parecer um esforço o mero bocejo de a ter. Até deixar de ver faz doer os olhos. E, na abdicação incolor da alma inteira, só os ruídos exteriores, longe, são o mundo impossível que ainda existe.
Ah, outro mundo, outras coisas, outra alma com que senti-las, outro pensamento com que saber dessa alma! Tudo, até o tédio, menos este esfumar comum da alma e das coisas, este desamparo azulado da indefinição de tudo!
[386]
Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos, na macieza estalante das folhas, que juncavam, amarelas e meio-verdes, a irregularidade do chão. Mas iam também disjuntos porque éramos dois pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que não éramos pisava uníssono o mesmo solo ouvido.
Tinha entrado já o princípio do outono, e, além das folhas que pisávamos, ouvíamos cair continuamente, no acompanhamento brusco do vento, outras folhas, ou sons de folhas, por toda a parte onde íamos ou havíamos ido. Não havia mais paisagem senão a floresta que velava todas. Bastava, porém, como sítio e lugar para os que, como nós, não tínhamos por vida senão o caminhar uníssono e diverso sobre um solo mortiço. Era — creio — o fim de um dia, ou de qualquer dia, ou porventura de todos os dias, num outono todos os outonos, na floresta simbólica e verdadeira.
Que casas, que deveres, que amores havíamos largado — nós mesmos o não saberíamos dizer. Não éramos, nesse momento, mais que caminhantes entre o que esquecêramos e o que não sabíamos, cavaleiros a pé do ideal abandonado. Mas nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do vento incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois, não sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabíamos se partíamos se chegávamos. E sempre, em torno nosso, sem lugar sabido ou queda vista, o som das folhas que escombravam adormecia de tristeza a floresta.
Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. A companhia que nos fazíamos era uma espécie de sono que cada um de nós tinha. O som dos passos uníssonos ajudava cada um a pensar sem o Outro, e os próprios passos solitários tê-lo-iam despertado. A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos uníssonos seguiam constantes, e em torno do que ouvíamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas caindo, na floresta tornada tudo, na floresta igual ao universo.
Quem éramos? Seríamos dois ou duas formas de um? Não o sabíamos nem o perguntávamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir, pois caminhávamos. Um mundo qualquer devia existir, pois existia uma floresta. Nós, porém, éramos alheios ao que fosse ou pudesse ser, caminheiros uníssonos e intermináveis sobre folhas mortas, ouvidores anônimos e impossíveis de folhas caindo. Nada mais. Um sussurro, ora brusco ora suave, do vento incógnito, um murmúrio, ora alto ora baixo, das folhas presas, um resquício, uma dúvida, um propósito que findara, uma ilusão que nem fora — a floresta, os dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual deles era, ou se era ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragédia de não haver nunca mais do que o outono e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre caídas ou caindo. E sempre, como se por certo houvesse fora um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silêncio rumoroso da floresta.
[387]
Suponho que seja o que chamam um decadente, que haja em mim, como definição externa do meu espírito, essas lucilações tristes de uma estranheza postiça que incorporam em palavras inesperadas uma alma ansiosa e malabar. Sinto que sou assim e que sou absurdo. Por isso busco, por uma imitação de uma hipótese dos clássicos, figurar ao menos em uma matemática expressiva as sensações decorativas da minha alma substituída. Em certa altura da cogitação escrita, já não sei onde tenho o centro da atenção — se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que, querendo descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coisas. Formam-se em mim associações de ideias, de imagens, de palavras — tudo lúcido e difuso —, e tanto estou dizendo o que sinto, como o que suponho que sinto, nem distingo o que a alma me sugere do que as imagens, que a alma deixou cair, me enfloram no chão, nem até, se um som de palavra bárbara, ou um ritmo de frase interposta, me não tiram do assunto já incerto, da sensação já em parque, e me absolvem de pensar e de dizer, como grandes viagens para distrair. E isto tudo, que, se o repito, deveria dar-me uma sensação de futilidade, de falência, de sofrimento, não conseguem senão dar-me asas de ouro. Desde que falo de imagens, talvez porque fosse a condenar o abuso delas, nascem-me imagens; desde que me ergo de mim para repudiar o que não sinto, eu o estou sentindo já e o próprio repúdio é uma sensação com bordados; desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo clássico, um adjetivo espacial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver clara diante de mim a página escrita dormentemente, e as letras da minha tinta da caneta são um mapa absurdo de sinais mágicos. E deponho-me como à caneta, e traço a capa de me reclinar sem nexo, longínquo, intermédio e súcubo, final como um náufrago afogando-se à vista de ilhas maravilhosas, em aqueles mesmos mares dourados de violeta que em leitos remotos verdadeiramente sonhara.
[388]
Tornar puramente literária a receptividade dos sentidos, e as emoções, quando acaso inferiorizem, convertê-las em matéria aparecida para com elas estátuas se esculpirem de palavras fluidas e lambentes [sic].
[389]
O lema que hoje mais requeiro para definição do meu espírito é o de criador de indiferenças. Mais do que outra, queria que minha ação pela vida fosse de educar os outros a sentir cada vez mais para si próprios, e cada vez menos segundo a lei dinâmica da coletividade… Educar naquela antissepsia espiritual pela qual não podia haver contágio de vulgaridade, parece-me o mais constelado destino do pedagogo íntimo que eu queria ser. Que quantos me lessem aprendessem — pouco embora, como o assunto manda — a não ter sensação nenhuma perante os olhares alheios e as opiniões dos outros, esse destino engrinaldaria suficientemente a estagnação da minha vida. A impossibilidade de agir foi sempre em mim uma moléstia com etiologia metafísica. Fazer um gesto foi sempre, para o meu sentimento das coisas, uma perturbação, um desdobramento, no universo exterior; mexer-me deu-me sempre a impressão que não deixaria intactas as estrelas nem os céus sem mudanças. Por isso a importância metafísica do mais pequeno gesto cedo tomou um relevo atônito dentro de mim. Adquiri perante agir um escrúpulo de honestidade transcendental, que me inibe, desde que o fixei na minha consciência, de ter relações muito acentuadas com o mundo palpável.
[390]
Saber ser supersticioso ainda é uma das artes que, realizadas a auge, marcam o homem superior.
[391]
Desde que, conforme posso, medito e observo, tenho reparado que em nada os homens sabem a verdade, ou estão de acordo, que seja realmente supremo na vida ou útil ao vivê-la. A ciência mais exata é a matemática, que vive na clausura das suas próprias regras e leis; serve, sim, de, por aplicação, elucidar outras ciências, mas elucida o que estas descobrem, não as ajuda a descobrir. Nas outras ciências não é certo e aceito senão o que nada pesa para os fins supremos da vida. A física sabe bem qual é o coeficiente da dilatação do ferro; não sabe qual é a verdadeira mecânica da constituição do mundo. E quanto mais subimos no que desejaríamos saber, mais descemos no que sabemos. A metafísica, que seria o guia supremo porque é ela e só ela que se dirige aos fins supremos da verdade e da vida — essa nem é teoria científica, senão somente um monte de tijolos formando, nestas mãos ou naquelas, casas de nenhum feitio que nenhuma argamassa liga. Reparo, também, que entre a vida dos homens e a dos animais não há outra diferença que não a da maneira como se enganam ou a ignoram. Não sabem os animais o que fazem: nascem, crescem, vivem, morrem sem pensamento, reflexo ou verdadeiramente futuro. Quantos homens, porém, vivem de modo diferente do dos animais? Dormimos todos, e a diferença está só nos sonhos, e no grau e qualidade de sonhar. Talvez a morte nos desperte, mas a isso também não há resposta senão a da fé, para quem crer é ter, a da esperança, para quem desejar é possuir, a da caridade, para quem dar é receber.
Chove, nesta tarde fria de inverno triste, como se houvesse chovido, assim monotonamente, desde a primeira página do mundo. Chove, e meus sentimentos, como se a chuva os vergasse, dobram seu olhar bruto para a terra da cidade, onde corre uma água que nada alimenta, que nada lava, que nada alegra. Chove, e eu sinto subitamente a opressão imensa de ser um animal que não sabe o que é, sonhando o pensamento e a emoção, encolhido, como num tugúrio, numa região espacial do ser, contente de um pequeno calor como de uma verdade eterna.
