Mas que linguagem
estilhaçada
e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes?
Pessoa - Livro do Desassossego
Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr.
Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade.
O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr.
Verde empregado no comércio.
O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.
Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?
O meu orgulho lapidado por cegos e a minha desilusão pisada por mendigos.
“Quero-te só para sonho”, dizem à mulher amada, em versos que lhe não enviam, os que não ousam dizer-lhe nada. Este “quero-te só para sonho” é um verso de um velho poema meu. Registro a memória com um sorriso, e nem o sorriso comento.
[107]
Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando encontram; daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam. Sofro a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados os poetas românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é não ser nunca protagonista.
Não tenho uma ideia de mim próprio; nem aquela que consiste em uma falta de ideia de mim próprio. Sou um nômade da consciência de mim. Tresmalharam-se à primeira guarda os rebanhos da minha riqueza íntima.
A única tragédia é não nos podermos conceber trágicos. Vi sempre nitidamente a minha coexistência com o mundo. Nunca senti nitidamente a minha falta de coexistir com ele; por isso nunca fui um normal.
Agir é repousar.
Todos os problemas são insolúveis. A essência de haver um problema é não haver uma solução. Procurar um fato significa não haver um fato.
Pensar é não saber existir.
Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão. A minha impaciência constantemente me quer arrancar desse sossego, e a minha inércia constantemente me detém nele. Medito, então, em uma modorra de físico, que se parece com a volúpia apenas como o sussurro de vento lembra vozes, na eterna insaciabilidade dos meus desejos vagos, na perene instabilidade das minhas ânsias impossíveis. Sofro, principalmente, do mal de poder sofrer. Falta-me qualquer coisa que não desejo e sofro por isso não ser propriamente sofrer.
O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia. As flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não haver aqui flautas e isso lembrar-mas. Os idílios longínquos, ao pé de riachos, doem-me esta hora análoga por dentro,
[108]
A vida pode ser sentida como uma náusea no estômago, a existência da própria alma como um incômodo dos músculos. A desolação do espírito, quando agudamente sentida, faz marés, de longe, no corpo, e dói por delegação.
Estou consciente de mim em um dia, em que a dor de ser consciente é, como diz o poeta,
languidez, mareo y angustioso afán.
[109]
(storm)
Sobra silêncio escuro lividamente. A seu modo, perto, entre o errar raro e rápido das carroças, um camião troveja — eco ridículo, mecânico, do que vai real na distância próxima dos céus.
De novo, sem aviso, espadana luz magnética, pestanejando. Bate o coração um hausto breve. Quebra-se uma redoma no alto, em estilhaços grandes de cúpula. Um lençol novo de má chuva agride o som do chão.
(patrão Vasques) A sua cara lívida está de um verde falso e desnorteado.
Noto-o, entre o ar difícil do peito, com a fraternidade de saber que também estarei assim.
[110]
Quando durmo muitos sonhos, venho para a rua, de olhos abertos, ainda com o rastro e a segurança deles. E pasmo do automatismo meu com que os outros me desconhecem. Porque atravesso a vida quotidiana sem largar a mão da ama astral, e os meus passos na rua vão concordes e consoantes com obscuros desígnios da imaginação de dormir. E na rua vou certo; não cambaleio; respondo bem; existo.
Mas, quando há um intervalo, e não tenho que vigiar o curso da minha marcha, para evitar veículos ou não estorvar peões, quando não tenho que falar a alguém, nem me pesa a entrada para uma porta próxima, largo-me de novo nas águas do sonho, como um barco de papel dobrado em bicos, e de novo regresso à ilusão mortiça que me acalentara a vaga consciência da manhã nascendo entre o som dos carros que hortaliçam.
E então, em plena vida, é que o sonho tem grandes cinemas. Desço uma rua irreal da Baixa e a realidade das vidas que não são ata-me, com carinho, a cabeça num trapo branco de reminiscências falsas. Sou navegador num desconhecimento de mim. Venci tudo onde nunca estive. E é uma brisa nova esta sonolência com que posso andar, curvado para a frente numa marcha sobre o impossível.
Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por detrás de isso, céu meu, constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito.
[111]
Todo o homem de hoje, em quem a estatura moral e o relevo intelectual não sejam de pigmeu ou de charro, ama, quando ama, com o amor romântico.
O amor romântico é um produto extremo de séculos sobre séculos de influência cristã; e, tanto quanto à sua substância, como quanto à sequência do seu desenvolvimento, pode ser dado a conhecer a quem não o perceba comparando-o com uma veste, ou traje, que a alma ou a imaginação fabriquem para com ele vestir as criaturas, que acaso apareçam, e o espírito ache que lhes cabe.
