Senhor Rei que a Morte sagrou Seu, pálido e absurdo,
esquecido
e desconhecido, reinando entre pedras foscas e veludos velhos, no seu trono ao fim do Possível, com a sua corte irreal cercando-o, sombras, e a sua milícia fantástica, guardando-o, misteriosa e vazia.
Pessoa - Livro do Desassossego
Vais ser o Colombo da tua alma.
Vais buscar as suas paisagens.
Cuida bem pois em que o teu rumo seja certo e não possam errar os teus instrumentos.
A arte de sonhar é difícil porque é uma arte de passividade, onde o que é de esforço é na concentração da ausência de esforço. A arte de dormir, se a houvesse, deveria ser de qualquer forma parecida com esta.
Repara bem: a arte de sonhar não é a arte de orientar os sonhos. Orientar é agir. O sonhador verdadeiro entrega-se a si próprio, deixa-se possuir por si próprio.
Foge a todas as provocações materiais. Há no início a tentação de te masturbares. Há a do álcool, a do ópio, a [. . . ]. Tudo isso é esforço e procura. Para seres um bom sonhador, tens de não ser senão sonhador. Ópio e morfina compram-se nas farmácias — como, pensando nisto, queres poder sonhar através deles? Masturbação é uma coisa física como queres tu que te sonhes masturbando-te, vá; que em sonhar talvez fumando ópio, recebendo morfina, te embriagues da ideia do ópio, da morfina dos sonhos — não há senão que elogiar-te por isso: estás no teu papel áureo de sonhador perfeito.
Julga-te sempre mais triste e mais infeliz do que és. Isso não faz mal.
É mesmo, por ilusão, um pouco escadas para o sonho.
Maneira de bem sonhar
— Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã. Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje.
— Nunca penses no que vais fazer. Não o faças.
— Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade e no erro, no gozo e no mal-estar, sê o teu próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando, porque a tua vida real, a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros. Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com perfeição. Em todos os teus atos da vida real, desde o de nascer até ao de morrer, tu não ages: és agido; tu não vives: és vivido apenas.
Torna-te, para os outros, uma esfinge absurda. Fecha-te, mas sem bater com a porta, na tua torre de marfim. E a tua torre de marfim és tu próprio.
E se alguém te disser que isto é falso e absurdo não o acredites. Mas não acredites também no que eu te digo, porque se não deve acreditar em nada.
Despreza tudo, mas de modo que o desprezar te não incomode. Não te julgues superior ao desprezares. A arte do desprezo nobre está nisso.
Maneira de bem sonhar
Com este sonhar tudo, tudo na vida te fará sofreres mais, será a tua cruz.
Maneira de bem sonhar nos metafísicos
Raciocínio, — tudo será fácil e, porque é tudo para mim sonho. Mando-me sonhá-lo e sonho-o. Às vezes crio em mim um filósofo, que me traça cuidadosamente as filosofias enquanto eu, pajem, namoro a filha dele, cuja alma sou, à janela da sua casa.
Limito-me, é claro, aos meus conhecimentos. Não posso criar um matemático… Mas contento-me com o que tenho, que dá para combinações infinitas e sonhos sem número. Quem sabe, de resto, se à força de sonhar, eu não conseguirei ainda mais. Mas não vale a pena. Basto-me assim.
Pulverização da personalidade. Não sei quais são as minhas ideias, nem os meus sentimentos, nem o meu caráter… Se sinto uma coisa, vagamente a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim. Substitui os meus sonhos a mim próprio. Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou.
Nunca ler um livro até ao fim, nem lê-lo a seguir e sem saltar.
Não soube nunca o que sentia. Quando me falavam de tal ou tal emoção e a descreviam, sempre senti que descreviam qualquer coisa da minha alma, mas, depois, pensando, duvidei sempre. O que me sinto ser, nunca sei se o sou realmente, ou se julgo que o sou apenas. Sou uma personagem de dramas meus.
O esforço é inútil, mas entretém. O raciocínio é estéril, mas é engraçado. Amar é maçador, mas é talvez preferível a não amar. O sonho, porém, substitui tudo. Nele pode haver toda a noção do esforço sem o esforço real. Dentro do sonho posso entrar em batalhas sem risco de ter medo ou de ser ferido. Posso raciocinar, sem que tenha em vista chegar a uma verdade, a que nunca chegue sem querer resolver um problema, que veja [que] nunca resolvo; sem que [. . . ]. Posso amar sem me recusarem ou me traírem, ou me aborrecerem. Posso mudar de amada e ela será sempre a mesma. E se quiser que me traia e se me esquive, tenho às ordens que isso me aconteça, e sempre como eu quero, sempre como eu o gozo. Em sonho posso viver as maiores angústias, as maiores torturas, as maiores vitórias. Posso viver tudo isso tal como se fora da vida: depende apenas do meu poder em tornar o sonho vívido, nítido, real. Isso exige estudo e paciência interior.
Há várias maneiras de sonhar. Uma é abandonar-se aos sonhos, sem procurar torná-los nítidos, deixar-se ir no vago e no crepúsculo das suas sensações. É inferior e cansa, porque esse modo de sonhar é monótono, sempre o mesmo. Há o sonho nítido e dirigido, mas aí o esforço em dirigir o sonho trai o artifício demasiadamente. O artista supremo, o sonhador como eu o sou, tem só o esforço de querer que o sonho seja tal, que tome tais caprichos… e ele desenrola-se diante dele assim como ele o desejaria, mas não poderia conceber, sem justificação de fazê-lo. Quero sonhar-me rei… Num ato brusco quero-o. E eis-me súbito rei dum país qualquer. Qual, de que espécie, o sonho mo dirá… Porque eu cheguei a esta vitória sobre o que sonho — que os meus sonhos trazem-me sempre inesperadamente o que eu quero. Muitas vezes aperfeiçoo, ao trazê-la nítida, a ideia cuja vaga ordem apenas recebera. Eu sou totalmente incapaz de idear conscientemente as Idades Médias de diversas épocas e de diversas Terras que tenho vivido em sonhos. Deslumbra-me o excesso de imaginação que desconhecia em mim e vou vendo. Deixo os sonhos ir… Tenho-os tão puros que eles excedem sempre o que eu espero deles. São sempre mais belos do que eu quero. Mas isto só o sonhador aperfeiçoado pode esperar obter. Tenho levado anos a buscar sonhadoramente isto. Hoje consigo-o sem esforço…
A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente à leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance, eis o primeiro passo. Que a nossa família e as suas mágoas nos pareçam chilras e nojentas ao lado dessas, eis o sinal do progresso.
É preciso evitar o ler romances literários onde a atenção seja desviada para a forma do romance. Não tenho vergonha em confessar que assim comecei. É curioso mas os romances policiais, os é que por uma intuição eu lia. Nunca pude ler romances amorosos detidamente. Mas isso é uma questão pessoal, por não ter feitio de amoroso, nem mesmo em sonhos. Cada qual cultive, porém, o feitio que tiver. Recordemo-nos sempre de que sonhar é procurarmo-nos. O sensual deverá, para suas leituras, escolher as opostas às que foram as minhas.
Quando a sensação física chega, pode dizer-se que o sonhador passou além do primeiro grau do sonho. Isto é, quando um romance sobre combates, fugas, batalhas, nos deixa o corpo realmente moído, as pernas cansadas… o primeiro grau está assegurado. No caso do sensual, deverá ele — sem receber a imagem mais que mentalmente — ter uma ejaculação quando um momento desses chegar no romance.
