Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de
classificáveis
incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.
Pessoa - Livro do Desassossego
A sorte grande da vida sai somente aos que compraram por acaso.
A arte tem valia porque nos tira de aqui.
[362]
É legitima toda a violação da lei moral que é feita em obediência a uma lei moral superior. Não é desculpável roubar um pão por ter fome. É desculpável a um artista roubar dez contos para garantir por dois anos a sua vida e tranquilidade, desde que a sua obra tenda a um fim civilizacional; se é uma mera obra estética, não vale o argumento.
[363]
Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós… E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria…
Possuímos a alma? Ouve-me em silêncio: Nós não a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e alma há o abismo de serem almas.
Que possuímos? que possuímos? Que nos leva a amar? A beleza? E nós possuímo-la amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um corpo lindo não abraça a beleza, abraça a carne celulada e gordurosa; o beijo não toca na beleza da boca, mas na carne úmida dos lábios perecíveis e mucosas; a própria cópula é um contato apenas, um contato esfregado e próximo, mas não uma penetração real, sequer de um corpo por outro corpo… Que possuímos nós? que possuímos?
As nossas sensações, ao menos? Ao menos o amor é um meio de nos possuirmos, a nós, nas nossas sensações? é, ao menos, um modo de sonharmos nitidamente, e mais gloriosamente portanto, o sonho de existirmos? e, ao menos, desaparecida a sensação, fica a memória dela conosco sempre, e assim, realmente possuímos…
Desenganemos até disto. Nós nem as nossas sensações possuímos. Não fales. A memória, afinal, é a sensação do passado… E toda a sensação é uma ilusão.
— Escuta-me, escuta-me sempre. Escuta-me e não olhes pela janela aberta a plana outra margem do rio, nem o crepúsculo, nem esse silvo de um comboio que corta o longe vago. — Escuta-me em silêncio…
Nós não possuímos as nossas sensações… Nós não nos possuímos nelas.
(Urna inclinada, o crepúsculo verte sobre nós um óleo de onde as horas, pétalas de rosas, bóiam espaçadamente. )
[364]
Eu não possuo o meu corpo — como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma — como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito — como através dele compreender?
Não possuímos nem o corpo nem uma verdade — nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro.
Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer — eu sou eu?
Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.
Quando outrem possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?
Se do que comes, dissesses, “eu possuo isto”, eu compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o incluis em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes não falas tu de “posse”. A que chamas tu possuir?
[365]
A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz — tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra.
Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor.
Meu destino é a decadência.
Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas.
[366]
Paisagens inúteis como aquelas que dão a volta às chávenas chinesas, partindo da asa e vindo acabar na asa, de repente. As chávenas são sempre tão pequenas… Para onde se prolongaria, e com que de porcelana, a paisagem que não se prolongou para além da asa da chávena?
É possível a certas almas sentir uma dor profunda por a paisagem pintada num abano chinês não ter três dimensões.
[367]
… e os crisântemos adoecem a sua vida lassa em jardins apenumbrados de contê-los.
… a luxúria japonesa de ter evidentemente duas dimensões apenas.
… a existência colorida sobre transparências baças das figuras japonesas nas chávenas.
… uma mesa posta para um chá discreto — mero pretexto para conversas inteiramente estéreis — teve sempre para mim qualquer coisa de ente e individualidade com alma. Forma, como um organismo, um todo sintético! Que não é a pura soma das partes que o compõem.
[368]
E os diálogos nos jardins fantásticos que contornam nada definidamente certas chávenas? Que palavras sublimes não devem estar trocando as duas figuras que se assentam no lado de lá daquele bule! E eu sem ouvidos apropriados para as ouvir, morto na policroma humanidade!
Deliciosa psicologia das coisas deveras estáticas! A eternidade tece-a e o gesto que uma figura pintada tem desdenha, do alto da sua eternidade visível, a nossa transitória febre, que nunca se fixa numa atitude nem se demora nos portões de um esgar.
Que curioso deve ser o folclore do colorido povo dos painéis! Os amores das figuras bordadas — amores de duas dimensões, duma castidade geométrica — devem ser para entretenimento dos psicólogos ouvidos.
Não amamos, senão que fingimos amar. O verdadeiro amor, o imortal e inútil, pertence àquelas figuras em que a mudança não entra, por sua natureza de estáticas. Desde que eu o conheço, o japonês que se senta na convexa do meu bule não mudou ainda… Não saboreou nunca as mãos da mulher que está a um distar errado dele. Um colorido extinto como de um sol despejado, entornado, irrealiza eternamente as encostas desse monte. E tudo aquilo obedece a um instante de pena — pena mais fiel do que esta que inutilmente preenchesse a fragilidade das minhas horas exaustas.
[369]
Nesta era metálica dos bárbaros só um culto metodicamente excessivo das nossas faculdades de sonhar, de analisar e de atrair pode servir de salvaguarda à nossa personalidade, para que se não desfaça ou para nula ou para idêntica às outras.
O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não nossas. O que há de comum nas sensações é que forma a realidade. Por isso a nossa individualidade nas nossas sensações está só na parte enorme delas. A alegria que eu teria se visse um dia o sol escarlate. Seria tão meu aquele sol, só meu!
[370]
Nunca deixo saber aos meus sentimentos o que lhes vou fazer sentir… Brinco com as minhas sensações como uma princesa cheia de tédio com os seus grandes gatos prontos e cruéis…
Fecho subitamente portas dentro de mim, por onde certas sensações iam passar para se realizarem. Retiro bruscamente do seu caminho os objetos espirituais que lhes vão vincar certos gestos.
Pequenas frases sem sentido, metidas nas conversas que supomos estar tendo; afirmações absurdas feitas com cinzas de outras que já de si não significam nada…
— O seu olhar tem qualquer coisa de música tocada a bordo dum barco, no meio misterioso de um rio com florestas na margem oposta…
— Não diga que é fria uma noite de luar. Abomino as noites de luar… Há quem costume realmente tocar música nas noites de luar… — Isso também é possível… E é lamentável, está claro… Mas o seu olhar tem realmente o desejo de ser saudoso de qualquer coisa… Falta-lhe o sentimento que exprime… Acho na falsidade da sua expressão uma quantidade de ilusões que tenho tido…
— Creia que sinto às vezes o que digo, e até, apesar de mulher, o que digo com o olhar…
— Não está sendo cruel para consigo própria? Nós sentimos realmente o que pensamos que estamos sentindo? Esta nossa conversa, por exemplo, tem visos de realidade? Não tem. Num romance não seria admitida.
— Com muita razão… Eu não tenho a absoluta certeza de estar falando consigo, repare… Apesar de mulher, criei-me um dever de ser estampa de um livro de impressões de um desenhista doido… Tenho em mim detalhes exageradamente nítidos… Dá um pouco, bem sei, a impressão de realidade excessiva e um pouco forçada… Acho que a única coisa digna de uma mulher contemporânea é este ideal de ser estampa. Quando eu era criança queria ser a rainha dum naipe qualquer num baralho de cartas antigo que havia em minha casa… Achava esse mister de uma heráldica realmente compassiva… Mas quando se é criança, tem-se aspirações morais destas… Só depois, na idade em que as nossas aspirações são todas imorais, é que pensamos nisso a serto…
— Eu, como nunca falo a crianças, creio no instinto artista delas… Sabe, enquanto estou falando, agora mesmo, eu estou querendo penetrar o íntimo sentido dessas coisas que me estava dizendo… Perdoa-me?
— Não de todo… Nunca se deve devassar os sentimentos que os outros fingem que têm. São sempre demasiadamente íntimos… Acredite que me dói realmente estar-lhe fazendo estas confidências íntimas, que, se bem que todas elas falsas, representam verdadeiros farrapos da minha pobre alma… No fundo, acredite, o que somos de mais doloroso é o que não somos realmente, e as nossas maiores tragédias passam-se na nossa ideia de nós.
— Isso é tão verdadeiro… Para que dizê-lo? Feriu-me. Para que tirar à nossa conversa a sua irrealidade constante? Assim é quase uma conversa possível, passada a uma mesa de chá, entre uma mulher linda e um imaginador de sensações.
— Sim, sim… É a minha vez de pedir perdão… Mas olhe que eu estava distraída e não reparei realmente em que tinha dito uma coisa justa… Mudemos de assunto… Que tarde que é sempre! … Não se torne a zangar… Olhe que esta minha frase não tem sentido absolutamente nenhum…
—Não me peça desculpas, não repare em que estamos falando… Toda a boa conversa deve ser um monólogo de dois… Devemos, no fim, não poder ter a certeza se conversamos realmente com alguém ou se imaginamos totalmente a conversa… As melhores e as mais íntimas conversas, e sobretudo as menos moralmente instrutivas, são aquelas que os romancistas têm entre duas personagens das suas novelas… Como exemplo…
— Por amor de Deus! Não ia decerto citar-me um exemplo… Isso só se faz nas gramáticas; não sei se se recorda que até nunca as lemos.