[392]
O povo é bom tipo.
O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada tanto quanto possível, dos interesses alheios.
Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira ciência, cessam as agências principais, de cuja existência a civilização deriva.
Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a renegação do que fui ontem, de quem fui ontem? Existir é desmentir-se. Não há nada mais simbólico da vida do que aquelas notícias dos jornais que desmentem hoje o que o próprio jornal disse ontem.
Querer é não poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer. Creio que estes princípios são fundamentais.
[393]
Reles como os fins da vida que vivemos, sem que queiramos nós tais fins.
A maioria, se não a totalidade, dos homens vive uma vida reles, reles em todas as suas alegrias, e reles em quase todas as suas dores, salvo naquelas que se fundamentam na morte, porque nessas colabora o Mistério.
Ouço, coados pela minha desatenção, os ruídos que sobem, fluidos e dispersos, como ondas interfluentes ao acaso e de fora como se viessem de outro mundo: gritos de vendedores, que vendem o natural, como hortaliça, ou o social, como as cautelas; riscar redondo de rodas — carroças e carros rápidos por saltos —; automóveis, mais ouvidos no movimento que no giro; o tal sacudir de qualquer coisa pano a qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada do andar alto; o gemido metálico do elétrico na outra rua; o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos; princípios, meios e fins de vozes — e tudo isto existe para mim, que durmo pensá-lo, como uma pedra entre erva, em qualquer modo espreitando de fora de lugar.
Depois, e ao lado, é de dentro de casa que os sons confluem com os outros: os passos, os pratos, a vassoura, a cantiga interrompida (meio fado); a véspera na combinação da sacada; a irritação do que falta na mesa; o pedido dos cigarros que ficaram em cima da cômoda — tudo isto é a realidade, a realidade anafrodisíaca que não entra na minha imaginação.
Leves os passos da criada ajudante, chinelos que revisiono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o som toma qualquer coisa da trança encarnada e preta; seguros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sai e se despede alto, com o bater da porta cortando o eco do logo que vem depois do até; um sossego, como se o mundo acabasse neste quarto andar alto; ruído de louça que vai para se lavar; correr de água; “então não te disse que”… e o silêncio apita do rio.
Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tempo, entre sinestesias. E é prodigioso pensar que eu não quereria, se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve vida que estes lentos minutos, esta nulidade do pensamento, da emoção, da ação, quase da mesma sensação, o ocaso-nato da vontade dispersa. E então reflito, quase sem pensamento, que a maioria, se não a totalidade, dos homens assim vive, mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a mesma modorra para os fins últimos, o mesmo abandono dos propósitos formados, a mesma sensação da vida. Sempre que vejo um gato ao sol lembra-me a humanidade. Sempre que vejo dormir lembro-me que tudo é sono. Sempre que alguém me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão sonhar. O ruído da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e tocam a campainha.
O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os passos cessam no fim do corredor. Os pratos lavados erguem a voz de água e louça. [. . . ]
[394]
E assim como sonho, raciocino se quiser, porque isso é apenas uma outra espécie de sonho.
Príncipe de melhores horas, outrora eu fui tua princesa, e amamo-nos com um amor doutra espécie, cuja memória me dói.
[395]
De suave e aérea a hora era uma ara onde orar. Por certo que no horóscopo do nosso encontro benéficos conjuntos culminavam. Tal, tão sedosa e tão sutil, a matéria incerta de sonho visto que se intrometia na nossa consciência de sentir. Cessara por completo, como um verão qualquer, a nossa noção ácida de que não vale a pena viver. Renascia aquela primavera que, embora por erro, podíamos pensar que houvéssemos tido. No desprestígio das nossas semelhanças os tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre árvores, e as rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de viver — tudo irresponsavelmente.
Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma névoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estremecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o nosso julgar ali estremecimentos. Púrpuras distantes, sombras fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte o complete, raios de sol mortiço, a lâmpada da casa na encosta, a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a vida lá fora, árvores cheirando a verdes na imensa noite mais estrelada do outro lado do monte. Assim as tuas agruras tiveram o seu consórcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de régio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as verdadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo, deixando só as sombras, e os engastes, mágoas das águas nos lagos aziagos entre buxos por portões (à vista de longe) Watteau, a angústia, e nunca mais. Milênios, só os de vires, mas a estrada não tem curva, e por isso nunca poderás chegar. Taças só para as cicutas inevitáveis — não as tuas, mas a vida de todos, e mesmo os lampiões, os recessos, as asas vagas, ouvidas só, e com o pensamento, na noite inquieta, sufocada, que minuto a minuto se ergue de si e avança pela sua angústia fora. Amarelo, verde-negro, azul-amor — tudo morto, minha ama, tudo morto, e todos os navios aquele navio sem partir! Reza por mim, e Deus talvez exista por ser por mim que rezas. Baixinho, a fonte longe, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a memória turva, o rio afastado… Dá-me que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Desígnios Incertos, Mãe das Carícias e das Bênçãos inconciliáveis com existirem…
[396]
Depois que as últimas chuvas deixaram o céu e ficaram na terra — céu limpo, terra úmida e espelhenta —, a clareza maior da vida que com o azul voltou ao alto, e na frescura de ter havido água se alegrou em baixo, deixou um céu próprio nas almas, uma frescura sua nos corações.
Somos, por pouco que o queiramos, servos da hora e das suas cores e formas, súditos do céu e da terra. Aquele de nós que mais se embrenhe em si mesmo, desprezando o que o cerca, esse mesmo se não embrenha pelos mesmos caminhos quando chove do que quando o céu está bom. Obscuras transmutações, sentidas talvez só no íntimo dos sentimentos abstratos, se operam porque chove ou deixou de chover, se sentem sem que se sintam porque sem sentir o tempo se sentiu.
Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colônia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente. Neste mesmo momento, em que escrevo, num intervalo legítimo do trabalho hoje escasso, estas poucas palavras de impressão, sou o que as escreve atentamente, sou o que está contente de não ter nesta hora de trabalhar, sou o que está vendo o céu lá fora, invisível de aqui, sou o que está pensando isto tudo, sou o que sente o corpo contente e as mãos ainda vagamente frias. E todo este mundo meu de gente entre si alheia projeta, como uma multidão diversa mas compacta, uma sombra única — este corpo quieto e escrevente com que reclino, de pé, contra a secretária alta do Borges onde vim buscar o meu mata-borrão, que lhe emprestara.
[397]
Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra — ou antes, de luz e de menos luz —, a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende — não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, esperança — estão ligadas em música pela mesma intenção melódica; estão ligadas na alma pela mesma memória de uma igual intenção. Não: se a mim mesmo observo, como observo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. A razão também vê a aurora. A esperança que pus nela, se a houve, não foi minha; foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a quem encarnei, sem querer, o entendimento exterior neste momento.
Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me promete mais que o dia, e eu sei que ele tem decurso e fim. A luz anima-me mas não me melhora, que sairei de aqui como para aqui vim — mais velho em horas, mais alegre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que há-de morrer. Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é como de um campo de casas — é natural, é extensa, é combinada. Mas, ainda no ver disto tudo, poderei eu esquecer que existo?
A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim.
Lembro-me de repente de quando era criança, e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste… A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por detrás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.
Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. No meu sangue corre até a menor das paisagens futuras, e a angústia do que terei que ver de novo é uma monotonia antecipada para mim.
E debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma — a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.
[398]
Tenho por intuição que para as criaturas como eu nenhuma circunstância material pode ser propícia, nenhum caso da vida ter uma solução favorável. Se já por outras razões me afasto da vida, esta contribui também para que eu me afaste. Aquelas somas de fatos que, para os homens vulgares, inevitabilizariam o êxito, têm, quando me dizem respeito, um outro resultado qualquer, inesperado e adverso.
Nasce-me, às vezes, desta constatação, uma impressão dolorosa de inimizade divina. Parece-me que só por um ajeitar consciente dos fatos, de modo a que me sejam maléficos, a série de desastres, que define a minha vida, me poderia ter acontecido.