Depois procurará trazer tudo isso para mental. A ejaculação, no caso do sensual (que escolho para exemplo, porque é o mais violento e frisante) deverá ser sentida sem se ter dado. O cansaço será muito maior, mas o prazer é completamente mais intenso.
No terceiro grau passa toda a sensação a ser mental. Aumenta o prazer e aumenta o cansaço, mas o corpo já nada sente, e em vez dos membros lassos, a inteligência, a vida e a emoção é que ficam bambos e frouxos… Chegando aqui é tempo de passar para o grau supremo do sonho.
O segundo grau é o construir romances para si próprio. Só deve tentar-se isto quando está perfeitamente mentalizado o sonho, como antes disse. Se não, o esforço inicial em criar os romances, perturbará a perfeita mentalização do gozo.
Terceiro grau.
Já educada a imaginação, basta querer, e ela se encarregará de construir os sonhos por si.
Já aqui o cansaço é quase nulo, mesmo mental. Há uma dissolução absoluta da personalidade. Somos mera cinza, dotada de alma, sem forma — nem mesmo a da água que é a da vasilha que a contém.
Bem aprontada esta [. . . ], dramas podem aparecer em nós, verso a verso, desenrolando-se alheios e perfeitos. Talvez já não haja a força de os escrevermos… nem isso será preciso. Poderemos criar em segunda mão — imaginar em nós um poeta a escrever, e ele escrevendo de uma maneira, outro poeta entretanto escreverá de outra… Eu, em virtude de ter apurado imenso esta faculdade, posso escrever de inúmeras maneiras diversas, originais todas.
O mais alto grau do sonho é quando, criado um quadro com personagens, vivemos todas elas ao mesmo tempo — somos todas essas almas conjunta e interativamente. É incrível o grau de despersonalização e encinzamento do espírito a que isto leva e é difícil, confesso-o, fugir a um cansaço geral de todo o ser ao fazê-lo… Mas o triunfo é tal!
Este é o único ascetismo final. Não há nele fé, nem um Deus.
Deus sou eu.
Marcha fúnebre
Que faz cada um neste mundo, que o perturbe ou o altere? Cada homem que vale, que outro homem não valha? Valem os homens vulgares uns pelos outros, os homens de ação pela força que interpretam, os homens do pensamento por o que criam.
O que criaste para a humanidade, está à mercê do esfriamento da Terra. O que deste aos pósteros, ou é cheio de ti, e ninguém o entenderá, ou da tua época, e as outras épocas não o entenderão, ou tem apelo para todas as épocas e não o entenderá o abismo final, em que todas as épocas se precipitam.
Fazemos, janelas, gestos na sombra. Por detrás de nós o Mistério nos [. . . ]
Somos todos mortais, com uma duração justa. Nunca maior ou menor. Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco, na memória dos que os viram e amaram; outros, ficam na memória da nação que os teve; alguns alcançam a memória da civilização que os possuiu; raros abrangem, de lado a lado, o lapso contrário de civilizações diferentes. Mas a todos cerca o abismo do tempo, que por fim os some, a todos come a fome do abismo, que o perene é um Desejo, e o eterno uma ilusão.
Morte somos e morte vivemos. Mortos nascemos, mortos passamos; mortos já, entramos na Morte.
Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida.
A vida é pois um intervalo, um nexo, uma relação, mas uma relação entre o que passou e o que passará, intervalo morto entre a Morte e a Morte.
… a inteligência, ficção da superfície e do descaminho.
A vida da matéria ou é puro sonho, ou mero jogo atômico, que desconhece as conclusões da nossa inteligência e os motivos da nossa emoção. Assim a essência da vida é um olhar, uma aparência, e ou é só ser ou não ser, e a ilusão e aparência de nada ser, tem que ser não-ser, a vida é a morte.
Vão o esforço que constrói com os olhos na ilusão de não morrer! “Poema eterno”, dizemos nós; “palavras que nunca morrerão”. Mas o esfriamento material da terra levará não só os vivos que a cobrem, como o um Homero ou um Milton não podem mais que um cometa que bata na terra.
Marcha fúnebre para o rei Luís Segundo da Baviera
Hoje, mais demorada do que nunca, veio a Morte vender ao meu limiar. Diante de mim, mais demorada do que nunca, desdobrou os tapetes, as sedas, e os damascos, do seu esquecimento e da sua consolação. Sorria deles, por elogio, e não se importando que eu a visse. Mas quando eu me tentava por comprar, falou-me que não os vendia. Não viera para que eu quisesse o que me mostrava mas para que, por o que mostrava, a quisesse a ela. E, dos seus tapetes, disse-me que eram os que se gozavam no seu palácio longínquo; das suas sedas, que outras se não trajavam no seu castelo na sombra; dos seus damascos, que melhores ainda eram os que cobriam, toalhas, os retábulos da sua estância para além do mundo.
O apego natal, que me prendia ao meu limiar desvestido, com gesto suave o desligou. “O teu lar”, disse, “não tem lume: para que queres tu ter um lar? ” “A tua casa ”, disse, “não tem pão: para que te serve a tua mesa? ” “A tua vida”, disse, “não tem quem a acompanha: para que te seduz a tua vida? ”
“Eu sou”, disse ela, “o lume das lareiras apagadas, o pão das mesas desertas, a companheira solícita dos solitários e dos incompreendidos. A glória, que falta no mundo, é pompa no meu negro domínio. No meu império o amor não cansa, porque sofra por ter; nem dói, porque canse de nunca ter tido. A minha mão pousa de leve nos cabelos dos que pensam, e eles esquecem; contra o meu seio se encostam os que em vão esperaram, e eles enfim confiam. ”
“O amor, que me têm”, ela disse, “não tem paixão que consuma; ciúme que desvaire; esquecimento que deslustre. Amar-me é como uma noite de verão, quando os mendigos dormem ao relento, e parecem pedras à beira dos caminhos. Dos meus lábios mudos não vem canto como o das sereias, nem melodia como a das árvores e das fontes; mas o meu silêncio acolhe como uma música indecisa, o meu sossego afaga como o torpor de uma brisa. ”
“Que tens tu”, ela disse, “que te ligue à vida? O amor não te busca, a glória não te procura, o poder não te encontra. A casa, que herdaste, a herdaste em ruínas. As terras, que recebeste, tinha a geada queimado as suas primícias, e o sol ardido as suas promessas. Nunca viste, senão seco, o poço da tua quinta. Apodreceram, de antes de as veres, as folhas nos teus tanques. As ervas ruins cobriram as áleas e as alamedas, por onde os teus pés nunca passaram. ”
“Mas no meu domínio, onde só a noite reina, terás a consolação, porque não terás a esperança; terás o esquecimento, porque não terás o desejo terás o repouso, porque não terás a vida. ”
E mostrou-me como era estéril a esperança de melhores dias, quando se não nascera com alma, em que os dias bons se obtivessem. Mostrou-me como o sonho não consola, porque a vida dói mais quando se acorda. Mostrou-me como o sono não repousa, porque o habitam fantasmas, sombras das coisas, rastos dos gestos, embriões mortos dos desejos, despojos do naufrágio de viver.
E, assim dizendo, dobrava devagar, mais demorada do que nunca, os seus tapetes, onde os meus olhos se tentavam, as suas sedas, que a minha alma cobiçava, os damascos dos seus retábulos, onde já as minhas lágrimas caíam.