—Leu alguma vez uma gramática?
— Eu nunca. Tive sempre uma aversão profunda a saber como se dizem as coisas… A minha única simpatia, nas gramáticas, ia para as exceções e para os pleonasmos… Escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna… Não é assim que se diz? …
— Absolutamente… O que tem de antipático nas gramáticas (já reparou na deliciosa impossibilidade de estarmos falando neste assunto? ) — o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos… São as palavras que dão sentido às frases… Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos… Os verbos! … Um amigo meu que se suicidou — cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo — tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos…
—Ele por que se suicidou?
— Espere, ainda não sei… Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costumava dizer-me que procurava o micróbio da significação… Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si… A importância do problema deu-lhe cabo do cérebro… Um revólver e…
—Ah, não… Isso de modo algum… Não vê que não podia ser um revólver? … Um homem desses nunca dá um tiro na cabeça… O senhor pouco se entende com os amigos que nunca teve… É um defeito grande, sabe? … A minha melhor amiga — uma deliciosa rapaz que eu inventei —
—Dão-se bem?
— Tanto quanto é possível… Mas essa rapariga, não imagina,
As duas criaturas que estavam à mesa de chá não tiveram com certeza esta conversa. Mas estavam tão alinhadas e bem vestidas que era pena que não falassem assim… Por isso escrevi esta conversa para elas a terem tido… As suas atitudes, os seus pequenos gestos, as suas criancices de olhares e sorrisos, momentos de conversa que ambos entendemos no sentimento de existirmos, disseram nitidamente o que falsamente finjo que reporto… Quando eles um dia forem ambos e sem dúvida casados cada um para seu lado — em intentos demais juntos, para poderem casar um com o outro —, se eles por acaso olharem para estas páginas, acredito que reconhecerão o que nunca disseram e que não deixarão de me ser gratos por eu ter interpretado tão bem, não só o que eles são realmente, mas o que eles nunca desejaram ser nem sabiam que eram…
Eles, se me lerem, acreditem que foi isto que realmente disseram. Na conversa aparente que eles escutaram um ao outro faltavam tantas coisas que — faltou o perfume da hora, o aroma do chá, a significação para o caso do ramo de que ela tinha ao peito… Tudo isso, que assim formou parte da conversa, eles se esqueceram de dizer… Mas tudo isto lá estava e o que eu faço é, mais do que um trabalho literário, um trabalho de historiador. Reconstruo, completando… e isso me servirá de desculpa junto deles, de ter estado tão fixamente a escutar-lhes o que diziam e não queriam dizer.
[371]
Apoteose do absurdo
Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.
Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de ação útil e profícua. O absurdo salva de chegar a pesar de tédio aquele estado de alma que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.
E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.
[372]
Apoteose do absurdo
Absurdemos a vida, de leste a oeste.
[373]
A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.
Quem está ao canto da sala dança com todos os dançarmos. Vê tudo, e, porque vê tudo, vive tudo. Como tudo, em súmula e ultimidade, é uma sensação nossa, tanto vale o contato com um corpo como a visão dele, ou, até, a sua simples recordação. Danço, pois, quando vejo dançar. Digo, como o poeta inglês, narrando que contemplava, deitado na erva ao longe, três ceifeiros:
“Um quarto está ceifando, e esse sou eu. ”
Vem isto tudo, que vai dito como vai sentido, a propósito do grande cansaço, aparentemente sem causa, que desceu hoje súbito sobre mim. Estou não só cansado, mas amargurado, e a amargura é incógnita também. Estou, de angustiado, à beira de lágrimas — não de lágrimas que se choram, mas que se reprimem, lágrimas de uma doença da alma, que não de uma dor sensível.
Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei. Meu corpo muscular está moído do esforço que nem pensei em fazer.
Baço, mudo, nulo… O céu ao alto é de um verão morto, imperfeito. Olho-o como se ele ali não estivesse. Durmo o que penso, estou deitado andando, sofro sem sentir. A minha grande nostalgia é de nada, é nada, como o céu alto que não vejo, e que estou fitando impessoalmente.
[374]
Na perfeição nítida do dia estagna contudo o ar cheio de sol. Não é a pressão presente da trovoada futura, mal-estar dos corpos involuntários, vago baço do céu azul deveras. É o torpor sensível da insinuação do ócio, pluma roçando leve a face a adormecer. É estio mas verão. Apetece o campo até a quem não gosta dele.
Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz, pois o sentiria sem pensar nele. Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho normal — aquele que me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o carro para Benfica, com amigos combinados. Jantaríamos em pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, reconhecida como de ali.
Como, porém, sou eu, gozo um pouco o pouco que é imaginar-me esse outro. Sim, logo ele-eu, sob parreira ou árvore, comerá o dobro do que sei comer, beberá o dobro do que ouso beber, rirá o dobro do que posso pensar em rir. Logo ele, eu agora. Sim, um momento fui outro: vi, vivi, em outrem, essa alegria humilde e humana de existir como um animal em mangas de camisa. Grande dia que me fez sonhar assim! É tudo azul e sublime no alto como o meu sonho efêmero de ser caixeiro de praça com saúde em não sei que férias de fim de dia.
[375]
O campo é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e verdadeiro arvoredo.
A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final.
O milagre é a preguiça de Deus, ou, antes, a preguiça que Lhe atribuímos, inventando o milagre.
Os Deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser.
O cansaço de todas as hipóteses…
[376]
A leve embriaguez da febre ligeira, quando um desconforto mole e penetrante e frio pelos ossos doridos fora e quente nos olhos sob têmporas que batem — a esse desconforto quero como um escravo a um tirano amado. Dá-me aquela quebrada passividade trêmula em que entrevejo visões, viro esquinas de ideias e entre entrepolamentos de sentimentos me desconcerto.
Pensar, sentir, querer, tornam-se uma só confusa coisa. As crenças, as sensações, as coisas imaginadas e as atuais estão desarrumadas, são como o conteúdo misturado no chão, de várias gavetas subvertidas.
[377]
A sensação da convalescença, sobretudo se se fez mal sentir nos nervos a doença que a precedeu, tem qualquer coisa de alegria triste. Há um outono nas emoções e nos pensamentos, ou, antes, um daqueles princípios de primavera que, salvo que não caem folhas, parecem, no ar e no céu, o outono.
O cansaço sabe bem, e o bem que sabe dói um pouco. Sentimo-nos um pouco à parte da vida, ainda que nela, como que na varanda da casa de viver.
Estamos contemplativos sem pensar, sentimos sem emoção definível. A vontade sossega, pois não há necessidade dela.
É então que certas memórias, certas esperanças, certos vagos desejos sobem lentamente a rampa da consciência, como caminheiros vagos vistos do alto do monte. Memórias de coisas fúteis, esperança de coisas que não fez mal que não fossem, desejos que não tiveram violência de natureza ou de emissão, que nunca puderam querer ser.
Quando o dia se ajusta a estas sensações, como hoje, que, ainda que estio, está meio nublado com azuis, e um vago vento que por não ser quente é quase frio, então aquele estado de alma se acentua em que pensamos, sentimos, vivemos estas impressões. Não que sejam mais claras as memórias, as esperanças, os desejos que tínhamos. Mas sente-se mais, e a sua soma incerta pesa um pouco, absurdamente, sobre o coração.
Há qualquer coisa de longínquo em mim neste momento. Estou de fato à varanda da vida, mas não é bem desta vida. Estou por sobre ela, e vendo-a de onde vejo. Jaz diante de mim, descendo em socalcos e resvalamentos, como uma paisagem diversa, até aos fumos sobre casas brancas das aldeias do vale. Se cerrar os olhos, continuo vendo, pois que não vejo. Se os abrir nada mais vejo, pois que não via. Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem do futuro: sou uma saudade do presente, anônima, prolixa e incompreendida.
[378]
Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar.
Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.
Talvez porque eu pense demais ou sonhe demais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe. E assim intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que não brilham de sol ou se pisam com pés — maravilhas fluidas da imaginação.
Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição. Alegro-me de brisas imaginárias, mas o imaginário vive quando se imagina. Tenho alma por hipóteses várias, mas essas hipóteses têm alma própria, e me dão portanto a que têm.
Não há problema senão o da realidade, e esse é insolúvel e vivo. Que sei eu da diferença entre uma árvore e um sonho? Posso tocar na árvore; sei que tenho o sonho. Que é isto, na sua verdade?
Que é isto? Sou eu que, sozinho no escritório deserto, posso viver imaginando sem desvantagem da inteligência. Não sofro interrupção de pensar das carteiras abandonadas e da seção de remessas só com papel e cordéis em rolos. Estou, não no meu banco alto, mas recostado, por uma promoção por fazer, na cadeira de braços redondos do Moreira. Talvez seja a influência do lugar que me unge de distraído. Os dias de grande calor fazem sono; durmo sem dormir por falta de energia. E por isso penso assim.