Resulta de tudo isto para o meu esforço que eu não intento nunca demasiadamente. A sorte, se quiser, que venha ter comigo. Sei de sobra que o meu maior esforço não logra o conseguimento que noutros teria. Por isso me abandono à sorte, sem esperar muito dela. Para quê? O meu estoicismo é uma necessidade orgânica. Preciso de me couraçar contra a vida. Como todo o estoicismo não passa de um epicurismo severo, desejo, quanto possível, fazer que a minha desgraça me divirta. Não sei até que ponto o consigo. Não sei até que ponto consigo qualquer coisa. Não sei até que ponto qualquer coisa se pode conseguir…
Onde um outro venceria, não pelo seu esforço, mas por uma inevitabilidade das coisas, eu nem por essa inevitabilidade, nem por esse esforço, venço ou venceria.
Nasci talvez, espiritualmente, num dia curto de inverno. Chegou cedo a noite ao meu ser. Só em frustração e abandono posso realizar a minha vida.
No fundo, nada disto é estoico. É só nas palavras que há a nobreza do meu sofrimento. Queixo-me, como uma criada doente. Ralo-me como uma dona de casa. A minha vida é inteiramente fútil e inteiramente triste.
[399]
Como Diógenes a Alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol. Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los. O que achei, mais valeria tê-lo realmente achado. O sonho
Tenho construído em passeio frases perfeitas de que depois me não lembro em casa. A poesia inefável dessas frases não sei se será parte do que foram, se parte de não terem nunca sido.
Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco, como linha reta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha reta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo ativamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejei sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tato; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.
Nunca soube se era demais a minha sensibilidade para a minha inteligência, ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma ou outra, ou foi a terceira que tardou.
Dos sonhadores de ideais [? ] — socialistas, altruístas, humanitários de toda espécie — tenho a náusea física, do estômago. São os idealistas sem ideal. São os pensadores sem pensamento. Querem a superfície da vida por uma fatalidade de lixo, que boia à tona de água e se julga belo, porque as conchas dispersas boiam à tona de água também.
[400]
Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.
Como quem visita um lugar onde passou a juventude consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar da minha vida em que era meu uso fumá-los. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.
Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso de recordações que os estremece. A infância! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre de soldados de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao meu sabor a minha felicidade passada, a minha infância ida, e pertenço voluptuosamente à suavidade da minha dor.
Nem por simples é menos solene este meu ritual do paladar.
Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstrói momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter paladar. Por isso mais em grupo e transferência me evoca as horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as corporizo. Um cigarro ao mentol, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que sutil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto outra vez as cores de um passado, tão século dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo irremediavelmente perdido.
[401]
Criei para mim, fausto de um opróbrio, uma pompa de dor e de apagamento. Não fiz da minha dor um poema, fiz dela, porém, um cortejo. E da janela para mim contemplo, espantado, os ocasos roxos, os crepúsculos vagos de dores sem razão, onde passam, nos cerimoniais do meu descaminho, os perigos, os fardos, os falhanços da minha incompetência nativa para existir. A criança, que nada matou em mim, assiste ainda, de febre e fitas, ao circo que me dou. Ri dos palhaços, sem haver cá fora do circo; põe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem vê ali toda a vida. E assim, sem alegria, mas contente, entre as quatro paredes do meu quarto dorme, por inocência, com o seu pobre papel feio e gasto, toda a angústia insuspeita de uma alma humana que transborda, todo o desespero sem remédio de um coração a quem Deus abandonou.
Caminho, não pelas ruas, mas através da minha dor. As casas alinhadas são os incompreendedores que me cercam na alma; os meus passos soam no passeio como um dobre ridículo a finados, um ruído de espanto na noite, final como um recibo ou uma jaula.
Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço.
Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio.
Se eu fosse músico escreveria a minha marcha fúnebre, e com que razão a escreveria!
[402]
Poder reencarnar numa pedra, num grão de pó — chora-me na alma este desejo.
Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a não achar sabor a nada.
[403]
Não me encontro um sentido… A vida pesa… Toda a emoção é demais para mim… O meu coração é um privilégio de Deus… A que cortejos pertenci, que um cansaço de não sei que pompas embala a minha saudade? E que pálios? que sequências de estrelas? que lírios? que flâmulas? que vitrais?
Por que mistério à sombra de árvores passaram as melhores fantasias, que neste mundo tanto se recordam das águas, dos ciprestes e dos buxos e não encontram pálios para os seus préstitos senão entre consequências de se abster?
Caleidoscópio
Não fales… Aconteces demasiado… Tenho pena de te estar vendo…
Quando serás tu apenas uma saudade minha? Até lá quantas tu não serás! E eu ter de julgar que te posso ver é uma ponte velha onde ninguém passa… A vida é isto. Os outros abandonaram os remos… Não há já disciplina nas coortes… Foram-se os cavaleiros com a manhã e o som das lanças… Teus castelos ficaram esperando estar desertos… Nenhum vento abandonou os renques das árvores ao cimo… Pórticos inúteis, baixelas guardadas, prenúncios de profecias — isso pertence aos crepúsculos prosternados nos templos e não agora, ao encontrarmo-nos, porque não há razões para tílias dando sombra senão teus dedos e o seu gesto tardio…
Razão de sobra para territórios remotos… Tratados feitos por vitrais de reis… Lírios de quadros religiosos… Por quem espera o séquito? …
Por onde se ergueu a águia perdida?
[404]
Enrolar o mundo à roda dos nossos dedos, como um fio ou uma fita com que brinque uma mulher que sonha à janela.
Resume-se tudo enfim em procurar sentir o tédio de modo que ele não doa.
Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas.
[405]
A vida, para a maioria dos homens, é uma maçada passada sem se dar por isso, uma coisa triste composta de intervalos alegres, qualquer coisa como os momentos de anedotas que contam os veladores de mortos, para passar o sossego da noite e a obrigação de velar. Achei sempre fútil considerar a vida como um vale de lágrimas: é um vale de lágrimas, sim, mas onde raras vezes se chora. Disse Heine que, depois das grandes tragédias, acabamos sempre por nos assoar. Como judeu, e portanto universal, viu com clareza a natureza universal da humanidade.
A vida seria insuportável se tomássemos consciência dela. Felizmente o não fazemos. Vivemos com a mesma inconsciência que os animais, do mesmo modo fútil e inútil, e se antecipamos a morte, que é de supor, sem que seja certo, que eles não antecipam, antecipamo-la através de tantos esquecimentos, de tantas distrações e desvios, que mal podemos dizer que pensamos nela.
Assim se vive, e é pouco para nos julgarmos superiores aos animais. A nossa diferença deles consiste no pormenor puramente externo de falarmos e escrevermos, de termos inteligência abstrata para nos distrairmos de a ter concreta, e de imaginar coisas impossíveis. Tudo isso, porém, são acidentes do nosso organismo fundamental. O falar e escrever nada fazem de novo no nosso instinto primordial de viver sem saber como. A nossa inteligência abstrata não serve senão para fazer sistemas, ou ideias meio-sistemas, do que nos animais é estar ao sol. A nossa imaginação do impossível não é porventura própria, pois já vi gatos olhar para a lua, e não sei se não a quereriam.
Todo o mundo, toda a vida, é um vasto sistema de inconsciências operando através de consciências individuais. Assim como com dois gases, passando por eles uma corrente elétrica, se faz um líquido, assim com duas consciências — a do nosso ser concreto e a do nosso ser abstrato — se faz, passando por elas a vida e o mundo, uma inconsciência superior.
Feliz, pois, o que não pensa, porque realiza por instinto e destino orgânico o que todos nós temos que realizar por desvio e destino inorgânico ou social. Feliz o que mais se assemelha aos brutos, porque é sem esforço o que todos nós somos com trabalho imposto; porque sabe o caminho de casa, que nós outros não encontramos senão por atalhos de ficção e regresso; porque, enraizado como uma árvore, é parte da paisagem e portanto da beleza, e não, como nós, mitos da passagem, figurantes de trajo vivo da inutilidade e do esquecimento.