“Por que hás-de tentar ser como os outros, se estás condenado a ti? Para que hás-de rir, se, quando ris, a tua própria alegria sincera é falsa, porque nasce de te esqueceres de quem és? Para que hás-de chorar, se sentes que de nada te serve, e choras mais as lágrimas não te consolarem, que porque as lágrimas te consolem?
Se és feliz quando ris, quando ris venci; se então és feliz, porque te não lembras de quem és, quão mais feliz serás comigo, onde não mais te lembrarás de nada? Se descansas perfeitamente, se acaso dormes sem sonhar, como não descansarás no meu leito, onde o sono nunca tem sonhos? Se um momento te elevas, porque vês a Beleza, e te esqueces de ti e da Vida, como não te elevarás no meu palácio, cuja beleza noturna não sofre discordância, nem idade, nem corrupção; nas minhas salas onde nenhum vento perturba os reposteiros, nenhum pó cobre os espaldares, nenhuma luz desbota, pouco a pouco, os veludos e os estofos, nenhum tempo amarelece a brancura dos ornatos brancos.
Vem ao meu carinho, que não sofre mudança; ao meu amor, que não tem cessação! Bebe da minha taça, que não se esgota, o néctar supremo que não enjoa nem amarga, que não desgosta nem inebria. Contempla, da janela do meu castelo, não o luar e o mar, que são coisas belas e por isso imperfeitas; mas a noite vasta e materna, o esplendor indiviso do abismo profundo!
Nos meus braços esquecerás o próprio caminho doloroso que te trouxe a eles. Contra o meu seio não sentirás mais o próprio amor que fez com que o buscasses! Senta-te ao meu lado, no meu trono, e és para sempre o Imperador indestronável do Mistério e do Graal, coexistes com os deuses e com os destinos, em não seres nada, em não teres aquém e além, em não precisares nem do que te sobre, nem sequer mesmo do que te falte, nem sequer mesmo do que te baste.
Serei tua esposa materna, tua irmã gêmea encontrada. E casadas comigo todas as tuas angústias, reservado a mim tudo o que em ti procuravas e não tinhas, tu próprio te perderás em minha substância mística, na minha existência negada, no meu seio onde as coisas se apagam, no meu seio onde as almas se abismam, no meu seio onde os deuses se desvanecem. ”
Senhor Rei do Desapego e da Renúncia, Imperador da Morte e do Naufrágio, sonho vivo errando, faustoso, entre as ruínas e as estradas do mundo!
Senhor Rei da Desesperança entre pompas, dono doloroso dos palácios que o não satisfazem, mestre dos cortejos e dos aparatos que não conseguem apagar a vida! …
Senhor Rei erguido dos túmulos, que viestes na noite e ao luar, contar a tua vida às vidas, pajem dos lírios desfolhados, arauto imperial da frieza dos marfins!
Senhor Rei Pastor das Vigílias, cavaleiro andante das Angústias, sem glória e sem dama ao luar das estradas, senhor nas florestas, nas escarpas, perfil mudo, de viseira caída passando nos vales, incompreendido pelas aldeias, chasqueado pelas vilas, desprezado pelas cidades!
Senhor Rei que a Morte sagrou Seu, pálido e absurdo, esquecido e desconhecido, reinando entre pedras foscas e veludos velhos, no seu trono ao fim do Possível, com a sua corte irreal cercando-o, sombras, e a sua milícia fantástica, guardando-o, misteriosa e vazia.
Trazei, pajens; trazei, virgens; trazei servos e servas, as taças, as salvas e as grinaldas para o festim a que a Morte assiste ! Trazei-as e vinde de negro, com a cabeça coroada de mirtos.
Mandrágora seja o que tragais nas taças, [. . . ] nas salvas, e as grinaldas sejam de violetas [. . . ], das flores todas que lembrem a tristeza.
Vai o Rei a jantar com a Morte, no seu palácio antigo, à beira do lago, entre as montanhas, longe da vida, alheio ao mundo.
Sejam de instrumentos estranhos, cujo mero som faça chorar, as orquestras que se preparam para a festa. Os servos vistam librés sóbrias, de cores desconhecidas, faustosos e simples como os catafalcos dos heróis.
E antes que o festim comece, passe pelas alamedas dos grandes parques o grande cortejo medieval de púrpuras mortas, o grande cerimonial silencioso em marcha, como a beleza num pesadelo.
A Morte é o triunfo da Vida!
Pela morte vivemos, porque só somos hoje porque morremos para ontem. Pela morte esperamos, porque só podemos crer em amanhã pela confiança na morte de hoje. Pela Morte vivemos quando sonhamos, porque sonhar é negar a vida. Pela morte morremos quando vivemos, porque viver é negar a eternidade! A Morte nos guia, a morte nos busca, a morte nos acompanha. Tudo o que temos é morte, tudo o que queremos é morte, é morte tudo o que desejamos querer.
Uma brisa de atenção percorre as alas.
Ei-lo que vai chegar, com a morte que ninguém vê e a que não chega nunca.
Arautos, tocai! Atendei!
Teu amor pelas coisas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
Rei-Virgem que desprezaste o amor, Rei-Sombra que desdenhaste a luz, Rei-Sonho que não quiseste a vida!
Entre o estrépito surdo de címbalos e atabales, a Sombra te aclama Imperador!
Máximas
— Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e caráter fixo e conhecido — tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um fato, de a materializar e tornar exterior. Viver num doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio é o único modo de vida que a um sábio convém e aquece.
— Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência.
— A nossa personalidade deve ser indevassável, mesmo por nós próprios: daí o nosso dever de sonharmos sempre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para que nos não seja possível ter opiniões a nosso respeito.
E especialmente devemos evitar a invasão da nossa personalidade pelos outros. Todo o interesse alheio por nós é uma indelicadeza ímpar. O que desloca a vulgar saudação — como está? — de ser uma indesculpável grosseria é o ser ela em geral absolutamente oca e insincera.
— Amar é cansar-se de estar só: é uma covardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos).
— Dar bons conselhos é insultar a faculdade de errar que Deus deu aos outros. E, de mais a mais, os atos alheios devem ter a vantagem de não serem também nossos. Apenas é compreensível que se peça conselhos aos outros para saber bem, ao agir ao contrário, que somos bem nós, bem em desacordo com a Outragem.
— A única vantagem de estudar é gozar o quanto os outros não disseram.
— A arte é um isolamento. Todo o artista deve buscar isolar os outros, levar-lhes às almas o desejo de estarem sós. O triunfo supremo de um artista é quando ao ler suas obras o leitor prefere tê-las e não as ler. Não é porque isto aconteça aos consagrados; é porque é o maior tributo.
— Ser lúcido é estar indisposto consigo próprio. O legítimo estado de espírito com respeito a olhar para dentro de si próprio é o estado de quem olha nervos e indecisões.
— A única atitude intelectual digna de uma criatura superior é a de uma calma e fria compaixão por tudo quanto não é ele próprio. Não que essa atitude tenha o mínimo cunho de justa e verdadeira; mas é tão invejável que é preciso tê-la.
Milímetros
(sensações de coisas mínimas)
Como o presente é antiquíssimo, porque tudo, quando existiu foi presente, eu tenho para as coisas, porque pertencem ao presente, carinhos de antiquário, e fúrias de colecionador precedido para quem me tira os meus erros sobre as coisas com plausíveis, e até verdadeiras, explicações científicas e baseadas.