[379]
Intervalo doloroso
Já me cansa a rua, mas não, não me cansa — tudo é rua na vida. Há a taberna defronte, que vejo se olho por cima do ombro direito; e há o convento defronte, que vejo se olho por cima do ombro esquerdo; e, no meio, que não verei se me não voltar de todo, o sapateiro enche de som regular o portão do escritório da Companhia Africana. Os outros andares são indeterminados. No terceiro andar há uma pensão, dizem que imoral, mas isso é como tudo, a vida.
Cansar-me a rua? Canso-me só quando penso. Quando olho a rua, ou a sinto, não penso: trabalho com um grande repouso íntimo, último naquele canto, escriturantemente ninguém. Não tenho alma, ninguém tem alma — tudo é trabalho na casa larga. Onde os milionários gozam, sempre no estrangeiro deles, também há trabalho, e também não há alma. Fica de tudo um ou outro poeta. Quem me dera que de mim ficasse uma frase, uma coisa dita de que se dissesse, Bem feito! , como os números que vou inscrevendo, copiando-os, no livro da minha vida inteira.
Nunca deixarei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de fazendas. Desejo, com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca a guarda-livros.
[380]
Há muito — não sei se há dias, se há meses — não registro impressão nenhuma; não penso, portanto não existo. Estou esquecido de quem sou; não sei escrever porque não sei ser. Por um adormecimento oblíquo, tenho sido outro. Saber que me não lembro é despertar.
Desmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim sem memória do que tenho sido, e a do que fui sofre de ter sido interrompida. Há em mim uma noção confusa de um intervalo incógnito, um esforço fútil de parte da memória para querer encontrar a outra. Não consigo reatar-me. Se tenho vivido, esqueci-me de o saber.
Não é que seja este primeiro dia do outono sensível — o primeiro de frio não fresco que veste o estio morto de menos luz — que me dê, numa transparência alheada, uma sensação de desígnio morto ou de vontade falsa. Não é que haja, neste interlúdio de coisas perdidas, um vestígio incerto de memória inútil. É, mais dolorosamente que isso, um tédio de estar lembrando o que se não recorda, um desalento do que a consciência perdeu entre algas ou juncos, a beira não sei de quê.
Conheço que o dia, límpido e imóvel, tem um céu positivo e azul menos claro que o azul profundo. Conheço que o sol, vagamente menos de ouro que era, doura de reflexos úmidos os muros e as janelas. Conheço que, não havendo vento ou brisa que o lembre e negue, dorme todavia uma frescura desperta pela cidade indefinida. Conheço tudo isso, sem pensar nem querer, e não tenho sono senão por lembrança, nem saudade senão por desassossego.
Convalesço, estéril e longínquo, da doença que não tive. Predisponho-me, ágil de despertar, ao que não ouso. Que sono me não deixou dormir? Que afago me não quis falar? Que bom ser outro com este hausto frio de primavera forte! Que bom poder ao menos pensá-lo, melhor que a vida, enquanto ao longe na imagem relembrada os juncos, sem vento que se sinta, se inclinam glaucos da ribeira!
Quantas vezes, relembrando quem não fui, me medito jovem e esqueço! E eram outras que foram as paisagens que não vi nunca; eram novas sem terem sido as paisagens que deveras vi. Que me importa? Findei a acasos e interstícios, e, enquanto o fresco do dia é o do sol mesmo, dormem frios, no poente que vejo sem ter, os juncos escuros da ribeira.
[381]
Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogênio e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende — como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço — nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia.
O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade frusta numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.
E é isto que eu sinto ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trêmula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível, um tom algendo [sic] de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustas, tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de desolação.
Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um sol já submisso? Que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isto — céu, terra, mundo, — o que há em tudo isto não é senão eu!
[382]
Cheguei àquele ponto em que o tédio é uma pessoa, a ficção encarnada do meu convívio comigo.
[383]
O mundo exterior existe como um ator num palco: está lá mas é outra coisa.
[384]
e tudo é uma doença incurável.
A ociosidade de sentir, o desgosto de ter de não saber fazer nada, a incapacidade de agir, como um
[385]
Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu? Não se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação. Por vezes parecia mais uma doença dos olhos do que uma realidade da natureza.
Fosse o que fosse ia por toda a paisagem uma inquietação turva, feita de esquecimento e de atenuação. Era como se o silêncio do mau sol tomasse para seu um corpo imperfeito. Dir-se-ia que ia acontecer qualquer coisa e que por toda a parte havia uma intuição pela qual o visível se velava.
Era difícil dizer se o céu tinha nuvens ou antes névoa. Era um torpor baço, aqui e ali colorido, um acinzentamento imponderavelmente amarelado, salvo onde se esboroava em cor-de-rosa falso, ou onde estagnava azulescendo, mas aí não se distinguia se era o céu que se revelava, se era outro azul que o encobria.
Nada era definido, nem o indefinido. Por isso apetecia chamar fumo à névoa, por ela não parecer névoa, ou perguntar se era névoa ou fumo, por nada se perceber do que era. O mesmo calor do ar colaborava na dúvida. Não era calor, nem frio, nem fresco; parecia compor a sua temperatura de elementos tirados de outras coisas que o calor. Dir-se-ia, deveras, que uma névoa fria aos olhos era quente ao tato, como se tato e vista fossem dois modos sensíveis do mesmo sentido.
Nem era, em torno dos contornos das árvores, ou das esquinas dos edifícios, aquele esbater de recortes ou de arestas, que a verdadeira névoa traz, estagnando, ou o verdadeiro fumo, natural, entreabre e entrescurece. Era como se cada coisa projetasse de si uma sombra vagamente diurna, em todos os sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem lugar de projeção que a justificasse como visível.
Nem visível era: era como um começo de ir a ver-se qualquer coisa, mas em toda a parte por igual, como se o a revelar hesitasse em ser aparecido.
E que sentimento havia? A impossibilidade de o ter, o coração desfeito na cabeça, os sentimentos confundidos, um torpor da existência desperta, um apurar de qualquer coisa anímica como o ouvido para uma revelação definitiva, inútil, sempre a aparecer já, como a verdade, sempre, como a verdade, gêmea de nunca aparecer.
Até a vontade de dormir, que lembra ao pensamento, desapetece por parecer um esforço o mero bocejo de a ter. Até deixar de ver faz doer os olhos. E, na abdicação incolor da alma inteira, só os ruídos exteriores, longe, são o mundo impossível que ainda existe.
Ah, outro mundo, outras coisas, outra alma com que senti-las, outro pensamento com que saber dessa alma! Tudo, até o tédio, menos este esfumar comum da alma e das coisas, este desamparo azulado da indefinição de tudo!
[386]
Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos, na macieza estalante das folhas, que juncavam, amarelas e meio-verdes, a irregularidade do chão. Mas iam também disjuntos porque éramos dois pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que não éramos pisava uníssono o mesmo solo ouvido.
Tinha entrado já o princípio do outono, e, além das folhas que pisávamos, ouvíamos cair continuamente, no acompanhamento brusco do vento, outras folhas, ou sons de folhas, por toda a parte onde íamos ou havíamos ido. Não havia mais paisagem senão a floresta que velava todas. Bastava, porém, como sítio e lugar para os que, como nós, não tínhamos por vida senão o caminhar uníssono e diverso sobre um solo mortiço. Era — creio — o fim de um dia, ou de qualquer dia, ou porventura de todos os dias, num outono todos os outonos, na floresta simbólica e verdadeira.
Que casas, que deveres, que amores havíamos largado — nós mesmos o não saberíamos dizer. Não éramos, nesse momento, mais que caminhantes entre o que esquecêramos e o que não sabíamos, cavaleiros a pé do ideal abandonado. Mas nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do vento incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois, não sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabíamos se partíamos se chegávamos. E sempre, em torno nosso, sem lugar sabido ou queda vista, o som das folhas que escombravam adormecia de tristeza a floresta.
Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. A companhia que nos fazíamos era uma espécie de sono que cada um de nós tinha. O som dos passos uníssonos ajudava cada um a pensar sem o Outro, e os próprios passos solitários tê-lo-iam despertado. A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos uníssonos seguiam constantes, e em torno do que ouvíamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas caindo, na floresta tornada tudo, na floresta igual ao universo.