[406]
Não creio alto na felicidade dos animais, senão quando me apetece falar nela para moldura de um sentimento que a sua suposição saliente. Para se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não há felicidade em dormir sem sonhos, senão somente em se despertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fora da felicidade. Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.
Só o absoluto de Hegel conseguiu, em páginas, ser duas coisas ao mesmo tempo. O não-ser e o ser não se fundem e confundem nas sensações e razões da vida: excluem-se, por uma síntese às avessas.
Que fazer? Isolar o momento como uma coisa e ser feliz agora, no momento em que se sente a felicidade, sem pensar senão no que se sente, excluindo o mais, excluindo tudo. Enjaular o pensamento na sensação, é esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã ele talvez já não tenha nunca existido.
[407]
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu coração.
[408]
Cantava, em uma voz muito suave, uma canção de país longínquo. A música tornava familiares as palavras incógnitas. Parecia o fado para a alma, mas não tinha com ele semelhança alguma.
A canção dizia, pelas palavras veladas e a melodia humana, coisas que estão na alma de todos e que ninguém conhece. Ele cantava numa espécie de sonolência, ignorando com o olhar os ouvintes, num pequeno êxtase de rua.
O povo reunido ouvia-o sem grande motejo visível. A canção era de toda a gente, e as palavras falavam às vezes conosco, segredo oriental de qualquer raça perdida. O ruído da cidade não se ouvia se o ouvíamos, e passavam as carroças tão perto que uma me roçou pelo solto do casaco. Mas senti-a e não a ouvi. Havia uma absorção no canto do desconhecido que fazia bem ao que em nós sonha ou não consegue. Era um caso de rua, e todos reparamos que o polícia virara a esquina lentamente. Aproximou-se com a mesma lentidão. Ficou parado um tempo por trás do rapaz dos guarda-chuvas, como quem vê qualquer coisa. Nesta altura o cantor parou.
Ninguém disse nada. Então o polícia interveio.
[409]
Não sei porquê — noto-o subitamente — estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.
É esta uma das mais curiosas sensações que nos pode ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia. Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de domínio fácil e largo, de amplitude — como disse de alívio e sossego.
Que bom estar só largamente! Poder falar alto conosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.
Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a um universo próximo mas independente. Somos, finalmente, reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de nós — quem sabe — com maior vigor que os demais ouro falso. Por um momento somos pensionistas do universo, e vivemos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preocupações.
Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo até mim não sei quem, o alguém que vai interromper a minha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o meu império implícito. Não é que o passo me diga quem é que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: “Sozinho, sr. Soares? ” E eu respondo: “Sim, já há tempo…” E ele então diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho, no cabide: “Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares, e de mais a mais…” “Grande maçada, não há dúvida”, respondo eu. “Até dá vontade de dormir”, diz ele, já de casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. “E dá”, confirmo, sorridente. Depois, estendendo a mão para a caneta esquecida, reentro, gráfico na saúde anônima da vida normal.
[410]
Sempre que podem, sentam-se defronte do espelho. Falam conosco e namoram-se de olhos a si mesmos. Por vezes, como nos namoros, distraem-se da conversa. Fui-lhes sempre simpático, porque a minha aversão adulta pelo meu aspecto me compeliu sempre a escolher o espelho como coisa para onde virasse as costas. Assim, e eles de instinto o reconheciam tratando-me sempre bem, eu era o rapaz escutador que lhes deixava sempre livres a vaidade e a tribuna.
Em conjunto não eram maus rapazes; particularmente eram melhores e piores. Tinham generosidades e ternuras insuspeitáveis a um tirador de médias, baixezas e sordidezes difíceis de adivinhar por qualquer ente humano normal. Miséria, inveja e ilusão — assim os resumo, e nisso resumiria aquela parte desse ambiente que se infiltra na obra dos homens de valor que alguma vez fizeram dessa estância de ressaca um pousio de enganados. (É, na obra de Fialho, a inveja flagrante, a grosseria reles, a deselegância nauseante…)
Uns têm graça, outros têm só graça, outros ainda não existem. A graça dos cafés divide-se em ditos de espírito sobre os ausentes e ditos de insolência aos presentes. A este gênero de espírito chama-se ordinariamente apenas grosseria. Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas.
Passei, vi e, ao contrário deles, venci. Porque a minha vitória consistiu em ver. Reconheci a identidade de todos os aglomerados inferiores: vim encontrar aqui, na casa onde tenho um quarto, a mesma alma sórdida que os cafés me revelaram, salvo, graças aos deuses todos, a noção de vencer em Paris. A dona desta casa ousa Avenidas Novas em alguns dos seus momentos de ilusão, mas do estrangeiro está salva, e o meu coração enternece-se.
Conservo dessa passagem pelo túmulo da vontade a memória de um tédio nauseado e de algumas anedotas com espírito.
Vão a enterrar, e parece que já no caminho do cemitério se esqueceu no café o passado, pois vai calado agora e a posteridade nunca saberá deles, escondidos dela para sempre sob a mole negra dos pendões ganhados nas suas vitórias de dizer.
[411]
O orgulho é a certeza emotiva da grandeza própria. A vaidade é a certeza emotiva de que os outros veem em nós, ou nos atribuem, tal grandeza. Os dois sentimentos nem necessariamente se conjugam, nem por natureza se opõem. São diferentes porém conjugáveis.
O orgulho, quando existe só, sem acrescentamento de vaidade, manifesta-se, no seu resultado, como timidez: quem se sente grande, porém não confia em que os outros o reconheçam por tal, receia confrontar a opinião que tem de si mesmo com a opinião que os outros possam ter dele.
A vaidade, quando existe só, sem acrescentamento de orgulho, o que é possível porém raro, manifesta-se, no seu resultado, pela audácia. Quem tem a certeza de que os outros veem nele valor nada receia deles. Pode haver coragem física sem vaidade; pode haver coragem moral sem vaidade; não pode haver audácia sem vaidade. E por audácia se entende a confiança na iniciativa. A audácia pode ser desacompanhada de coragem, física ou moral, pois estas disposições da índole são de ordem diferente, e com ela incomensuráveis.
[412]
Intervalo doloroso
Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-me se não sou o criador de mim próprio. E mesmo que haja em mim de que envaidecer-me, quanto para me não envaidecer.
Jazo a minha vida. E nem sei fazer com o sonho o gesto de me erguer, tão até à alma estou despido de saber ter um esforço.
Os fazedores de sistemas metafísicos, os de explicações psicológicas são ainda piores no sofrimento. Sistematizar, explicar, o que é senão [. . . ] e construir?
E tudo isso — arranjar, dispor, organizar — o que é senão esforço realizado — e quão desoladoramente isso é vida!
[381]
Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogênio e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende — como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço — nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia.
O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade frusta numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.
E é isto que eu sinto ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trêmula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível, um tom algendo [sic] de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustas, tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de desolação.
Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um sol já submisso? Que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isto — céu, terra, mundo, — o que há em tudo isto não é senão eu!
[382]
Cheguei àquele ponto em que o tédio é uma pessoa, a ficção encarnada do meu convívio comigo.
[383]
O mundo exterior existe como um ator num palco: está lá mas é outra coisa.
[384]
e tudo é uma doença incurável.
A ociosidade de sentir, o desgosto de ter de não saber fazer nada, a incapacidade de agir, como um
[385]
Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu? Não se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação. Por vezes parecia mais uma doença dos olhos do que uma realidade da natureza.
Fosse o que fosse ia por toda a paisagem uma inquietação turva, feita de esquecimento e de atenuação. Era como se o silêncio do mau sol tomasse para seu um corpo imperfeito. Dir-se-ia que ia acontecer qualquer coisa e que por toda a parte havia uma intuição pela qual o visível se velava.
Era difícil dizer se o céu tinha nuvens ou antes névoa. Era um torpor baço, aqui e ali colorido, um acinzentamento imponderavelmente amarelado, salvo onde se esboroava em cor-de-rosa falso, ou onde estagnava azulescendo, mas aí não se distinguia se era o céu que se revelava, se era outro azul que o encobria.