As várias posições que uma borboleta que voa ocupa sucessivamente no espaço são aos meus olhos maravilhados várias coisas que ficam no espaço visivelmente. As minhas reminiscências são tão vívidas que só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssimas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amor ao fútil que isto me acontece. Pode ser que seja pelo meu escrúpulo no detalhe. Mas creio mais — não o sei, estas são as coisas que eu nunca analiso — que é porque o mínimo, por não ter absolutamente importância nenhuma social ou prática, tem, pela mera ausência disso, uma independência absoluta de associações sujas com a realidade. O mínimo sabe-me a irreal. O inútil é belo porque é menos real que o útil, que se continua e prolonga, ao passo que o maravilhoso fútil, o glorioso infinitesimal fica onde está, não passa de ser o que é, vive liberto e independente, O inútil e o fútil abrem na nossa vida real intervalos de estética humilde. Quanto não me provoca na alma de sonhos e amorosas delícias a mera existência insignificante dum alfinete pregado numa fita! Triste de quem não sabe a importância que isso tem!
Depois, entre as sensações que mais penetrantemente doem até serem agradáveis, o desassossego do mistério é uma das mais complexas e extensas. E o mistério nunca transparece tanto como na contemplação das pequeninas coisas, que, como se não movem, são perfeitamente translúcidas a ele, que param para o deixar passar. É mais difícil ter o sentimento do mistério contemplando uma batalha, e contudo pensar no absurdo que é haver gente, e sociedades e combates delas é o que mais pode desfraldar dentro do nosso pensamento a bandeira de conquista do mistério — do que diante da contemplação duma pequena pedra parada numa estrada, que, porque nenhuma ideia provoca além da de que existe, outra ideia não pode provocar, se continuarmos pensando, do que, imediatamente a seguir, a do seu mistério de existir.
Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes. Os milímetros — que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso.
Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. Todos os detalhes se me gravam desproporcionadamente a haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo exterior é-me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço de que sinto.
Na Floresta do alheamento
Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cedo ainda… Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê…
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta… Para quê há-de um dia raiar? … Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Boio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este…
Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
Que nítida de outra e de ela essa trêmula paisagem transparente! …
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar? … Eu nem sei querê-lo saber…
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem… e a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar, que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver…
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto, um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo…
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa… E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível…
Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher… Um grande cansaço é um fogo negro que me consome… Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita…
Ó felicidade baça! … O eterno estar no bifurcar dos caminhos! … Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém… E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe…
Lá fora a antemanhã tão longínqua! a floresta tão aqui ante outros olhos meus!
E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro…
As árvores! as flores! o esconder-se copado dos caminhos! …
Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor…
No nosso jardim havia flores de todas as belezas… — rosas de contornos enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoulas que seriam ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem rufada dos canteiros, miosótis mínimos, camélias estéreis de perfume… E, pasmados por cima das ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.
Nós roçávamos a alma toda vista pelo frescor visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras… E subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos…
Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes… Plátanos estacavam… E ao longe, entre árvore e árvore de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas…
O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.
A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos…
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem? …
Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais… Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena…
O movimento parado das árvores; o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade do espaço… Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali! … Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa… E nós não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada.
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal…
Orlas de mares desconhecidos tocavam, no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis e comandados da Terra.
Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos.
E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais…
Ali vivemos horas cheias de um outro sentirmo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza retângula da vida… Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angústias…
E doía-nos gozar aquilo, doía-nos… Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era úmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto…
Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.
O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastado num cerimonial no crepúsculo.
Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada.
Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa ideia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa ideia de haver a nossa vida…
Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo, riríamos sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus.
Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós… Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento…
E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra…
As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos nomes… Flores cujos nomes eram repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros… Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas… Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa… Sombras que eram relíquias de outroras felizes… Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima… Ó horas multicolores! … Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores! …
Loucura de sonho naquele silêncio alheio! …
A nossa vida era toda a vida… O nosso amor era o perfume do amor… Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós… E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade…
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer… Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria… E assim como ela era duas — de realidade que era, e ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria…
Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar… Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser… Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos… E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto…
E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos… Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa…
Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão tênues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos…
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparamos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser…
Zumbe uma mosca, incerta e mínima…
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto… Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece…
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora…
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos…
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos…
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto de nossa Imperfeição…
Nossa Senhora do Silêncio
Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folheio-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ler mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?
Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?
A minha vida é tão triste, e eu nem penso em chorá-la; as minhas horas tão falsas, e eu nem sonho o gesto de parti-las.
Como não te sonhar? Como não te sonhar? Senhora das Horas que passam, Madona das águas estagnadas e das algas mortas, Deusa Tutelar dos desertos abertos e das paisagens negras de rochedos estéreis — livra-me da minha mocidade.
Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa — livra-me da alegria e da felicidade.
Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono — faze com que eu seja odiado pelos homens e escarnecido pelas mulheres.
Címbalo de Extrema-Unção, Carícia sem gesto, Pomba morta à sombra, Óleo de horas passadas a sonhar — livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte.
Lírio fanando à tarde, Cofre de rosas murchas, silêncio entre prece e prece, enche-me de nojo de viver, de ódio de ser são, de desprezo por ser jovem.
Torna-me inútil e estéril, ó Acolhedora de todos os sonhos vagos; faze-me puro sem razão para o ser, e falso sem amor a sê-lo, ó Água Corrente das Tristezas Vividas; que a minha boca seja uma paisagem de gelos, os meus olhos dois lagos mortos, os meus gestos um esfolhar lento de árvores velhinhas — ó Ladainha de Desassossegos, ó Missa-Roxa de Cansaços, ó Corola, ó Fluido, ó Ascensão! …
Que pena eu ter de te rezar como a uma mulher, e não te querer como a um homem, e não te poder erguer os olhos do meu sonho como Aurora-ao-contrário do sexo irreal dos anjos que nunca entraram no céu!
***
Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa.
Que os teus atos sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação.
***
Esplendor do nada, nome do abismo, sossego do Além…
Virgem eterna antes dos deuses e dos pais dos deuses, e dos pais dos pais dos deuses, infecunda de todos os mundos, estéril de todas as almas…
A ti são oferecidos os dias e os seres; os astros são votos no teu templo, e o cansaço dos deuses volta ao teu regaço como a ave ao ninho que não sabe como fez.
Que do auge da angústia se aviste o dia, e, se nenhum dia se aviste, que seja esse o dia que se aviste!
Esplende, ausência de sol; brilha, luar que cessas…
Só tu, sol que não brilhas, alumias as cavernas, porque as cavernas são tuas filhas. Só tu, lua que não há, dás às grutas, porque as grutas [. . . ]
Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras. Mero perfil às vezes, mera atitude outras vezes, outras gesto lento apenas — és momentos, atitudes, espiritualizadas em minhas.
Nenhum fascínio do sexo se subentende no meu sonhar-te, sob a tua veste vaga de madona dos silêncios interiores. Os teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se. O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo. A matéria da tua carne, não é espiritual mas é espírito. És a mulher anterior à Queda, escultura ainda daquele barro que paraíso.
O meu horror às mulheres reais que têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro. As da terra, que para serem têm de suportar o peso movediço de um homem — quem as pode amar, que não se lhe desfolhe o amor na antevisão do prazer que serve o sexo [. . . ]? Quem pode respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela é uma mulher noutra posição de cópula… Quem não se enoja de ter mãe por ter sido tão vulvar na sua origem, tão nojentamente parido ? Que nojo de nós não punge a ideia da origem carnal da nossa alma — daquele inquieto corpóreo de onde a nossa carne nasce e, por bela que seja, se desfeia da origem e se nos enoja de nata.