Quem éramos? Seríamos dois ou duas formas de um? Não o sabíamos nem o perguntávamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir, pois caminhávamos. Um mundo qualquer devia existir, pois existia uma floresta. Nós, porém, éramos alheios ao que fosse ou pudesse ser, caminheiros uníssonos e intermináveis sobre folhas mortas, ouvidores anônimos e impossíveis de folhas caindo. Nada mais. Um sussurro, ora brusco ora suave, do vento incógnito, um murmúrio, ora alto ora baixo, das folhas presas, um resquício, uma dúvida, um propósito que findara, uma ilusão que nem fora — a floresta, os dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual deles era, ou se era ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragédia de não haver nunca mais do que o outono e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre caídas ou caindo. E sempre, como se por certo houvesse fora um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silêncio rumoroso da floresta.
[387]
Suponho que seja o que chamam um decadente, que haja em mim, como definição externa do meu espírito, essas lucilações tristes de uma estranheza postiça que incorporam em palavras inesperadas uma alma ansiosa e malabar. Sinto que sou assim e que sou absurdo. Por isso busco, por uma imitação de uma hipótese dos clássicos, figurar ao menos em uma matemática expressiva as sensações decorativas da minha alma substituída. Em certa altura da cogitação escrita, já não sei onde tenho o centro da atenção — se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que, querendo descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coisas. Formam-se em mim associações de ideias, de imagens, de palavras — tudo lúcido e difuso —, e tanto estou dizendo o que sinto, como o que suponho que sinto, nem distingo o que a alma me sugere do que as imagens, que a alma deixou cair, me enfloram no chão, nem até, se um som de palavra bárbara, ou um ritmo de frase interposta, me não tiram do assunto já incerto, da sensação já em parque, e me absolvem de pensar e de dizer, como grandes viagens para distrair. E isto tudo, que, se o repito, deveria dar-me uma sensação de futilidade, de falência, de sofrimento, não conseguem senão dar-me asas de ouro. Desde que falo de imagens, talvez porque fosse a condenar o abuso delas, nascem-me imagens; desde que me ergo de mim para repudiar o que não sinto, eu o estou sentindo já e o próprio repúdio é uma sensação com bordados; desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo clássico, um adjetivo espacial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver clara diante de mim a página escrita dormentemente, e as letras da minha tinta da caneta são um mapa absurdo de sinais mágicos. E deponho-me como à caneta, e traço a capa de me reclinar sem nexo, longínquo, intermédio e súcubo, final como um náufrago afogando-se à vista de ilhas maravilhosas, em aqueles mesmos mares dourados de violeta que em leitos remotos verdadeiramente sonhara.
[388]
Tornar puramente literária a receptividade dos sentidos, e as emoções, quando acaso inferiorizem, convertê-las em matéria aparecida para com elas estátuas se esculpirem de palavras fluidas e lambentes [sic].
[389]
O lema que hoje mais requeiro para definição do meu espírito é o de criador de indiferenças. Mais do que outra, queria que minha ação pela vida fosse de educar os outros a sentir cada vez mais para si próprios, e cada vez menos segundo a lei dinâmica da coletividade… Educar naquela antissepsia espiritual pela qual não podia haver contágio de vulgaridade, parece-me o mais constelado destino do pedagogo íntimo que eu queria ser. Que quantos me lessem aprendessem — pouco embora, como o assunto manda — a não ter sensação nenhuma perante os olhares alheios e as opiniões dos outros, esse destino engrinaldaria suficientemente a estagnação da minha vida. A impossibilidade de agir foi sempre em mim uma moléstia com etiologia metafísica. Fazer um gesto foi sempre, para o meu sentimento das coisas, uma perturbação, um desdobramento, no universo exterior; mexer-me deu-me sempre a impressão que não deixaria intactas as estrelas nem os céus sem mudanças. Por isso a importância metafísica do mais pequeno gesto cedo tomou um relevo atônito dentro de mim. Adquiri perante agir um escrúpulo de honestidade transcendental, que me inibe, desde que o fixei na minha consciência, de ter relações muito acentuadas com o mundo palpável.
[390]
Saber ser supersticioso ainda é uma das artes que, realizadas a auge, marcam o homem superior.
[391]
Desde que, conforme posso, medito e observo, tenho reparado que em nada os homens sabem a verdade, ou estão de acordo, que seja realmente supremo na vida ou útil ao vivê-la. A ciência mais exata é a matemática, que vive na clausura das suas próprias regras e leis; serve, sim, de, por aplicação, elucidar outras ciências, mas elucida o que estas descobrem, não as ajuda a descobrir. Nas outras ciências não é certo e aceito senão o que nada pesa para os fins supremos da vida. A física sabe bem qual é o coeficiente da dilatação do ferro; não sabe qual é a verdadeira mecânica da constituição do mundo. E quanto mais subimos no que desejaríamos saber, mais descemos no que sabemos. A metafísica, que seria o guia supremo porque é ela e só ela que se dirige aos fins supremos da verdade e da vida — essa nem é teoria científica, senão somente um monte de tijolos formando, nestas mãos ou naquelas, casas de nenhum feitio que nenhuma argamassa liga. Reparo, também, que entre a vida dos homens e a dos animais não há outra diferença que não a da maneira como se enganam ou a ignoram. Não sabem os animais o que fazem: nascem, crescem, vivem, morrem sem pensamento, reflexo ou verdadeiramente futuro. Quantos homens, porém, vivem de modo diferente do dos animais? Dormimos todos, e a diferença está só nos sonhos, e no grau e qualidade de sonhar. Talvez a morte nos desperte, mas a isso também não há resposta senão a da fé, para quem crer é ter, a da esperança, para quem desejar é possuir, a da caridade, para quem dar é receber.
Chove, nesta tarde fria de inverno triste, como se houvesse chovido, assim monotonamente, desde a primeira página do mundo. Chove, e meus sentimentos, como se a chuva os vergasse, dobram seu olhar bruto para a terra da cidade, onde corre uma água que nada alimenta, que nada lava, que nada alegra. Chove, e eu sinto subitamente a opressão imensa de ser um animal que não sabe o que é, sonhando o pensamento e a emoção, encolhido, como num tugúrio, numa região espacial do ser, contente de um pequeno calor como de uma verdade eterna.
[392]
O povo é bom tipo.
O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada tanto quanto possível, dos interesses alheios.
Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira ciência, cessam as agências principais, de cuja existência a civilização deriva.
Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a renegação do que fui ontem, de quem fui ontem? Existir é desmentir-se. Não há nada mais simbólico da vida do que aquelas notícias dos jornais que desmentem hoje o que o próprio jornal disse ontem.
Querer é não poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer. Creio que estes princípios são fundamentais.
[393]
Reles como os fins da vida que vivemos, sem que queiramos nós tais fins.
A maioria, se não a totalidade, dos homens vive uma vida reles, reles em todas as suas alegrias, e reles em quase todas as suas dores, salvo naquelas que se fundamentam na morte, porque nessas colabora o Mistério.
Ouço, coados pela minha desatenção, os ruídos que sobem, fluidos e dispersos, como ondas interfluentes ao acaso e de fora como se viessem de outro mundo: gritos de vendedores, que vendem o natural, como hortaliça, ou o social, como as cautelas; riscar redondo de rodas — carroças e carros rápidos por saltos —; automóveis, mais ouvidos no movimento que no giro; o tal sacudir de qualquer coisa pano a qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada do andar alto; o gemido metálico do elétrico na outra rua; o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos; princípios, meios e fins de vozes — e tudo isto existe para mim, que durmo pensá-lo, como uma pedra entre erva, em qualquer modo espreitando de fora de lugar.
Depois, e ao lado, é de dentro de casa que os sons confluem com os outros: os passos, os pratos, a vassoura, a cantiga interrompida (meio fado); a véspera na combinação da sacada; a irritação do que falta na mesa; o pedido dos cigarros que ficaram em cima da cômoda — tudo isto é a realidade, a realidade anafrodisíaca que não entra na minha imaginação.
Leves os passos da criada ajudante, chinelos que revisiono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o som toma qualquer coisa da trança encarnada e preta; seguros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sai e se despede alto, com o bater da porta cortando o eco do logo que vem depois do até; um sossego, como se o mundo acabasse neste quarto andar alto; ruído de louça que vai para se lavar; correr de água; “então não te disse que”… e o silêncio apita do rio.
Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tempo, entre sinestesias. E é prodigioso pensar que eu não quereria, se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve vida que estes lentos minutos, esta nulidade do pensamento, da emoção, da ação, quase da mesma sensação, o ocaso-nato da vontade dispersa. E então reflito, quase sem pensamento, que a maioria, se não a totalidade, dos homens assim vive, mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a mesma modorra para os fins últimos, o mesmo abandono dos propósitos formados, a mesma sensação da vida. Sempre que vejo um gato ao sol lembra-me a humanidade. Sempre que vejo dormir lembro-me que tudo é sono. Sempre que alguém me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão sonhar. O ruído da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e tocam a campainha.
O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os passos cessam no fim do corredor. Os pratos lavados erguem a voz de água e louça. [. . . ]
[394]
E assim como sonho, raciocino se quiser, porque isso é apenas uma outra espécie de sonho.