Nada era definido, nem o indefinido. Por isso apetecia chamar fumo à névoa, por ela não parecer névoa, ou perguntar se era névoa ou fumo, por nada se perceber do que era. O mesmo calor do ar colaborava na dúvida. Não era calor, nem frio, nem fresco; parecia compor a sua temperatura de elementos tirados de outras coisas que o calor. Dir-se-ia, deveras, que uma névoa fria aos olhos era quente ao tato, como se tato e vista fossem dois modos sensíveis do mesmo sentido.
Nem era, em torno dos contornos das árvores, ou das esquinas dos edifícios, aquele esbater de recortes ou de arestas, que a verdadeira névoa traz, estagnando, ou o verdadeiro fumo, natural, entreabre e entrescurece. Era como se cada coisa projetasse de si uma sombra vagamente diurna, em todos os sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem lugar de projeção que a justificasse como visível.
Nem visível era: era como um começo de ir a ver-se qualquer coisa, mas em toda a parte por igual, como se o a revelar hesitasse em ser aparecido.
E que sentimento havia? A impossibilidade de o ter, o coração desfeito na cabeça, os sentimentos confundidos, um torpor da existência desperta, um apurar de qualquer coisa anímica como o ouvido para uma revelação definitiva, inútil, sempre a aparecer já, como a verdade, sempre, como a verdade, gêmea de nunca aparecer.
Até a vontade de dormir, que lembra ao pensamento, desapetece por parecer um esforço o mero bocejo de a ter. Até deixar de ver faz doer os olhos. E, na abdicação incolor da alma inteira, só os ruídos exteriores, longe, são o mundo impossível que ainda existe.
Ah, outro mundo, outras coisas, outra alma com que senti-las, outro pensamento com que saber dessa alma! Tudo, até o tédio, menos este esfumar comum da alma e das coisas, este desamparo azulado da indefinição de tudo!
[386]
Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos, na macieza estalante das folhas, que juncavam, amarelas e meio-verdes, a irregularidade do chão. Mas iam também disjuntos porque éramos dois pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que não éramos pisava uníssono o mesmo solo ouvido.
Tinha entrado já o princípio do outono, e, além das folhas que pisávamos, ouvíamos cair continuamente, no acompanhamento brusco do vento, outras folhas, ou sons de folhas, por toda a parte onde íamos ou havíamos ido. Não havia mais paisagem senão a floresta que velava todas. Bastava, porém, como sítio e lugar para os que, como nós, não tínhamos por vida senão o caminhar uníssono e diverso sobre um solo mortiço. Era — creio — o fim de um dia, ou de qualquer dia, ou porventura de todos os dias, num outono todos os outonos, na floresta simbólica e verdadeira.
Que casas, que deveres, que amores havíamos largado — nós mesmos o não saberíamos dizer. Não éramos, nesse momento, mais que caminhantes entre o que esquecêramos e o que não sabíamos, cavaleiros a pé do ideal abandonado. Mas nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do vento incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois, não sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabíamos se partíamos se chegávamos. E sempre, em torno nosso, sem lugar sabido ou queda vista, o som das folhas que escombravam adormecia de tristeza a floresta.
Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. A companhia que nos fazíamos era uma espécie de sono que cada um de nós tinha. O som dos passos uníssonos ajudava cada um a pensar sem o Outro, e os próprios passos solitários tê-lo-iam despertado. A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos uníssonos seguiam constantes, e em torno do que ouvíamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas caindo, na floresta tornada tudo, na floresta igual ao universo.
Quem éramos? Seríamos dois ou duas formas de um? Não o sabíamos nem o perguntávamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir, pois caminhávamos. Um mundo qualquer devia existir, pois existia uma floresta. Nós, porém, éramos alheios ao que fosse ou pudesse ser, caminheiros uníssonos e intermináveis sobre folhas mortas, ouvidores anônimos e impossíveis de folhas caindo. Nada mais. Um sussurro, ora brusco ora suave, do vento incógnito, um murmúrio, ora alto ora baixo, das folhas presas, um resquício, uma dúvida, um propósito que findara, uma ilusão que nem fora — a floresta, os dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual deles era, ou se era ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragédia de não haver nunca mais do que o outono e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre caídas ou caindo. E sempre, como se por certo houvesse fora um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silêncio rumoroso da floresta.
[387]
Suponho que seja o que chamam um decadente, que haja em mim, como definição externa do meu espírito, essas lucilações tristes de uma estranheza postiça que incorporam em palavras inesperadas uma alma ansiosa e malabar. Sinto que sou assim e que sou absurdo. Por isso busco, por uma imitação de uma hipótese dos clássicos, figurar ao menos em uma matemática expressiva as sensações decorativas da minha alma substituída. Em certa altura da cogitação escrita, já não sei onde tenho o centro da atenção — se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que, querendo descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coisas. Formam-se em mim associações de ideias, de imagens, de palavras — tudo lúcido e difuso —, e tanto estou dizendo o que sinto, como o que suponho que sinto, nem distingo o que a alma me sugere do que as imagens, que a alma deixou cair, me enfloram no chão, nem até, se um som de palavra bárbara, ou um ritmo de frase interposta, me não tiram do assunto já incerto, da sensação já em parque, e me absolvem de pensar e de dizer, como grandes viagens para distrair. E isto tudo, que, se o repito, deveria dar-me uma sensação de futilidade, de falência, de sofrimento, não conseguem senão dar-me asas de ouro. Desde que falo de imagens, talvez porque fosse a condenar o abuso delas, nascem-me imagens; desde que me ergo de mim para repudiar o que não sinto, eu o estou sentindo já e o próprio repúdio é uma sensação com bordados; desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo clássico, um adjetivo espacial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver clara diante de mim a página escrita dormentemente, e as letras da minha tinta da caneta são um mapa absurdo de sinais mágicos. E deponho-me como à caneta, e traço a capa de me reclinar sem nexo, longínquo, intermédio e súcubo, final como um náufrago afogando-se à vista de ilhas maravilhosas, em aqueles mesmos mares dourados de violeta que em leitos remotos verdadeiramente sonhara.
[388]
Tornar puramente literária a receptividade dos sentidos, e as emoções, quando acaso inferiorizem, convertê-las em matéria aparecida para com elas estátuas se esculpirem de palavras fluidas e lambentes [sic].
[389]
O lema que hoje mais requeiro para definição do meu espírito é o de criador de indiferenças. Mais do que outra, queria que minha ação pela vida fosse de educar os outros a sentir cada vez mais para si próprios, e cada vez menos segundo a lei dinâmica da coletividade… Educar naquela antissepsia espiritual pela qual não podia haver contágio de vulgaridade, parece-me o mais constelado destino do pedagogo íntimo que eu queria ser. Que quantos me lessem aprendessem — pouco embora, como o assunto manda — a não ter sensação nenhuma perante os olhares alheios e as opiniões dos outros, esse destino engrinaldaria suficientemente a estagnação da minha vida. A impossibilidade de agir foi sempre em mim uma moléstia com etiologia metafísica. Fazer um gesto foi sempre, para o meu sentimento das coisas, uma perturbação, um desdobramento, no universo exterior; mexer-me deu-me sempre a impressão que não deixaria intactas as estrelas nem os céus sem mudanças. Por isso a importância metafísica do mais pequeno gesto cedo tomou um relevo atônito dentro de mim. Adquiri perante agir um escrúpulo de honestidade transcendental, que me inibe, desde que o fixei na minha consciência, de ter relações muito acentuadas com o mundo palpável.
[390]
Saber ser supersticioso ainda é uma das artes que, realizadas a auge, marcam o homem superior.