Os idealistas falsos da vida real fazem versos à Esposa, ajoelham à ideia de Mãe… O seu idealismo é uma veste que tapa, não é um sonho que crie.
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
Como não te adorar, se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do amor?
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo, onde sem corpo tátil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
A arte de sonhar é difícil porque é uma arte de passividade, onde o que é de esforço é na concentração da ausência de esforço. A arte de dormir, se a houvesse, deveria ser de qualquer forma parecida com esta.
Repara bem: a arte de sonhar não é a arte de orientar os sonhos. Orientar é agir. O sonhador verdadeiro entrega-se a si próprio, deixa-se possuir por si próprio.
Foge a todas as provocações materiais. Há no início a tentação de te masturbares. Há a do álcool, a do ópio, a [. . . ]. Tudo isso é esforço e procura. Para seres um bom sonhador, tens de não ser senão sonhador. Ópio e morfina compram-se nas farmácias — como, pensando nisto, queres poder sonhar através deles? Masturbação é uma coisa física como queres tu que te sonhes masturbando-te, vá; que em sonhar talvez fumando ópio, recebendo morfina, te embriagues da ideia do ópio, da morfina dos sonhos — não há senão que elogiar-te por isso: estás no teu papel áureo de sonhador perfeito.
Julga-te sempre mais triste e mais infeliz do que és. Isso não faz mal.
É mesmo, por ilusão, um pouco escadas para o sonho.
Maneira de bem sonhar
— Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã. Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje.
— Nunca penses no que vais fazer. Não o faças.
— Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade e no erro, no gozo e no mal-estar, sê o teu próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando, porque a tua vida real, a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros. Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com perfeição. Em todos os teus atos da vida real, desde o de nascer até ao de morrer, tu não ages: és agido; tu não vives: és vivido apenas.
Torna-te, para os outros, uma esfinge absurda. Fecha-te, mas sem bater com a porta, na tua torre de marfim. E a tua torre de marfim és tu próprio.
E se alguém te disser que isto é falso e absurdo não o acredites. Mas não acredites também no que eu te digo, porque se não deve acreditar em nada.
Despreza tudo, mas de modo que o desprezar te não incomode. Não te julgues superior ao desprezares. A arte do desprezo nobre está nisso.
Maneira de bem sonhar
Com este sonhar tudo, tudo na vida te fará sofreres mais, será a tua cruz.
Maneira de bem sonhar nos metafísicos
Raciocínio, — tudo será fácil e, porque é tudo para mim sonho. Mando-me sonhá-lo e sonho-o. Às vezes crio em mim um filósofo, que me traça cuidadosamente as filosofias enquanto eu, pajem, namoro a filha dele, cuja alma sou, à janela da sua casa.
Limito-me, é claro, aos meus conhecimentos. Não posso criar um matemático… Mas contento-me com o que tenho, que dá para combinações infinitas e sonhos sem número. Quem sabe, de resto, se à força de sonhar, eu não conseguirei ainda mais. Mas não vale a pena. Basto-me assim.
Pulverização da personalidade. Não sei quais são as minhas ideias, nem os meus sentimentos, nem o meu caráter… Se sinto uma coisa, vagamente a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim. Substitui os meus sonhos a mim próprio. Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou.
Nunca ler um livro até ao fim, nem lê-lo a seguir e sem saltar.
Não soube nunca o que sentia. Quando me falavam de tal ou tal emoção e a descreviam, sempre senti que descreviam qualquer coisa da minha alma, mas, depois, pensando, duvidei sempre. O que me sinto ser, nunca sei se o sou realmente, ou se julgo que o sou apenas. Sou uma personagem de dramas meus.
O esforço é inútil, mas entretém. O raciocínio é estéril, mas é engraçado. Amar é maçador, mas é talvez preferível a não amar. O sonho, porém, substitui tudo. Nele pode haver toda a noção do esforço sem o esforço real. Dentro do sonho posso entrar em batalhas sem risco de ter medo ou de ser ferido. Posso raciocinar, sem que tenha em vista chegar a uma verdade, a que nunca chegue sem querer resolver um problema, que veja [que] nunca resolvo; sem que [. . . ]. Posso amar sem me recusarem ou me traírem, ou me aborrecerem. Posso mudar de amada e ela será sempre a mesma. E se quiser que me traia e se me esquive, tenho às ordens que isso me aconteça, e sempre como eu quero, sempre como eu o gozo. Em sonho posso viver as maiores angústias, as maiores torturas, as maiores vitórias. Posso viver tudo isso tal como se fora da vida: depende apenas do meu poder em tornar o sonho vívido, nítido, real. Isso exige estudo e paciência interior.
Há várias maneiras de sonhar. Uma é abandonar-se aos sonhos, sem procurar torná-los nítidos, deixar-se ir no vago e no crepúsculo das suas sensações. É inferior e cansa, porque esse modo de sonhar é monótono, sempre o mesmo. Há o sonho nítido e dirigido, mas aí o esforço em dirigir o sonho trai o artifício demasiadamente. O artista supremo, o sonhador como eu o sou, tem só o esforço de querer que o sonho seja tal, que tome tais caprichos… e ele desenrola-se diante dele assim como ele o desejaria, mas não poderia conceber, sem justificação de fazê-lo. Quero sonhar-me rei… Num ato brusco quero-o. E eis-me súbito rei dum país qualquer. Qual, de que espécie, o sonho mo dirá… Porque eu cheguei a esta vitória sobre o que sonho — que os meus sonhos trazem-me sempre inesperadamente o que eu quero. Muitas vezes aperfeiçoo, ao trazê-la nítida, a ideia cuja vaga ordem apenas recebera. Eu sou totalmente incapaz de idear conscientemente as Idades Médias de diversas épocas e de diversas Terras que tenho vivido em sonhos. Deslumbra-me o excesso de imaginação que desconhecia em mim e vou vendo. Deixo os sonhos ir… Tenho-os tão puros que eles excedem sempre o que eu espero deles. São sempre mais belos do que eu quero. Mas isto só o sonhador aperfeiçoado pode esperar obter. Tenho levado anos a buscar sonhadoramente isto. Hoje consigo-o sem esforço…
A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente à leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance, eis o primeiro passo. Que a nossa família e as suas mágoas nos pareçam chilras e nojentas ao lado dessas, eis o sinal do progresso.
É preciso evitar o ler romances literários onde a atenção seja desviada para a forma do romance. Não tenho vergonha em confessar que assim comecei. É curioso mas os romances policiais, os é que por uma intuição eu lia. Nunca pude ler romances amorosos detidamente. Mas isso é uma questão pessoal, por não ter feitio de amoroso, nem mesmo em sonhos. Cada qual cultive, porém, o feitio que tiver. Recordemo-nos sempre de que sonhar é procurarmo-nos. O sensual deverá, para suas leituras, escolher as opostas às que foram as minhas.
Quando a sensação física chega, pode dizer-se que o sonhador passou além do primeiro grau do sonho. Isto é, quando um romance sobre combates, fugas, batalhas, nos deixa o corpo realmente moído, as pernas cansadas… o primeiro grau está assegurado. No caso do sensual, deverá ele — sem receber a imagem mais que mentalmente — ter uma ejaculação quando um momento desses chegar no romance.
Depois procurará trazer tudo isso para mental. A ejaculação, no caso do sensual (que escolho para exemplo, porque é o mais violento e frisante) deverá ser sentida sem se ter dado. O cansaço será muito maior, mas o prazer é completamente mais intenso.