A arte tem valia porque nos tira de aqui.
[362]
É legitima toda a violação da lei moral que é feita em obediência a uma lei moral superior. Não é desculpável roubar um pão por ter fome. É desculpável a um artista roubar dez contos para garantir por dois anos a sua vida e tranquilidade, desde que a sua obra tenda a um fim civilizacional; se é uma mera obra estética, não vale o argumento.
[363]
Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós… E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria…
Possuímos a alma? Ouve-me em silêncio: Nós não a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e alma há o abismo de serem almas.
Que possuímos? que possuímos? Que nos leva a amar? A beleza? E nós possuímo-la amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um corpo lindo não abraça a beleza, abraça a carne celulada e gordurosa; o beijo não toca na beleza da boca, mas na carne úmida dos lábios perecíveis e mucosas; a própria cópula é um contato apenas, um contato esfregado e próximo, mas não uma penetração real, sequer de um corpo por outro corpo… Que possuímos nós? que possuímos?
As nossas sensações, ao menos? Ao menos o amor é um meio de nos possuirmos, a nós, nas nossas sensações? é, ao menos, um modo de sonharmos nitidamente, e mais gloriosamente portanto, o sonho de existirmos? e, ao menos, desaparecida a sensação, fica a memória dela conosco sempre, e assim, realmente possuímos…
Desenganemos até disto. Nós nem as nossas sensações possuímos. Não fales. A memória, afinal, é a sensação do passado… E toda a sensação é uma ilusão.
— Escuta-me, escuta-me sempre. Escuta-me e não olhes pela janela aberta a plana outra margem do rio, nem o crepúsculo, nem esse silvo de um comboio que corta o longe vago. — Escuta-me em silêncio…
Nós não possuímos as nossas sensações… Nós não nos possuímos nelas.
(Urna inclinada, o crepúsculo verte sobre nós um óleo de onde as horas, pétalas de rosas, bóiam espaçadamente. )
[364]
Eu não possuo o meu corpo — como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma — como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito — como através dele compreender?
Não possuímos nem o corpo nem uma verdade — nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro.
Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer — eu sou eu?
Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.
Quando outrem possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?
Se do que comes, dissesses, “eu possuo isto”, eu compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o incluis em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes não falas tu de “posse”. A que chamas tu possuir?
[365]
A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz — tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra.
Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor.
Meu destino é a decadência.
Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas.
[366]
Paisagens inúteis como aquelas que dão a volta às chávenas chinesas, partindo da asa e vindo acabar na asa, de repente. As chávenas são sempre tão pequenas… Para onde se prolongaria, e com que de porcelana, a paisagem que não se prolongou para além da asa da chávena?
É possível a certas almas sentir uma dor profunda por a paisagem pintada num abano chinês não ter três dimensões.
[367]
… e os crisântemos adoecem a sua vida lassa em jardins apenumbrados de contê-los.
… a luxúria japonesa de ter evidentemente duas dimensões apenas.
… a existência colorida sobre transparências baças das figuras japonesas nas chávenas.
… uma mesa posta para um chá discreto — mero pretexto para conversas inteiramente estéreis — teve sempre para mim qualquer coisa de ente e individualidade com alma. Forma, como um organismo, um todo sintético! Que não é a pura soma das partes que o compõem.
[368]
E os diálogos nos jardins fantásticos que contornam nada definidamente certas chávenas? Que palavras sublimes não devem estar trocando as duas figuras que se assentam no lado de lá daquele bule! E eu sem ouvidos apropriados para as ouvir, morto na policroma humanidade!
Deliciosa psicologia das coisas deveras estáticas! A eternidade tece-a e o gesto que uma figura pintada tem desdenha, do alto da sua eternidade visível, a nossa transitória febre, que nunca se fixa numa atitude nem se demora nos portões de um esgar.
Que curioso deve ser o folclore do colorido povo dos painéis! Os amores das figuras bordadas — amores de duas dimensões, duma castidade geométrica — devem ser para entretenimento dos psicólogos ouvidos.
Não amamos, senão que fingimos amar. O verdadeiro amor, o imortal e inútil, pertence àquelas figuras em que a mudança não entra, por sua natureza de estáticas. Desde que eu o conheço, o japonês que se senta na convexa do meu bule não mudou ainda… Não saboreou nunca as mãos da mulher que está a um distar errado dele. Um colorido extinto como de um sol despejado, entornado, irrealiza eternamente as encostas desse monte. E tudo aquilo obedece a um instante de pena — pena mais fiel do que esta que inutilmente preenchesse a fragilidade das minhas horas exaustas.
[369]
Nesta era metálica dos bárbaros só um culto metodicamente excessivo das nossas faculdades de sonhar, de analisar e de atrair pode servir de salvaguarda à nossa personalidade, para que se não desfaça ou para nula ou para idêntica às outras.
O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não nossas. O que há de comum nas sensações é que forma a realidade. Por isso a nossa individualidade nas nossas sensações está só na parte enorme delas. A alegria que eu teria se visse um dia o sol escarlate. Seria tão meu aquele sol, só meu!
[370]
Nunca deixo saber aos meus sentimentos o que lhes vou fazer sentir… Brinco com as minhas sensações como uma princesa cheia de tédio com os seus grandes gatos prontos e cruéis…
Fecho subitamente portas dentro de mim, por onde certas sensações iam passar para se realizarem. Retiro bruscamente do seu caminho os objetos espirituais que lhes vão vincar certos gestos.
Pequenas frases sem sentido, metidas nas conversas que supomos estar tendo; afirmações absurdas feitas com cinzas de outras que já de si não significam nada…
— O seu olhar tem qualquer coisa de música tocada a bordo dum barco, no meio misterioso de um rio com florestas na margem oposta…
— Não diga que é fria uma noite de luar. Abomino as noites de luar… Há quem costume realmente tocar música nas noites de luar… — Isso também é possível… E é lamentável, está claro… Mas o seu olhar tem realmente o desejo de ser saudoso de qualquer coisa… Falta-lhe o sentimento que exprime… Acho na falsidade da sua expressão uma quantidade de ilusões que tenho tido…
— Creia que sinto às vezes o que digo, e até, apesar de mulher, o que digo com o olhar…
— Não está sendo cruel para consigo própria? Nós sentimos realmente o que pensamos que estamos sentindo? Esta nossa conversa, por exemplo, tem visos de realidade? Não tem. Num romance não seria admitida.
— Com muita razão… Eu não tenho a absoluta certeza de estar falando consigo, repare… Apesar de mulher, criei-me um dever de ser estampa de um livro de impressões de um desenhista doido… Tenho em mim detalhes exageradamente nítidos… Dá um pouco, bem sei, a impressão de realidade excessiva e um pouco forçada… Acho que a única coisa digna de uma mulher contemporânea é este ideal de ser estampa. Quando eu era criança queria ser a rainha dum naipe qualquer num baralho de cartas antigo que havia em minha casa… Achava esse mister de uma heráldica realmente compassiva… Mas quando se é criança, tem-se aspirações morais destas… Só depois, na idade em que as nossas aspirações são todas imorais, é que pensamos nisso a serto…
— Eu, como nunca falo a crianças, creio no instinto artista delas… Sabe, enquanto estou falando, agora mesmo, eu estou querendo penetrar o íntimo sentido dessas coisas que me estava dizendo… Perdoa-me?
— Não de todo… Nunca se deve devassar os sentimentos que os outros fingem que têm. São sempre demasiadamente íntimos… Acredite que me dói realmente estar-lhe fazendo estas confidências íntimas, que, se bem que todas elas falsas, representam verdadeiros farrapos da minha pobre alma… No fundo, acredite, o que somos de mais doloroso é o que não somos realmente, e as nossas maiores tragédias passam-se na nossa ideia de nós.
— Isso é tão verdadeiro… Para que dizê-lo? Feriu-me. Para que tirar à nossa conversa a sua irrealidade constante? Assim é quase uma conversa possível, passada a uma mesa de chá, entre uma mulher linda e um imaginador de sensações.
— Sim, sim… É a minha vez de pedir perdão… Mas olhe que eu estava distraída e não reparei realmente em que tinha dito uma coisa justa… Mudemos de assunto… Que tarde que é sempre! … Não se torne a zangar… Olhe que esta minha frase não tem sentido absolutamente nenhum…
—Não me peça desculpas, não repare em que estamos falando… Toda a boa conversa deve ser um monólogo de dois… Devemos, no fim, não poder ter a certeza se conversamos realmente com alguém ou se imaginamos totalmente a conversa… As melhores e as mais íntimas conversas, e sobretudo as menos moralmente instrutivas, são aquelas que os romancistas têm entre duas personagens das suas novelas… Como exemplo…
— Por amor de Deus! Não ia decerto citar-me um exemplo… Isso só se faz nas gramáticas; não sei se se recorda que até nunca as lemos.