[391]
Desde que, conforme posso, medito e observo, tenho reparado que em nada os homens sabem a verdade, ou estão de acordo, que seja realmente supremo na vida ou útil ao vivê-la. A ciência mais exata é a matemática, que vive na clausura das suas próprias regras e leis; serve, sim, de, por aplicação, elucidar outras ciências, mas elucida o que estas descobrem, não as ajuda a descobrir. Nas outras ciências não é certo e aceito senão o que nada pesa para os fins supremos da vida. A física sabe bem qual é o coeficiente da dilatação do ferro; não sabe qual é a verdadeira mecânica da constituição do mundo. E quanto mais subimos no que desejaríamos saber, mais descemos no que sabemos. A metafísica, que seria o guia supremo porque é ela e só ela que se dirige aos fins supremos da verdade e da vida — essa nem é teoria científica, senão somente um monte de tijolos formando, nestas mãos ou naquelas, casas de nenhum feitio que nenhuma argamassa liga. Reparo, também, que entre a vida dos homens e a dos animais não há outra diferença que não a da maneira como se enganam ou a ignoram. Não sabem os animais o que fazem: nascem, crescem, vivem, morrem sem pensamento, reflexo ou verdadeiramente futuro. Quantos homens, porém, vivem de modo diferente do dos animais? Dormimos todos, e a diferença está só nos sonhos, e no grau e qualidade de sonhar. Talvez a morte nos desperte, mas a isso também não há resposta senão a da fé, para quem crer é ter, a da esperança, para quem desejar é possuir, a da caridade, para quem dar é receber.
Chove, nesta tarde fria de inverno triste, como se houvesse chovido, assim monotonamente, desde a primeira página do mundo. Chove, e meus sentimentos, como se a chuva os vergasse, dobram seu olhar bruto para a terra da cidade, onde corre uma água que nada alimenta, que nada lava, que nada alegra. Chove, e eu sinto subitamente a opressão imensa de ser um animal que não sabe o que é, sonhando o pensamento e a emoção, encolhido, como num tugúrio, numa região espacial do ser, contente de um pequeno calor como de uma verdade eterna.
[392]
O povo é bom tipo.
O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada tanto quanto possível, dos interesses alheios.
Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira ciência, cessam as agências principais, de cuja existência a civilização deriva.
Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a renegação do que fui ontem, de quem fui ontem? Existir é desmentir-se. Não há nada mais simbólico da vida do que aquelas notícias dos jornais que desmentem hoje o que o próprio jornal disse ontem.
Querer é não poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer. Creio que estes princípios são fundamentais.
[393]
Reles como os fins da vida que vivemos, sem que queiramos nós tais fins.
A maioria, se não a totalidade, dos homens vive uma vida reles, reles em todas as suas alegrias, e reles em quase todas as suas dores, salvo naquelas que se fundamentam na morte, porque nessas colabora o Mistério.
Ouço, coados pela minha desatenção, os ruídos que sobem, fluidos e dispersos, como ondas interfluentes ao acaso e de fora como se viessem de outro mundo: gritos de vendedores, que vendem o natural, como hortaliça, ou o social, como as cautelas; riscar redondo de rodas — carroças e carros rápidos por saltos —; automóveis, mais ouvidos no movimento que no giro; o tal sacudir de qualquer coisa pano a qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada do andar alto; o gemido metálico do elétrico na outra rua; o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos; princípios, meios e fins de vozes — e tudo isto existe para mim, que durmo pensá-lo, como uma pedra entre erva, em qualquer modo espreitando de fora de lugar.
Depois, e ao lado, é de dentro de casa que os sons confluem com os outros: os passos, os pratos, a vassoura, a cantiga interrompida (meio fado); a véspera na combinação da sacada; a irritação do que falta na mesa; o pedido dos cigarros que ficaram em cima da cômoda — tudo isto é a realidade, a realidade anafrodisíaca que não entra na minha imaginação.
Leves os passos da criada ajudante, chinelos que revisiono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o som toma qualquer coisa da trança encarnada e preta; seguros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sai e se despede alto, com o bater da porta cortando o eco do logo que vem depois do até; um sossego, como se o mundo acabasse neste quarto andar alto; ruído de louça que vai para se lavar; correr de água; “então não te disse que”… e o silêncio apita do rio.
Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tempo, entre sinestesias. E é prodigioso pensar que eu não quereria, se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve vida que estes lentos minutos, esta nulidade do pensamento, da emoção, da ação, quase da mesma sensação, o ocaso-nato da vontade dispersa. E então reflito, quase sem pensamento, que a maioria, se não a totalidade, dos homens assim vive, mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a mesma modorra para os fins últimos, o mesmo abandono dos propósitos formados, a mesma sensação da vida. Sempre que vejo um gato ao sol lembra-me a humanidade. Sempre que vejo dormir lembro-me que tudo é sono. Sempre que alguém me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão sonhar. O ruído da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e tocam a campainha.
O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os passos cessam no fim do corredor. Os pratos lavados erguem a voz de água e louça. [. . . ]
[394]
E assim como sonho, raciocino se quiser, porque isso é apenas uma outra espécie de sonho.
Príncipe de melhores horas, outrora eu fui tua princesa, e amamo-nos com um amor doutra espécie, cuja memória me dói.
[395]
De suave e aérea a hora era uma ara onde orar. Por certo que no horóscopo do nosso encontro benéficos conjuntos culminavam. Tal, tão sedosa e tão sutil, a matéria incerta de sonho visto que se intrometia na nossa consciência de sentir. Cessara por completo, como um verão qualquer, a nossa noção ácida de que não vale a pena viver. Renascia aquela primavera que, embora por erro, podíamos pensar que houvéssemos tido. No desprestígio das nossas semelhanças os tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre árvores, e as rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de viver — tudo irresponsavelmente.
Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma névoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estremecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o nosso julgar ali estremecimentos. Púrpuras distantes, sombras fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte o complete, raios de sol mortiço, a lâmpada da casa na encosta, a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a vida lá fora, árvores cheirando a verdes na imensa noite mais estrelada do outro lado do monte. Assim as tuas agruras tiveram o seu consórcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de régio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as verdadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo, deixando só as sombras, e os engastes, mágoas das águas nos lagos aziagos entre buxos por portões (à vista de longe) Watteau, a angústia, e nunca mais. Milênios, só os de vires, mas a estrada não tem curva, e por isso nunca poderás chegar. Taças só para as cicutas inevitáveis — não as tuas, mas a vida de todos, e mesmo os lampiões, os recessos, as asas vagas, ouvidas só, e com o pensamento, na noite inquieta, sufocada, que minuto a minuto se ergue de si e avança pela sua angústia fora. Amarelo, verde-negro, azul-amor — tudo morto, minha ama, tudo morto, e todos os navios aquele navio sem partir! Reza por mim, e Deus talvez exista por ser por mim que rezas. Baixinho, a fonte longe, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a memória turva, o rio afastado… Dá-me que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Desígnios Incertos, Mãe das Carícias e das Bênçãos inconciliáveis com existirem…
[396]
Depois que as últimas chuvas deixaram o céu e ficaram na terra — céu limpo, terra úmida e espelhenta —, a clareza maior da vida que com o azul voltou ao alto, e na frescura de ter havido água se alegrou em baixo, deixou um céu próprio nas almas, uma frescura sua nos corações.
Somos, por pouco que o queiramos, servos da hora e das suas cores e formas, súditos do céu e da terra. Aquele de nós que mais se embrenhe em si mesmo, desprezando o que o cerca, esse mesmo se não embrenha pelos mesmos caminhos quando chove do que quando o céu está bom. Obscuras transmutações, sentidas talvez só no íntimo dos sentimentos abstratos, se operam porque chove ou deixou de chover, se sentem sem que se sintam porque sem sentir o tempo se sentiu.
Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colônia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente. Neste mesmo momento, em que escrevo, num intervalo legítimo do trabalho hoje escasso, estas poucas palavras de impressão, sou o que as escreve atentamente, sou o que está contente de não ter nesta hora de trabalhar, sou o que está vendo o céu lá fora, invisível de aqui, sou o que está pensando isto tudo, sou o que sente o corpo contente e as mãos ainda vagamente frias. E todo este mundo meu de gente entre si alheia projeta, como uma multidão diversa mas compacta, uma sombra única — este corpo quieto e escrevente com que reclino, de pé, contra a secretária alta do Borges onde vim buscar o meu mata-borrão, que lhe emprestara.