No terceiro grau passa toda a sensação a ser mental. Aumenta o prazer e aumenta o cansaço, mas o corpo já nada sente, e em vez dos membros lassos, a inteligência, a vida e a emoção é que ficam bambos e frouxos… Chegando aqui é tempo de passar para o grau supremo do sonho.
O segundo grau é o construir romances para si próprio. Só deve tentar-se isto quando está perfeitamente mentalizado o sonho, como antes disse. Se não, o esforço inicial em criar os romances, perturbará a perfeita mentalização do gozo.
Terceiro grau.
Já educada a imaginação, basta querer, e ela se encarregará de construir os sonhos por si.
Já aqui o cansaço é quase nulo, mesmo mental. Há uma dissolução absoluta da personalidade. Somos mera cinza, dotada de alma, sem forma — nem mesmo a da água que é a da vasilha que a contém.
Bem aprontada esta [. . . ], dramas podem aparecer em nós, verso a verso, desenrolando-se alheios e perfeitos. Talvez já não haja a força de os escrevermos… nem isso será preciso. Poderemos criar em segunda mão — imaginar em nós um poeta a escrever, e ele escrevendo de uma maneira, outro poeta entretanto escreverá de outra… Eu, em virtude de ter apurado imenso esta faculdade, posso escrever de inúmeras maneiras diversas, originais todas.
O mais alto grau do sonho é quando, criado um quadro com personagens, vivemos todas elas ao mesmo tempo — somos todas essas almas conjunta e interativamente. É incrível o grau de despersonalização e encinzamento do espírito a que isto leva e é difícil, confesso-o, fugir a um cansaço geral de todo o ser ao fazê-lo… Mas o triunfo é tal!
Este é o único ascetismo final. Não há nele fé, nem um Deus.
Deus sou eu.
Marcha fúnebre
Que faz cada um neste mundo, que o perturbe ou o altere? Cada homem que vale, que outro homem não valha? Valem os homens vulgares uns pelos outros, os homens de ação pela força que interpretam, os homens do pensamento por o que criam.
O que criaste para a humanidade, está à mercê do esfriamento da Terra. O que deste aos pósteros, ou é cheio de ti, e ninguém o entenderá, ou da tua época, e as outras épocas não o entenderão, ou tem apelo para todas as épocas e não o entenderá o abismo final, em que todas as épocas se precipitam.
Fazemos, janelas, gestos na sombra. Por detrás de nós o Mistério nos [. . . ]
Somos todos mortais, com uma duração justa. Nunca maior ou menor. Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco, na memória dos que os viram e amaram; outros, ficam na memória da nação que os teve; alguns alcançam a memória da civilização que os possuiu; raros abrangem, de lado a lado, o lapso contrário de civilizações diferentes. Mas a todos cerca o abismo do tempo, que por fim os some, a todos come a fome do abismo, que o perene é um Desejo, e o eterno uma ilusão.
Morte somos e morte vivemos. Mortos nascemos, mortos passamos; mortos já, entramos na Morte.
Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida.
A vida é pois um intervalo, um nexo, uma relação, mas uma relação entre o que passou e o que passará, intervalo morto entre a Morte e a Morte.
… a inteligência, ficção da superfície e do descaminho.
A vida da matéria ou é puro sonho, ou mero jogo atômico, que desconhece as conclusões da nossa inteligência e os motivos da nossa emoção. Assim a essência da vida é um olhar, uma aparência, e ou é só ser ou não ser, e a ilusão e aparência de nada ser, tem que ser não-ser, a vida é a morte.
Vão o esforço que constrói com os olhos na ilusão de não morrer! “Poema eterno”, dizemos nós; “palavras que nunca morrerão”. Mas o esfriamento material da terra levará não só os vivos que a cobrem, como o um Homero ou um Milton não podem mais que um cometa que bata na terra.
Marcha fúnebre para o rei Luís Segundo da Baviera
Hoje, mais demorada do que nunca, veio a Morte vender ao meu limiar. Diante de mim, mais demorada do que nunca, desdobrou os tapetes, as sedas, e os damascos, do seu esquecimento e da sua consolação. Sorria deles, por elogio, e não se importando que eu a visse. Mas quando eu me tentava por comprar, falou-me que não os vendia. Não viera para que eu quisesse o que me mostrava mas para que, por o que mostrava, a quisesse a ela. E, dos seus tapetes, disse-me que eram os que se gozavam no seu palácio longínquo; das suas sedas, que outras se não trajavam no seu castelo na sombra; dos seus damascos, que melhores ainda eram os que cobriam, toalhas, os retábulos da sua estância para além do mundo.
O apego natal, que me prendia ao meu limiar desvestido, com gesto suave o desligou. “O teu lar”, disse, “não tem lume: para que queres tu ter um lar? ” “A tua casa ”, disse, “não tem pão: para que te serve a tua mesa? ” “A tua vida”, disse, “não tem quem a acompanha: para que te seduz a tua vida? ”
“Eu sou”, disse ela, “o lume das lareiras apagadas, o pão das mesas desertas, a companheira solícita dos solitários e dos incompreendidos. A glória, que falta no mundo, é pompa no meu negro domínio. No meu império o amor não cansa, porque sofra por ter; nem dói, porque canse de nunca ter tido. A minha mão pousa de leve nos cabelos dos que pensam, e eles esquecem; contra o meu seio se encostam os que em vão esperaram, e eles enfim confiam. ”
“O amor, que me têm”, ela disse, “não tem paixão que consuma; ciúme que desvaire; esquecimento que deslustre. Amar-me é como uma noite de verão, quando os mendigos dormem ao relento, e parecem pedras à beira dos caminhos. Dos meus lábios mudos não vem canto como o das sereias, nem melodia como a das árvores e das fontes; mas o meu silêncio acolhe como uma música indecisa, o meu sossego afaga como o torpor de uma brisa. ”
“Que tens tu”, ela disse, “que te ligue à vida? O amor não te busca, a glória não te procura, o poder não te encontra. A casa, que herdaste, a herdaste em ruínas. As terras, que recebeste, tinha a geada queimado as suas primícias, e o sol ardido as suas promessas. Nunca viste, senão seco, o poço da tua quinta. Apodreceram, de antes de as veres, as folhas nos teus tanques. As ervas ruins cobriram as áleas e as alamedas, por onde os teus pés nunca passaram. ”
“Mas no meu domínio, onde só a noite reina, terás a consolação, porque não terás a esperança; terás o esquecimento, porque não terás o desejo terás o repouso, porque não terás a vida. ”
E mostrou-me como era estéril a esperança de melhores dias, quando se não nascera com alma, em que os dias bons se obtivessem. Mostrou-me como o sonho não consola, porque a vida dói mais quando se acorda. Mostrou-me como o sono não repousa, porque o habitam fantasmas, sombras das coisas, rastos dos gestos, embriões mortos dos desejos, despojos do naufrágio de viver.
E, assim dizendo, dobrava devagar, mais demorada do que nunca, os seus tapetes, onde os meus olhos se tentavam, as suas sedas, que a minha alma cobiçava, os damascos dos seus retábulos, onde já as minhas lágrimas caíam.
“Por que hás-de tentar ser como os outros, se estás condenado a ti? Para que hás-de rir, se, quando ris, a tua própria alegria sincera é falsa, porque nasce de te esqueceres de quem és? Para que hás-de chorar, se sentes que de nada te serve, e choras mais as lágrimas não te consolarem, que porque as lágrimas te consolem?