—Leu alguma vez uma gramática?
— Eu nunca. Tive sempre uma aversão profunda a saber como se dizem as coisas… A minha única simpatia, nas gramáticas, ia para as exceções e para os pleonasmos… Escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna… Não é assim que se diz? …
— Absolutamente… O que tem de antipático nas gramáticas (já reparou na deliciosa impossibilidade de estarmos falando neste assunto? ) — o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos… São as palavras que dão sentido às frases… Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos… Os verbos! … Um amigo meu que se suicidou — cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo — tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos…
—Ele por que se suicidou?
— Espere, ainda não sei… Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costumava dizer-me que procurava o micróbio da significação… Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si… A importância do problema deu-lhe cabo do cérebro… Um revólver e…
—Ah, não… Isso de modo algum… Não vê que não podia ser um revólver? … Um homem desses nunca dá um tiro na cabeça… O senhor pouco se entende com os amigos que nunca teve… É um defeito grande, sabe? … A minha melhor amiga — uma deliciosa rapaz que eu inventei —
—Dão-se bem?
— Tanto quanto é possível… Mas essa rapariga, não imagina,
As duas criaturas que estavam à mesa de chá não tiveram com certeza esta conversa. Mas estavam tão alinhadas e bem vestidas que era pena que não falassem assim… Por isso escrevi esta conversa para elas a terem tido… As suas atitudes, os seus pequenos gestos, as suas criancices de olhares e sorrisos, momentos de conversa que ambos entendemos no sentimento de existirmos, disseram nitidamente o que falsamente finjo que reporto… Quando eles um dia forem ambos e sem dúvida casados cada um para seu lado — em intentos demais juntos, para poderem casar um com o outro —, se eles por acaso olharem para estas páginas, acredito que reconhecerão o que nunca disseram e que não deixarão de me ser gratos por eu ter interpretado tão bem, não só o que eles são realmente, mas o que eles nunca desejaram ser nem sabiam que eram…
Eles, se me lerem, acreditem que foi isto que realmente disseram. Na conversa aparente que eles escutaram um ao outro faltavam tantas coisas que — faltou o perfume da hora, o aroma do chá, a significação para o caso do ramo de que ela tinha ao peito… Tudo isso, que assim formou parte da conversa, eles se esqueceram de dizer… Mas tudo isto lá estava e o que eu faço é, mais do que um trabalho literário, um trabalho de historiador. Reconstruo, completando… e isso me servirá de desculpa junto deles, de ter estado tão fixamente a escutar-lhes o que diziam e não queriam dizer.
[371]
Apoteose do absurdo
Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.
Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de ação útil e profícua. O absurdo salva de chegar a pesar de tédio aquele estado de alma que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.
E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.
[372]
Apoteose do absurdo
Absurdemos a vida, de leste a oeste.
[373]
A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.
Quem está ao canto da sala dança com todos os dançarmos. Vê tudo, e, porque vê tudo, vive tudo. Como tudo, em súmula e ultimidade, é uma sensação nossa, tanto vale o contato com um corpo como a visão dele, ou, até, a sua simples recordação. Danço, pois, quando vejo dançar. Digo, como o poeta inglês, narrando que contemplava, deitado na erva ao longe, três ceifeiros:
“Um quarto está ceifando, e esse sou eu. ”
Vem isto tudo, que vai dito como vai sentido, a propósito do grande cansaço, aparentemente sem causa, que desceu hoje súbito sobre mim. Estou não só cansado, mas amargurado, e a amargura é incógnita também. Estou, de angustiado, à beira de lágrimas — não de lágrimas que se choram, mas que se reprimem, lágrimas de uma doença da alma, que não de uma dor sensível.
Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei. Meu corpo muscular está moído do esforço que nem pensei em fazer.
Baço, mudo, nulo… O céu ao alto é de um verão morto, imperfeito. Olho-o como se ele ali não estivesse. Durmo o que penso, estou deitado andando, sofro sem sentir. A minha grande nostalgia é de nada, é nada, como o céu alto que não vejo, e que estou fitando impessoalmente.
[374]
Na perfeição nítida do dia estagna contudo o ar cheio de sol. Não é a pressão presente da trovoada futura, mal-estar dos corpos involuntários, vago baço do céu azul deveras. É o torpor sensível da insinuação do ócio, pluma roçando leve a face a adormecer. É estio mas verão. Apetece o campo até a quem não gosta dele.
Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz, pois o sentiria sem pensar nele. Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho normal — aquele que me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o carro para Benfica, com amigos combinados. Jantaríamos em pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, reconhecida como de ali.
Como, porém, sou eu, gozo um pouco o pouco que é imaginar-me esse outro. Sim, logo ele-eu, sob parreira ou árvore, comerá o dobro do que sei comer, beberá o dobro do que ouso beber, rirá o dobro do que posso pensar em rir. Logo ele, eu agora. Sim, um momento fui outro: vi, vivi, em outrem, essa alegria humilde e humana de existir como um animal em mangas de camisa. Grande dia que me fez sonhar assim! É tudo azul e sublime no alto como o meu sonho efêmero de ser caixeiro de praça com saúde em não sei que férias de fim de dia.
[375]
O campo é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e verdadeiro arvoredo.
A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final.
O milagre é a preguiça de Deus, ou, antes, a preguiça que Lhe atribuímos, inventando o milagre.
Os Deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser.
O cansaço de todas as hipóteses…
[376]
A leve embriaguez da febre ligeira, quando um desconforto mole e penetrante e frio pelos ossos doridos fora e quente nos olhos sob têmporas que batem — a esse desconforto quero como um escravo a um tirano amado. Dá-me aquela quebrada passividade trêmula em que entrevejo visões, viro esquinas de ideias e entre entrepolamentos de sentimentos me desconcerto.
Pensar, sentir, querer, tornam-se uma só confusa coisa. As crenças, as sensações, as coisas imaginadas e as atuais estão desarrumadas, são como o conteúdo misturado no chão, de várias gavetas subvertidas.
[377]
A sensação da convalescença, sobretudo se se fez mal sentir nos nervos a doença que a precedeu, tem qualquer coisa de alegria triste. Há um outono nas emoções e nos pensamentos, ou, antes, um daqueles princípios de primavera que, salvo que não caem folhas, parecem, no ar e no céu, o outono.
O cansaço sabe bem, e o bem que sabe dói um pouco. Sentimo-nos um pouco à parte da vida, ainda que nela, como que na varanda da casa de viver.
Estamos contemplativos sem pensar, sentimos sem emoção definível. A vontade sossega, pois não há necessidade dela.
É então que certas memórias, certas esperanças, certos vagos desejos sobem lentamente a rampa da consciência, como caminheiros vagos vistos do alto do monte. Memórias de coisas fúteis, esperança de coisas que não fez mal que não fossem, desejos que não tiveram violência de natureza ou de emissão, que nunca puderam querer ser.
Quando o dia se ajusta a estas sensações, como hoje, que, ainda que estio, está meio nublado com azuis, e um vago vento que por não ser quente é quase frio, então aquele estado de alma se acentua em que pensamos, sentimos, vivemos estas impressões. Não que sejam mais claras as memórias, as esperanças, os desejos que tínhamos. Mas sente-se mais, e a sua soma incerta pesa um pouco, absurdamente, sobre o coração.
Há qualquer coisa de longínquo em mim neste momento. Estou de fato à varanda da vida, mas não é bem desta vida. Estou por sobre ela, e vendo-a de onde vejo. Jaz diante de mim, descendo em socalcos e resvalamentos, como uma paisagem diversa, até aos fumos sobre casas brancas das aldeias do vale. Se cerrar os olhos, continuo vendo, pois que não vejo. Se os abrir nada mais vejo, pois que não via. Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem do futuro: sou uma saudade do presente, anônima, prolixa e incompreendida.
[378]
Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar.
Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.
Talvez porque eu pense demais ou sonhe demais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe. E assim intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que não brilham de sol ou se pisam com pés — maravilhas fluidas da imaginação.
Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição. Alegro-me de brisas imaginárias, mas o imaginário vive quando se imagina. Tenho alma por hipóteses várias, mas essas hipóteses têm alma própria, e me dão portanto a que têm.
Não há problema senão o da realidade, e esse é insolúvel e vivo. Que sei eu da diferença entre uma árvore e um sonho? Posso tocar na árvore; sei que tenho o sonho. Que é isto, na sua verdade?
Que é isto? Sou eu que, sozinho no escritório deserto, posso viver imaginando sem desvantagem da inteligência. Não sofro interrupção de pensar das carteiras abandonadas e da seção de remessas só com papel e cordéis em rolos. Estou, não no meu banco alto, mas recostado, por uma promoção por fazer, na cadeira de braços redondos do Moreira. Talvez seja a influência do lugar que me unge de distraído. Os dias de grande calor fazem sono; durmo sem dormir por falta de energia. E por isso penso assim.