[397]
Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra — ou antes, de luz e de menos luz —, a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende — não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, esperança — estão ligadas em música pela mesma intenção melódica; estão ligadas na alma pela mesma memória de uma igual intenção. Não: se a mim mesmo observo, como observo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. A razão também vê a aurora. A esperança que pus nela, se a houve, não foi minha; foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a quem encarnei, sem querer, o entendimento exterior neste momento.
Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me promete mais que o dia, e eu sei que ele tem decurso e fim. A luz anima-me mas não me melhora, que sairei de aqui como para aqui vim — mais velho em horas, mais alegre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que há-de morrer. Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é como de um campo de casas — é natural, é extensa, é combinada. Mas, ainda no ver disto tudo, poderei eu esquecer que existo?
A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim.
Lembro-me de repente de quando era criança, e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste… A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por detrás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.
Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. No meu sangue corre até a menor das paisagens futuras, e a angústia do que terei que ver de novo é uma monotonia antecipada para mim.
E debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma — a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.
[398]
Tenho por intuição que para as criaturas como eu nenhuma circunstância material pode ser propícia, nenhum caso da vida ter uma solução favorável. Se já por outras razões me afasto da vida, esta contribui também para que eu me afaste. Aquelas somas de fatos que, para os homens vulgares, inevitabilizariam o êxito, têm, quando me dizem respeito, um outro resultado qualquer, inesperado e adverso.
Nasce-me, às vezes, desta constatação, uma impressão dolorosa de inimizade divina. Parece-me que só por um ajeitar consciente dos fatos, de modo a que me sejam maléficos, a série de desastres, que define a minha vida, me poderia ter acontecido.
Resulta de tudo isto para o meu esforço que eu não intento nunca demasiadamente. A sorte, se quiser, que venha ter comigo. Sei de sobra que o meu maior esforço não logra o conseguimento que noutros teria. Por isso me abandono à sorte, sem esperar muito dela. Para quê? O meu estoicismo é uma necessidade orgânica. Preciso de me couraçar contra a vida. Como todo o estoicismo não passa de um epicurismo severo, desejo, quanto possível, fazer que a minha desgraça me divirta. Não sei até que ponto o consigo. Não sei até que ponto consigo qualquer coisa. Não sei até que ponto qualquer coisa se pode conseguir…
Onde um outro venceria, não pelo seu esforço, mas por uma inevitabilidade das coisas, eu nem por essa inevitabilidade, nem por esse esforço, venço ou venceria.
Nasci talvez, espiritualmente, num dia curto de inverno. Chegou cedo a noite ao meu ser. Só em frustração e abandono posso realizar a minha vida.
No fundo, nada disto é estoico. É só nas palavras que há a nobreza do meu sofrimento. Queixo-me, como uma criada doente. Ralo-me como uma dona de casa. A minha vida é inteiramente fútil e inteiramente triste.
[399]
Como Diógenes a Alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol. Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los. O que achei, mais valeria tê-lo realmente achado. O sonho
Tenho construído em passeio frases perfeitas de que depois me não lembro em casa. A poesia inefável dessas frases não sei se será parte do que foram, se parte de não terem nunca sido.
Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco, como linha reta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha reta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo ativamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejei sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tato; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.
Nunca soube se era demais a minha sensibilidade para a minha inteligência, ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma ou outra, ou foi a terceira que tardou.
Dos sonhadores de ideais [? ] — socialistas, altruístas, humanitários de toda espécie — tenho a náusea física, do estômago. São os idealistas sem ideal. São os pensadores sem pensamento. Querem a superfície da vida por uma fatalidade de lixo, que boia à tona de água e se julga belo, porque as conchas dispersas boiam à tona de água também.
[400]
Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.
Como quem visita um lugar onde passou a juventude consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar da minha vida em que era meu uso fumá-los. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.
Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso de recordações que os estremece. A infância! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre de soldados de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao meu sabor a minha felicidade passada, a minha infância ida, e pertenço voluptuosamente à suavidade da minha dor.
Nem por simples é menos solene este meu ritual do paladar.
Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstrói momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter paladar. Por isso mais em grupo e transferência me evoca as horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as corporizo. Um cigarro ao mentol, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que sutil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto outra vez as cores de um passado, tão século dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo irremediavelmente perdido.
[401]
Criei para mim, fausto de um opróbrio, uma pompa de dor e de apagamento. Não fiz da minha dor um poema, fiz dela, porém, um cortejo. E da janela para mim contemplo, espantado, os ocasos roxos, os crepúsculos vagos de dores sem razão, onde passam, nos cerimoniais do meu descaminho, os perigos, os fardos, os falhanços da minha incompetência nativa para existir. A criança, que nada matou em mim, assiste ainda, de febre e fitas, ao circo que me dou. Ri dos palhaços, sem haver cá fora do circo; põe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem vê ali toda a vida. E assim, sem alegria, mas contente, entre as quatro paredes do meu quarto dorme, por inocência, com o seu pobre papel feio e gasto, toda a angústia insuspeita de uma alma humana que transborda, todo o desespero sem remédio de um coração a quem Deus abandonou.
Caminho, não pelas ruas, mas através da minha dor. As casas alinhadas são os incompreendedores que me cercam na alma; os meus passos soam no passeio como um dobre ridículo a finados, um ruído de espanto na noite, final como um recibo ou uma jaula.
Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço.
Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio.
Se eu fosse músico escreveria a minha marcha fúnebre, e com que razão a escreveria!
[402]
Poder reencarnar numa pedra, num grão de pó — chora-me na alma este desejo.
Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a não achar sabor a nada.
[403]
Não me encontro um sentido… A vida pesa… Toda a emoção é demais para mim… O meu coração é um privilégio de Deus… A que cortejos pertenci, que um cansaço de não sei que pompas embala a minha saudade? E que pálios? que sequências de estrelas? que lírios? que flâmulas? que vitrais?
Por que mistério à sombra de árvores passaram as melhores fantasias, que neste mundo tanto se recordam das águas, dos ciprestes e dos buxos e não encontram pálios para os seus préstitos senão entre consequências de se abster?
Caleidoscópio
Não fales… Aconteces demasiado… Tenho pena de te estar vendo…
Quando serás tu apenas uma saudade minha? Até lá quantas tu não serás! E eu ter de julgar que te posso ver é uma ponte velha onde ninguém passa… A vida é isto. Os outros abandonaram os remos… Não há já disciplina nas coortes… Foram-se os cavaleiros com a manhã e o som das lanças… Teus castelos ficaram esperando estar desertos… Nenhum vento abandonou os renques das árvores ao cimo… Pórticos inúteis, baixelas guardadas, prenúncios de profecias — isso pertence aos crepúsculos prosternados nos templos e não agora, ao encontrarmo-nos, porque não há razões para tílias dando sombra senão teus dedos e o seu gesto tardio…
Razão de sobra para territórios remotos… Tratados feitos por vitrais de reis… Lírios de quadros religiosos… Por quem espera o séquito? …
Por onde se ergueu a águia perdida?
[404]
Enrolar o mundo à roda dos nossos dedos, como um fio ou uma fita com que brinque uma mulher que sonha à janela.
Resume-se tudo enfim em procurar sentir o tédio de modo que ele não doa.
Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas.
[405]
A vida, para a maioria dos homens, é uma maçada passada sem se dar por isso, uma coisa triste composta de intervalos alegres, qualquer coisa como os momentos de anedotas que contam os veladores de mortos, para passar o sossego da noite e a obrigação de velar. Achei sempre fútil considerar a vida como um vale de lágrimas: é um vale de lágrimas, sim, mas onde raras vezes se chora. Disse Heine que, depois das grandes tragédias, acabamos sempre por nos assoar. Como judeu, e portanto universal, viu com clareza a natureza universal da humanidade.
A vida seria insuportável se tomássemos consciência dela. Felizmente o não fazemos. Vivemos com a mesma inconsciência que os animais, do mesmo modo fútil e inútil, e se antecipamos a morte, que é de supor, sem que seja certo, que eles não antecipam, antecipamo-la através de tantos esquecimentos, de tantas distrações e desvios, que mal podemos dizer que pensamos nela.