Se és feliz quando ris, quando ris venci; se então és feliz, porque te não lembras de quem és, quão mais feliz serás comigo, onde não mais te lembrarás de nada? Se descansas perfeitamente, se acaso dormes sem sonhar, como não descansarás no meu leito, onde o sono nunca tem sonhos? Se um momento te elevas, porque vês a Beleza, e te esqueces de ti e da Vida, como não te elevarás no meu palácio, cuja beleza noturna não sofre discordância, nem idade, nem corrupção; nas minhas salas onde nenhum vento perturba os reposteiros, nenhum pó cobre os espaldares, nenhuma luz desbota, pouco a pouco, os veludos e os estofos, nenhum tempo amarelece a brancura dos ornatos brancos.
Vem ao meu carinho, que não sofre mudança; ao meu amor, que não tem cessação! Bebe da minha taça, que não se esgota, o néctar supremo que não enjoa nem amarga, que não desgosta nem inebria. Contempla, da janela do meu castelo, não o luar e o mar, que são coisas belas e por isso imperfeitas; mas a noite vasta e materna, o esplendor indiviso do abismo profundo!
Nos meus braços esquecerás o próprio caminho doloroso que te trouxe a eles. Contra o meu seio não sentirás mais o próprio amor que fez com que o buscasses! Senta-te ao meu lado, no meu trono, e és para sempre o Imperador indestronável do Mistério e do Graal, coexistes com os deuses e com os destinos, em não seres nada, em não teres aquém e além, em não precisares nem do que te sobre, nem sequer mesmo do que te falte, nem sequer mesmo do que te baste.
Serei tua esposa materna, tua irmã gêmea encontrada. E casadas comigo todas as tuas angústias, reservado a mim tudo o que em ti procuravas e não tinhas, tu próprio te perderás em minha substância mística, na minha existência negada, no meu seio onde as coisas se apagam, no meu seio onde as almas se abismam, no meu seio onde os deuses se desvanecem. ”
Senhor Rei do Desapego e da Renúncia, Imperador da Morte e do Naufrágio, sonho vivo errando, faustoso, entre as ruínas e as estradas do mundo!
Senhor Rei da Desesperança entre pompas, dono doloroso dos palácios que o não satisfazem, mestre dos cortejos e dos aparatos que não conseguem apagar a vida! …
Senhor Rei erguido dos túmulos, que viestes na noite e ao luar, contar a tua vida às vidas, pajem dos lírios desfolhados, arauto imperial da frieza dos marfins!
Senhor Rei Pastor das Vigílias, cavaleiro andante das Angústias, sem glória e sem dama ao luar das estradas, senhor nas florestas, nas escarpas, perfil mudo, de viseira caída passando nos vales, incompreendido pelas aldeias, chasqueado pelas vilas, desprezado pelas cidades!
Senhor Rei que a Morte sagrou Seu, pálido e absurdo, esquecido e desconhecido, reinando entre pedras foscas e veludos velhos, no seu trono ao fim do Possível, com a sua corte irreal cercando-o, sombras, e a sua milícia fantástica, guardando-o, misteriosa e vazia.
Trazei, pajens; trazei, virgens; trazei servos e servas, as taças, as salvas e as grinaldas para o festim a que a Morte assiste ! Trazei-as e vinde de negro, com a cabeça coroada de mirtos.
Mandrágora seja o que tragais nas taças, [. . . ] nas salvas, e as grinaldas sejam de violetas [. . . ], das flores todas que lembrem a tristeza.
Vai o Rei a jantar com a Morte, no seu palácio antigo, à beira do lago, entre as montanhas, longe da vida, alheio ao mundo.
Sejam de instrumentos estranhos, cujo mero som faça chorar, as orquestras que se preparam para a festa. Os servos vistam librés sóbrias, de cores desconhecidas, faustosos e simples como os catafalcos dos heróis.
E antes que o festim comece, passe pelas alamedas dos grandes parques o grande cortejo medieval de púrpuras mortas, o grande cerimonial silencioso em marcha, como a beleza num pesadelo.
A Morte é o triunfo da Vida!
Pela morte vivemos, porque só somos hoje porque morremos para ontem. Pela morte esperamos, porque só podemos crer em amanhã pela confiança na morte de hoje. Pela Morte vivemos quando sonhamos, porque sonhar é negar a vida. Pela morte morremos quando vivemos, porque viver é negar a eternidade! A Morte nos guia, a morte nos busca, a morte nos acompanha. Tudo o que temos é morte, tudo o que queremos é morte, é morte tudo o que desejamos querer.
Uma brisa de atenção percorre as alas.
Ei-lo que vai chegar, com a morte que ninguém vê e a que não chega nunca.
Arautos, tocai! Atendei!
Teu amor pelas coisas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
Rei-Virgem que desprezaste o amor, Rei-Sombra que desdenhaste a luz, Rei-Sonho que não quiseste a vida!
Entre o estrépito surdo de címbalos e atabales, a Sombra te aclama Imperador!
Máximas
— Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e caráter fixo e conhecido — tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um fato, de a materializar e tornar exterior. Viver num doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio é o único modo de vida que a um sábio convém e aquece.
— Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência.
— A nossa personalidade deve ser indevassável, mesmo por nós próprios: daí o nosso dever de sonharmos sempre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para que nos não seja possível ter opiniões a nosso respeito.
E especialmente devemos evitar a invasão da nossa personalidade pelos outros. Todo o interesse alheio por nós é uma indelicadeza ímpar. O que desloca a vulgar saudação — como está? — de ser uma indesculpável grosseria é o ser ela em geral absolutamente oca e insincera.
— Amar é cansar-se de estar só: é uma covardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos).
— Dar bons conselhos é insultar a faculdade de errar que Deus deu aos outros. E, de mais a mais, os atos alheios devem ter a vantagem de não serem também nossos. Apenas é compreensível que se peça conselhos aos outros para saber bem, ao agir ao contrário, que somos bem nós, bem em desacordo com a Outragem.
— A única vantagem de estudar é gozar o quanto os outros não disseram.
— A arte é um isolamento. Todo o artista deve buscar isolar os outros, levar-lhes às almas o desejo de estarem sós. O triunfo supremo de um artista é quando ao ler suas obras o leitor prefere tê-las e não as ler. Não é porque isto aconteça aos consagrados; é porque é o maior tributo.
— Ser lúcido é estar indisposto consigo próprio. O legítimo estado de espírito com respeito a olhar para dentro de si próprio é o estado de quem olha nervos e indecisões.
— A única atitude intelectual digna de uma criatura superior é a de uma calma e fria compaixão por tudo quanto não é ele próprio. Não que essa atitude tenha o mínimo cunho de justa e verdadeira; mas é tão invejável que é preciso tê-la.
Milímetros
(sensações de coisas mínimas)
Como o presente é antiquíssimo, porque tudo, quando existiu foi presente, eu tenho para as coisas, porque pertencem ao presente, carinhos de antiquário, e fúrias de colecionador precedido para quem me tira os meus erros sobre as coisas com plausíveis, e até verdadeiras, explicações científicas e baseadas.