[379]
Intervalo doloroso
Já me cansa a rua, mas não, não me cansa — tudo é rua na vida. Há a taberna defronte, que vejo se olho por cima do ombro direito; e há o convento defronte, que vejo se olho por cima do ombro esquerdo; e, no meio, que não verei se me não voltar de todo, o sapateiro enche de som regular o portão do escritório da Companhia Africana. Os outros andares são indeterminados. No terceiro andar há uma pensão, dizem que imoral, mas isso é como tudo, a vida.
Cansar-me a rua? Canso-me só quando penso. Quando olho a rua, ou a sinto, não penso: trabalho com um grande repouso íntimo, último naquele canto, escriturantemente ninguém. Não tenho alma, ninguém tem alma — tudo é trabalho na casa larga. Onde os milionários gozam, sempre no estrangeiro deles, também há trabalho, e também não há alma. Fica de tudo um ou outro poeta. Quem me dera que de mim ficasse uma frase, uma coisa dita de que se dissesse, Bem feito! , como os números que vou inscrevendo, copiando-os, no livro da minha vida inteira.
Nunca deixarei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de fazendas. Desejo, com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca a guarda-livros.
[380]
Há muito — não sei se há dias, se há meses — não registro impressão nenhuma; não penso, portanto não existo. Estou esquecido de quem sou; não sei escrever porque não sei ser. Por um adormecimento oblíquo, tenho sido outro. Saber que me não lembro é despertar.
Desmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim sem memória do que tenho sido, e a do que fui sofre de ter sido interrompida. Há em mim uma noção confusa de um intervalo incógnito, um esforço fútil de parte da memória para querer encontrar a outra. Não consigo reatar-me. Se tenho vivido, esqueci-me de o saber.
Não é que seja este primeiro dia do outono sensível — o primeiro de frio não fresco que veste o estio morto de menos luz — que me dê, numa transparência alheada, uma sensação de desígnio morto ou de vontade falsa. Não é que haja, neste interlúdio de coisas perdidas, um vestígio incerto de memória inútil. É, mais dolorosamente que isso, um tédio de estar lembrando o que se não recorda, um desalento do que a consciência perdeu entre algas ou juncos, a beira não sei de quê.
Conheço que o dia, límpido e imóvel, tem um céu positivo e azul menos claro que o azul profundo. Conheço que o sol, vagamente menos de ouro que era, doura de reflexos úmidos os muros e as janelas. Conheço que, não havendo vento ou brisa que o lembre e negue, dorme todavia uma frescura desperta pela cidade indefinida. Conheço tudo isso, sem pensar nem querer, e não tenho sono senão por lembrança, nem saudade senão por desassossego.
Convalesço, estéril e longínquo, da doença que não tive. Predisponho-me, ágil de despertar, ao que não ouso. Que sono me não deixou dormir? Que afago me não quis falar? Que bom ser outro com este hausto frio de primavera forte! Que bom poder ao menos pensá-lo, melhor que a vida, enquanto ao longe na imagem relembrada os juncos, sem vento que se sinta, se inclinam glaucos da ribeira!
Quantas vezes, relembrando quem não fui, me medito jovem e esqueço! E eram outras que foram as paisagens que não vi nunca; eram novas sem terem sido as paisagens que deveras vi. Que me importa? Findei a acasos e interstícios, e, enquanto o fresco do dia é o do sol mesmo, dormem frios, no poente que vejo sem ter, os juncos escuros da ribeira.
[381]
Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogênio e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende — como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço — nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia.
O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade frusta numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.
E é isto que eu sinto ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trêmula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível, um tom algendo [sic] de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustas, tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de desolação.
Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um sol já submisso? Que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isto — céu, terra, mundo, — o que há em tudo isto não é senão eu!
[382]
Cheguei àquele ponto em que o tédio é uma pessoa, a ficção encarnada do meu convívio comigo.
[383]
O mundo exterior existe como um ator num palco: está lá mas é outra coisa.
[384]
e tudo é uma doença incurável.
A ociosidade de sentir, o desgosto de ter de não saber fazer nada, a incapacidade de agir, como um
[385]
Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu? Não se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação. Por vezes parecia mais uma doença dos olhos do que uma realidade da natureza.
Fosse o que fosse ia por toda a paisagem uma inquietação turva, feita de esquecimento e de atenuação. Era como se o silêncio do mau sol tomasse para seu um corpo imperfeito. Dir-se-ia que ia acontecer qualquer coisa e que por toda a parte havia uma intuição pela qual o visível se velava.
Era difícil dizer se o céu tinha nuvens ou antes névoa. Era um torpor baço, aqui e ali colorido, um acinzentamento imponderavelmente amarelado, salvo onde se esboroava em cor-de-rosa falso, ou onde estagnava azulescendo, mas aí não se distinguia se era o céu que se revelava, se era outro azul que o encobria.
Nada era definido, nem o indefinido. Por isso apetecia chamar fumo à névoa, por ela não parecer névoa, ou perguntar se era névoa ou fumo, por nada se perceber do que era. O mesmo calor do ar colaborava na dúvida. Não era calor, nem frio, nem fresco; parecia compor a sua temperatura de elementos tirados de outras coisas que o calor. Dir-se-ia, deveras, que uma névoa fria aos olhos era quente ao tato, como se tato e vista fossem dois modos sensíveis do mesmo sentido.
Nem era, em torno dos contornos das árvores, ou das esquinas dos edifícios, aquele esbater de recortes ou de arestas, que a verdadeira névoa traz, estagnando, ou o verdadeiro fumo, natural, entreabre e entrescurece. Era como se cada coisa projetasse de si uma sombra vagamente diurna, em todos os sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem lugar de projeção que a justificasse como visível.
Nem visível era: era como um começo de ir a ver-se qualquer coisa, mas em toda a parte por igual, como se o a revelar hesitasse em ser aparecido.
E que sentimento havia? A impossibilidade de o ter, o coração desfeito na cabeça, os sentimentos confundidos, um torpor da existência desperta, um apurar de qualquer coisa anímica como o ouvido para uma revelação definitiva, inútil, sempre a aparecer já, como a verdade, sempre, como a verdade, gêmea de nunca aparecer.
Até a vontade de dormir, que lembra ao pensamento, desapetece por parecer um esforço o mero bocejo de a ter. Até deixar de ver faz doer os olhos. E, na abdicação incolor da alma inteira, só os ruídos exteriores, longe, são o mundo impossível que ainda existe.
Ah, outro mundo, outras coisas, outra alma com que senti-las, outro pensamento com que saber dessa alma! Tudo, até o tédio, menos este esfumar comum da alma e das coisas, este desamparo azulado da indefinição de tudo!
[386]
Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos, na macieza estalante das folhas, que juncavam, amarelas e meio-verdes, a irregularidade do chão. Mas iam também disjuntos porque éramos dois pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que não éramos pisava uníssono o mesmo solo ouvido.
Tinha entrado já o princípio do outono, e, além das folhas que pisávamos, ouvíamos cair continuamente, no acompanhamento brusco do vento, outras folhas, ou sons de folhas, por toda a parte onde íamos ou havíamos ido. Não havia mais paisagem senão a floresta que velava todas. Bastava, porém, como sítio e lugar para os que, como nós, não tínhamos por vida senão o caminhar uníssono e diverso sobre um solo mortiço. Era — creio — o fim de um dia, ou de qualquer dia, ou porventura de todos os dias, num outono todos os outonos, na floresta simbólica e verdadeira.
Que casas, que deveres, que amores havíamos largado — nós mesmos o não saberíamos dizer. Não éramos, nesse momento, mais que caminhantes entre o que esquecêramos e o que não sabíamos, cavaleiros a pé do ideal abandonado. Mas nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do vento incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois, não sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabíamos se partíamos se chegávamos. E sempre, em torno nosso, sem lugar sabido ou queda vista, o som das folhas que escombravam adormecia de tristeza a floresta.
Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. A companhia que nos fazíamos era uma espécie de sono que cada um de nós tinha. O som dos passos uníssonos ajudava cada um a pensar sem o Outro, e os próprios passos solitários tê-lo-iam despertado. A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos uníssonos seguiam constantes, e em torno do que ouvíamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas caindo, na floresta tornada tudo, na floresta igual ao universo.
Quem éramos? Seríamos dois ou duas formas de um? Não o sabíamos nem o perguntávamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir, pois caminhávamos. Um mundo qualquer devia existir, pois existia uma floresta. Nós, porém, éramos alheios ao que fosse ou pudesse ser, caminheiros uníssonos e intermináveis sobre folhas mortas, ouvidores anônimos e impossíveis de folhas caindo. Nada mais. Um sussurro, ora brusco ora suave, do vento incógnito, um murmúrio, ora alto ora baixo, das folhas presas, um resquício, uma dúvida, um propósito que findara, uma ilusão que nem fora — a floresta, os dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual deles era, ou se era ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragédia de não haver nunca mais do que o outono e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre caídas ou caindo. E sempre, como se por certo houvesse fora um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silêncio rumoroso da floresta.