Assim se vive, e é pouco para nos julgarmos superiores aos animais. A nossa diferença deles consiste no pormenor puramente externo de falarmos e escrevermos, de termos inteligência abstrata para nos distrairmos de a ter concreta, e de imaginar coisas impossíveis. Tudo isso, porém, são acidentes do nosso organismo fundamental. O falar e escrever nada fazem de novo no nosso instinto primordial de viver sem saber como. A nossa inteligência abstrata não serve senão para fazer sistemas, ou ideias meio-sistemas, do que nos animais é estar ao sol. A nossa imaginação do impossível não é porventura própria, pois já vi gatos olhar para a lua, e não sei se não a quereriam.
Todo o mundo, toda a vida, é um vasto sistema de inconsciências operando através de consciências individuais. Assim como com dois gases, passando por eles uma corrente elétrica, se faz um líquido, assim com duas consciências — a do nosso ser concreto e a do nosso ser abstrato — se faz, passando por elas a vida e o mundo, uma inconsciência superior.
Feliz, pois, o que não pensa, porque realiza por instinto e destino orgânico o que todos nós temos que realizar por desvio e destino inorgânico ou social. Feliz o que mais se assemelha aos brutos, porque é sem esforço o que todos nós somos com trabalho imposto; porque sabe o caminho de casa, que nós outros não encontramos senão por atalhos de ficção e regresso; porque, enraizado como uma árvore, é parte da paisagem e portanto da beleza, e não, como nós, mitos da passagem, figurantes de trajo vivo da inutilidade e do esquecimento.
[406]
Não creio alto na felicidade dos animais, senão quando me apetece falar nela para moldura de um sentimento que a sua suposição saliente. Para se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não há felicidade em dormir sem sonhos, senão somente em se despertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fora da felicidade. Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.
Só o absoluto de Hegel conseguiu, em páginas, ser duas coisas ao mesmo tempo. O não-ser e o ser não se fundem e confundem nas sensações e razões da vida: excluem-se, por uma síntese às avessas.
Que fazer? Isolar o momento como uma coisa e ser feliz agora, no momento em que se sente a felicidade, sem pensar senão no que se sente, excluindo o mais, excluindo tudo. Enjaular o pensamento na sensação, é esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã ele talvez já não tenha nunca existido.
[407]
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu coração.
[408]
Cantava, em uma voz muito suave, uma canção de país longínquo. A música tornava familiares as palavras incógnitas. Parecia o fado para a alma, mas não tinha com ele semelhança alguma.
A canção dizia, pelas palavras veladas e a melodia humana, coisas que estão na alma de todos e que ninguém conhece. Ele cantava numa espécie de sonolência, ignorando com o olhar os ouvintes, num pequeno êxtase de rua.
O povo reunido ouvia-o sem grande motejo visível. A canção era de toda a gente, e as palavras falavam às vezes conosco, segredo oriental de qualquer raça perdida. O ruído da cidade não se ouvia se o ouvíamos, e passavam as carroças tão perto que uma me roçou pelo solto do casaco. Mas senti-a e não a ouvi. Havia uma absorção no canto do desconhecido que fazia bem ao que em nós sonha ou não consegue. Era um caso de rua, e todos reparamos que o polícia virara a esquina lentamente. Aproximou-se com a mesma lentidão. Ficou parado um tempo por trás do rapaz dos guarda-chuvas, como quem vê qualquer coisa. Nesta altura o cantor parou.
Ninguém disse nada. Então o polícia interveio.
[409]
Não sei porquê — noto-o subitamente — estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.
É esta uma das mais curiosas sensações que nos pode ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia. Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de domínio fácil e largo, de amplitude — como disse de alívio e sossego.
Que bom estar só largamente! Poder falar alto conosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.
Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a um universo próximo mas independente. Somos, finalmente, reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de nós — quem sabe — com maior vigor que os demais ouro falso. Por um momento somos pensionistas do universo, e vivemos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preocupações.
Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo até mim não sei quem, o alguém que vai interromper a minha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o meu império implícito. Não é que o passo me diga quem é que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: “Sozinho, sr. Soares? ” E eu respondo: “Sim, já há tempo…” E ele então diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho, no cabide: “Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares, e de mais a mais…” “Grande maçada, não há dúvida”, respondo eu. “Até dá vontade de dormir”, diz ele, já de casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. “E dá”, confirmo, sorridente. Depois, estendendo a mão para a caneta esquecida, reentro, gráfico na saúde anônima da vida normal.
[410]
Sempre que podem, sentam-se defronte do espelho. Falam conosco e namoram-se de olhos a si mesmos. Por vezes, como nos namoros, distraem-se da conversa. Fui-lhes sempre simpático, porque a minha aversão adulta pelo meu aspecto me compeliu sempre a escolher o espelho como coisa para onde virasse as costas. Assim, e eles de instinto o reconheciam tratando-me sempre bem, eu era o rapaz escutador que lhes deixava sempre livres a vaidade e a tribuna.
Em conjunto não eram maus rapazes; particularmente eram melhores e piores. Tinham generosidades e ternuras insuspeitáveis a um tirador de médias, baixezas e sordidezes difíceis de adivinhar por qualquer ente humano normal. Miséria, inveja e ilusão — assim os resumo, e nisso resumiria aquela parte desse ambiente que se infiltra na obra dos homens de valor que alguma vez fizeram dessa estância de ressaca um pousio de enganados. (É, na obra de Fialho, a inveja flagrante, a grosseria reles, a deselegância nauseante…)
Uns têm graça, outros têm só graça, outros ainda não existem. A graça dos cafés divide-se em ditos de espírito sobre os ausentes e ditos de insolência aos presentes. A este gênero de espírito chama-se ordinariamente apenas grosseria. Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas.
Passei, vi e, ao contrário deles, venci. Porque a minha vitória consistiu em ver. Reconheci a identidade de todos os aglomerados inferiores: vim encontrar aqui, na casa onde tenho um quarto, a mesma alma sórdida que os cafés me revelaram, salvo, graças aos deuses todos, a noção de vencer em Paris. A dona desta casa ousa Avenidas Novas em alguns dos seus momentos de ilusão, mas do estrangeiro está salva, e o meu coração enternece-se.
Conservo dessa passagem pelo túmulo da vontade a memória de um tédio nauseado e de algumas anedotas com espírito.
Vão a enterrar, e parece que já no caminho do cemitério se esqueceu no café o passado, pois vai calado agora e a posteridade nunca saberá deles, escondidos dela para sempre sob a mole negra dos pendões ganhados nas suas vitórias de dizer.
[411]
O orgulho é a certeza emotiva da grandeza própria. A vaidade é a certeza emotiva de que os outros veem em nós, ou nos atribuem, tal grandeza. Os dois sentimentos nem necessariamente se conjugam, nem por natureza se opõem. São diferentes porém conjugáveis.
O orgulho, quando existe só, sem acrescentamento de vaidade, manifesta-se, no seu resultado, como timidez: quem se sente grande, porém não confia em que os outros o reconheçam por tal, receia confrontar a opinião que tem de si mesmo com a opinião que os outros possam ter dele.
A vaidade, quando existe só, sem acrescentamento de orgulho, o que é possível porém raro, manifesta-se, no seu resultado, pela audácia. Quem tem a certeza de que os outros veem nele valor nada receia deles. Pode haver coragem física sem vaidade; pode haver coragem moral sem vaidade; não pode haver audácia sem vaidade. E por audácia se entende a confiança na iniciativa. A audácia pode ser desacompanhada de coragem, física ou moral, pois estas disposições da índole são de ordem diferente, e com ela incomensuráveis.
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Intervalo doloroso
Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-me se não sou o criador de mim próprio. E mesmo que haja em mim de que envaidecer-me, quanto para me não envaidecer.
Jazo a minha vida. E nem sei fazer com o sonho o gesto de me erguer, tão até à alma estou despido de saber ter um esforço.
Os fazedores de sistemas metafísicos, os de explicações psicológicas são ainda piores no sofrimento. Sistematizar, explicar, o que é senão [. . . ] e construir?
E tudo isso — arranjar, dispor, organizar — o que é senão esforço realizado — e quão desoladoramente isso é vida!