As várias posições que uma borboleta que voa ocupa sucessivamente no espaço são aos meus olhos maravilhados várias coisas que ficam no espaço visivelmente. As minhas reminiscências são tão vívidas que só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssimas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amor ao fútil que isto me acontece. Pode ser que seja pelo meu escrúpulo no detalhe. Mas creio mais — não o sei, estas são as coisas que eu nunca analiso — que é porque o mínimo, por não ter absolutamente importância nenhuma social ou prática, tem, pela mera ausência disso, uma independência absoluta de associações sujas com a realidade. O mínimo sabe-me a irreal. O inútil é belo porque é menos real que o útil, que se continua e prolonga, ao passo que o maravilhoso fútil, o glorioso infinitesimal fica onde está, não passa de ser o que é, vive liberto e independente, O inútil e o fútil abrem na nossa vida real intervalos de estética humilde. Quanto não me provoca na alma de sonhos e amorosas delícias a mera existência insignificante dum alfinete pregado numa fita! Triste de quem não sabe a importância que isso tem!
Depois, entre as sensações que mais penetrantemente doem até serem agradáveis, o desassossego do mistério é uma das mais complexas e extensas. E o mistério nunca transparece tanto como na contemplação das pequeninas coisas, que, como se não movem, são perfeitamente translúcidas a ele, que param para o deixar passar. É mais difícil ter o sentimento do mistério contemplando uma batalha, e contudo pensar no absurdo que é haver gente, e sociedades e combates delas é o que mais pode desfraldar dentro do nosso pensamento a bandeira de conquista do mistério — do que diante da contemplação duma pequena pedra parada numa estrada, que, porque nenhuma ideia provoca além da de que existe, outra ideia não pode provocar, se continuarmos pensando, do que, imediatamente a seguir, a do seu mistério de existir.
Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes. Os milímetros — que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso.
Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. Todos os detalhes se me gravam desproporcionadamente a haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo exterior é-me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço de que sinto.
Na Floresta do alheamento
Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cedo ainda… Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê…
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta… Para quê há-de um dia raiar? … Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Boio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este…
Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
Que nítida de outra e de ela essa trêmula paisagem transparente! …
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar? … Eu nem sei querê-lo saber…
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem… e a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar, que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver…
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto, um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo…
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa… E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível…
Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher… Um grande cansaço é um fogo negro que me consome… Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita…
Ó felicidade baça! … O eterno estar no bifurcar dos caminhos! … Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém… E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe…
Lá fora a antemanhã tão longínqua! a floresta tão aqui ante outros olhos meus!
E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro…
As árvores! as flores! o esconder-se copado dos caminhos! …
Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor…
No nosso jardim havia flores de todas as belezas… — rosas de contornos enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoulas que seriam ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem rufada dos canteiros, miosótis mínimos, camélias estéreis de perfume… E, pasmados por cima das ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.
Nós roçávamos a alma toda vista pelo frescor visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras… E subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos…
Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes… Plátanos estacavam… E ao longe, entre árvore e árvore de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas…
O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.
A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos…
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem? …
Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais… Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena…
O movimento parado das árvores; o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade do espaço… Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali! … Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa… E nós não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada.
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal…
Orlas de mares desconhecidos tocavam, no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis e comandados da Terra.
Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos.
E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais…
Ali vivemos horas cheias de um outro sentirmo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza retângula da vida… Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angústias…
E doía-nos gozar aquilo, doía-nos… Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era úmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto…
Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.
O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastado num cerimonial no crepúsculo.
Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada.
Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa ideia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa ideia de haver a nossa vida…
Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo, riríamos sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus.
Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós… Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento…
E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra…
As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos nomes… Flores cujos nomes eram repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros… Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas… Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa… Sombras que eram relíquias de outroras felizes… Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima… Ó horas multicolores! … Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores! …
Loucura de sonho naquele silêncio alheio! …
A nossa vida era toda a vida… O nosso amor era o perfume do amor… Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós… E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade…
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer… Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria… E assim como ela era duas — de realidade que era, e ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria…
Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar… Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser… Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos… E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto…
E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos… Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa…
Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão tênues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos…
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparamos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser…
Zumbe uma mosca, incerta e mínima…
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto… Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece…
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora…
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos…
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos…
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto de nossa Imperfeição…
Nossa Senhora do Silêncio
Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folheio-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ler mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?
Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?
A minha vida é tão triste, e eu nem penso em chorá-la; as minhas horas tão falsas, e eu nem sonho o gesto de parti-las.
Como não te sonhar? Como não te sonhar? Senhora das Horas que passam, Madona das águas estagnadas e das algas mortas, Deusa Tutelar dos desertos abertos e das paisagens negras de rochedos estéreis — livra-me da minha mocidade.
Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa — livra-me da alegria e da felicidade.
Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono — faze com que eu seja odiado pelos homens e escarnecido pelas mulheres.
Címbalo de Extrema-Unção, Carícia sem gesto, Pomba morta à sombra, Óleo de horas passadas a sonhar — livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte.
Lírio fanando à tarde, Cofre de rosas murchas, silêncio entre prece e prece, enche-me de nojo de viver, de ódio de ser são, de desprezo por ser jovem.
Torna-me inútil e estéril, ó Acolhedora de todos os sonhos vagos; faze-me puro sem razão para o ser, e falso sem amor a sê-lo, ó Água Corrente das Tristezas Vividas; que a minha boca seja uma paisagem de gelos, os meus olhos dois lagos mortos, os meus gestos um esfolhar lento de árvores velhinhas — ó Ladainha de Desassossegos, ó Missa-Roxa de Cansaços, ó Corola, ó Fluido, ó Ascensão! …
Que pena eu ter de te rezar como a uma mulher, e não te querer como a um homem, e não te poder erguer os olhos do meu sonho como Aurora-ao-contrário do sexo irreal dos anjos que nunca entraram no céu!
***
Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa.
Que os teus atos sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação.
***
Esplendor do nada, nome do abismo, sossego do Além…
Virgem eterna antes dos deuses e dos pais dos deuses, e dos pais dos pais dos deuses, infecunda de todos os mundos, estéril de todas as almas…
A ti são oferecidos os dias e os seres; os astros são votos no teu templo, e o cansaço dos deuses volta ao teu regaço como a ave ao ninho que não sabe como fez.
Que do auge da angústia se aviste o dia, e, se nenhum dia se aviste, que seja esse o dia que se aviste!
Esplende, ausência de sol; brilha, luar que cessas…
Só tu, sol que não brilhas, alumias as cavernas, porque as cavernas são tuas filhas. Só tu, lua que não há, dás às grutas, porque as grutas [. . . ]
Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras. Mero perfil às vezes, mera atitude outras vezes, outras gesto lento apenas — és momentos, atitudes, espiritualizadas em minhas.
Nenhum fascínio do sexo se subentende no meu sonhar-te, sob a tua veste vaga de madona dos silêncios interiores. Os teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se. O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo. A matéria da tua carne, não é espiritual mas é espírito. És a mulher anterior à Queda, escultura ainda daquele barro que paraíso.
O meu horror às mulheres reais que têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro. As da terra, que para serem têm de suportar o peso movediço de um homem — quem as pode amar, que não se lhe desfolhe o amor na antevisão do prazer que serve o sexo [. . . ]? Quem pode respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela é uma mulher noutra posição de cópula… Quem não se enoja de ter mãe por ter sido tão vulvar na sua origem, tão nojentamente parido ? Que nojo de nós não punge a ideia da origem carnal da nossa alma — daquele inquieto corpóreo de onde a nossa carne nasce e, por bela que seja, se desfeia da origem e se nos enoja de nata.
Os idealistas falsos da vida real fazem versos à Esposa, ajoelham à ideia de Mãe… O seu idealismo é uma veste que tapa, não é um sonho que crie.
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
Como não te adorar, se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do amor?
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo, onde sem corpo tátil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