[387]
Suponho que seja o que chamam um decadente, que haja em mim, como definição externa do meu espírito, essas lucilações tristes de uma estranheza postiça que incorporam em palavras inesperadas uma alma ansiosa e malabar. Sinto que sou assim e que sou absurdo. Por isso busco, por uma imitação de uma hipótese dos clássicos, figurar ao menos em uma matemática expressiva as sensações decorativas da minha alma substituída. Em certa altura da cogitação escrita, já não sei onde tenho o centro da atenção — se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que, querendo descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coisas. Formam-se em mim associações de ideias, de imagens, de palavras — tudo lúcido e difuso —, e tanto estou dizendo o que sinto, como o que suponho que sinto, nem distingo o que a alma me sugere do que as imagens, que a alma deixou cair, me enfloram no chão, nem até, se um som de palavra bárbara, ou um ritmo de frase interposta, me não tiram do assunto já incerto, da sensação já em parque, e me absolvem de pensar e de dizer, como grandes viagens para distrair. E isto tudo, que, se o repito, deveria dar-me uma sensação de futilidade, de falência, de sofrimento, não conseguem senão dar-me asas de ouro. Desde que falo de imagens, talvez porque fosse a condenar o abuso delas, nascem-me imagens; desde que me ergo de mim para repudiar o que não sinto, eu o estou sentindo já e o próprio repúdio é uma sensação com bordados; desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo clássico, um adjetivo espacial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver clara diante de mim a página escrita dormentemente, e as letras da minha tinta da caneta são um mapa absurdo de sinais mágicos. E deponho-me como à caneta, e traço a capa de me reclinar sem nexo, longínquo, intermédio e súcubo, final como um náufrago afogando-se à vista de ilhas maravilhosas, em aqueles mesmos mares dourados de violeta que em leitos remotos verdadeiramente sonhara.
[388]
Tornar puramente literária a receptividade dos sentidos, e as emoções, quando acaso inferiorizem, convertê-las em matéria aparecida para com elas estátuas se esculpirem de palavras fluidas e lambentes [sic].
[389]
O lema que hoje mais requeiro para definição do meu espírito é o de criador de indiferenças. Mais do que outra, queria que minha ação pela vida fosse de educar os outros a sentir cada vez mais para si próprios, e cada vez menos segundo a lei dinâmica da coletividade… Educar naquela antissepsia espiritual pela qual não podia haver contágio de vulgaridade, parece-me o mais constelado destino do pedagogo íntimo que eu queria ser. Que quantos me lessem aprendessem — pouco embora, como o assunto manda — a não ter sensação nenhuma perante os olhares alheios e as opiniões dos outros, esse destino engrinaldaria suficientemente a estagnação da minha vida. A impossibilidade de agir foi sempre em mim uma moléstia com etiologia metafísica. Fazer um gesto foi sempre, para o meu sentimento das coisas, uma perturbação, um desdobramento, no universo exterior; mexer-me deu-me sempre a impressão que não deixaria intactas as estrelas nem os céus sem mudanças. Por isso a importância metafísica do mais pequeno gesto cedo tomou um relevo atônito dentro de mim. Adquiri perante agir um escrúpulo de honestidade transcendental, que me inibe, desde que o fixei na minha consciência, de ter relações muito acentuadas com o mundo palpável.
[390]
Saber ser supersticioso ainda é uma das artes que, realizadas a auge, marcam o homem superior.
[391]
Desde que, conforme posso, medito e observo, tenho reparado que em nada os homens sabem a verdade, ou estão de acordo, que seja realmente supremo na vida ou útil ao vivê-la. A ciência mais exata é a matemática, que vive na clausura das suas próprias regras e leis; serve, sim, de, por aplicação, elucidar outras ciências, mas elucida o que estas descobrem, não as ajuda a descobrir. Nas outras ciências não é certo e aceito senão o que nada pesa para os fins supremos da vida. A física sabe bem qual é o coeficiente da dilatação do ferro; não sabe qual é a verdadeira mecânica da constituição do mundo. E quanto mais subimos no que desejaríamos saber, mais descemos no que sabemos. A metafísica, que seria o guia supremo porque é ela e só ela que se dirige aos fins supremos da verdade e da vida — essa nem é teoria científica, senão somente um monte de tijolos formando, nestas mãos ou naquelas, casas de nenhum feitio que nenhuma argamassa liga. Reparo, também, que entre a vida dos homens e a dos animais não há outra diferença que não a da maneira como se enganam ou a ignoram. Não sabem os animais o que fazem: nascem, crescem, vivem, morrem sem pensamento, reflexo ou verdadeiramente futuro. Quantos homens, porém, vivem de modo diferente do dos animais? Dormimos todos, e a diferença está só nos sonhos, e no grau e qualidade de sonhar. Talvez a morte nos desperte, mas a isso também não há resposta senão a da fé, para quem crer é ter, a da esperança, para quem desejar é possuir, a da caridade, para quem dar é receber.
Chove, nesta tarde fria de inverno triste, como se houvesse chovido, assim monotonamente, desde a primeira página do mundo. Chove, e meus sentimentos, como se a chuva os vergasse, dobram seu olhar bruto para a terra da cidade, onde corre uma água que nada alimenta, que nada lava, que nada alegra. Chove, e eu sinto subitamente a opressão imensa de ser um animal que não sabe o que é, sonhando o pensamento e a emoção, encolhido, como num tugúrio, numa região espacial do ser, contente de um pequeno calor como de uma verdade eterna.
[392]
O povo é bom tipo.
O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada tanto quanto possível, dos interesses alheios.
Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira ciência, cessam as agências principais, de cuja existência a civilização deriva.
Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a renegação do que fui ontem, de quem fui ontem? Existir é desmentir-se. Não há nada mais simbólico da vida do que aquelas notícias dos jornais que desmentem hoje o que o próprio jornal disse ontem.
Querer é não poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer. Creio que estes princípios são fundamentais.
[393]
Reles como os fins da vida que vivemos, sem que queiramos nós tais fins.
A maioria, se não a totalidade, dos homens vive uma vida reles, reles em todas as suas alegrias, e reles em quase todas as suas dores, salvo naquelas que se fundamentam na morte, porque nessas colabora o Mistério.
Ouço, coados pela minha desatenção, os ruídos que sobem, fluidos e dispersos, como ondas interfluentes ao acaso e de fora como se viessem de outro mundo: gritos de vendedores, que vendem o natural, como hortaliça, ou o social, como as cautelas; riscar redondo de rodas — carroças e carros rápidos por saltos —; automóveis, mais ouvidos no movimento que no giro; o tal sacudir de qualquer coisa pano a qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada do andar alto; o gemido metálico do elétrico na outra rua; o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos; princípios, meios e fins de vozes — e tudo isto existe para mim, que durmo pensá-lo, como uma pedra entre erva, em qualquer modo espreitando de fora de lugar.
Depois, e ao lado, é de dentro de casa que os sons confluem com os outros: os passos, os pratos, a vassoura, a cantiga interrompida (meio fado); a véspera na combinação da sacada; a irritação do que falta na mesa; o pedido dos cigarros que ficaram em cima da cômoda — tudo isto é a realidade, a realidade anafrodisíaca que não entra na minha imaginação.
Leves os passos da criada ajudante, chinelos que revisiono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o som toma qualquer coisa da trança encarnada e preta; seguros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sai e se despede alto, com o bater da porta cortando o eco do logo que vem depois do até; um sossego, como se o mundo acabasse neste quarto andar alto; ruído de louça que vai para se lavar; correr de água; “então não te disse que”… e o silêncio apita do rio.
Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tempo, entre sinestesias. E é prodigioso pensar que eu não quereria, se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve vida que estes lentos minutos, esta nulidade do pensamento, da emoção, da ação, quase da mesma sensação, o ocaso-nato da vontade dispersa. E então reflito, quase sem pensamento, que a maioria, se não a totalidade, dos homens assim vive, mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a mesma modorra para os fins últimos, o mesmo abandono dos propósitos formados, a mesma sensação da vida. Sempre que vejo um gato ao sol lembra-me a humanidade. Sempre que vejo dormir lembro-me que tudo é sono. Sempre que alguém me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão sonhar. O ruído da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e tocam a campainha.
O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os passos cessam no fim do corredor. Os pratos lavados erguem a voz de água e louça. [. . . ]
[394]
E assim como sonho, raciocino se quiser, porque isso é apenas uma outra espécie de sonho.