Mas todo o traje, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e em breve, sob a veste do ideal que formamos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em quem o vestimos.
O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceita desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida.
[112]
Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém.
É um conceito nosso — em suma, é a nós mesmos — que amamos.
Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é abjeto, mas, em exata verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.
As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois “amo-te” ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstrata de impressões que constitui a atividade da alma.
Estou hoje lúcido como se não existisse. Meu pensamento é em claro como um esqueleto, sem os trapos carnais da ilusão de exprimir. E estas considerações, que formo e abandono, não nasceram de coisa alguma — de coisa alguma, pelo menos, que me esteja na plateia da consciência.
Talvez aquela desilusão do caixeiro de praça com a rapariga que tinha, talvez qualquer frase lida nos casos amorosos que os jornais transcrevem dos estrangeiros, talvez até uma vaga náusea que trago comigo e me não expeli fisicamente…
Disse mal o escoliasta de Virgílio. É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar.
[113]
Dois, três dias de semelhança de princípio de amor…
Tudo isto vale para o esteta pelas sensações que lhe causa. Avançar seria entrar no domínio onde começa o ciúme, o sofrimento, a excitação.
Nesta antecâmara da emoção há toda a suavidade do amor sem a sua profundeza — um gozo leve, portanto, aroma vago de desejos; se com isso se perde a grandeza que há na tragédia do amor, repare-se que, para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incômodas de sofrer. O próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida.
Reina quem não está entre os vulgares.
Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguisse persuadir-me que esta teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida.
[114] Estética do artifício
A vida prejudica a expressão nunca o poderia contar da vida. Se eu vivesse um grande amor. Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim.
Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é — crede-me bem — para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta.
Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia.
Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas — onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza.
Penso às vezes no belo que seria poder, unificando os meus sonhos, criar-me uma vida contínua, sucedendo-se, dentro do decorrer de dias inteiros, com convivas imaginários com gente criada, e ir vivendo, sofrendo, gozando essa vida falsa. Ali me aconteceriam desgraças; grandes alegrias ali cairiam sobre mim. E nada de mim seria real. Mas teria tudo uma lógica soberba, sua; seria tudo segundo um ritmo de voluptuosa falsidade, passando tudo numa cidade feita da minha alma, perdida até [ao] cais à beira de um comboio calmo, muito longe dentro de mim, muito longe… E tudo nítido, inevitável, como na vida exterior, mas estética de Morte do Sol.
[115]
Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a minha vida, quase que sem pensar nisso, mas tanta arte instintiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha.
[116]
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida — umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.
[117]
A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa.
Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma.
Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade direta; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não “Tenho vontade de chorar”, que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto: “Tenho vontade de lágrimas”. E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afetada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida. “Tenho vontade de lágrimas”! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral.
Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades factícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido.
[118]
Que me pesa que ninguém leia o que escrevo? Escrevo-o para me distrair de viver, e publico-o porque o jogo tem essa regra. Se amanhã se perdessem todos os meus escritos, teria pena, mas, creio bem, não com pena violenta e louca como seria de supor, pois que em tudo ia toda a minha vida. Não é outra, pois, que a mãe, morto o filho, meses depois estar aí [? ] e é a mesma. A grande terra que serve os mortos serviria, menos maternalmente, esses papéis. Tudo não importa e creio bem que houve quem visse a vida sem uma grande paciência para essa criança acordada e com grande desejo do sossego de quando ela, enfim, se tenha ido deitar.
[119]
Foi sempre com desgosto que li no diário de Amiel as referências que lembram que ele publicou livros. A figura quebra-se ali. Se não fora isso, que grande!
O diário de Amiel doeu-me sempre por minha causa.
Quando cheguei àquele ponto em que ele diz que sobre ele desceu o fruto do espírito como sendo “a consciência da consciência”, senti uma referência direta à minha alma.
[120]
Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra qualquer coração humano ante a dor dos outros, e o desconforto alheio, ponho-a eu no exame das minhas próprias dores, levo-a tão longe que nas ocasiões em que me sinto ridículo ou mesquinho, gozo-a como se fosse outro que o estivesse sendo. Por uma estranha e fantástica transformação de sentimentos, acontece que não sinto essa alegria maldosa e humaníssima perante a dor e o ridículo alheio. Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado.
Mais terrível de que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.
Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida.
Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer para uma ação qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver mais longe adentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube providenciar.
[121]
Como todo o indivíduo de grande mobilidade mental, tenho um amor orgânico e fatal à fixação. Abomino a vida nova e o lugar desconhecido.
[122]
A ideia de viajar nauseia-me.
Já vi tudo que nunca tinha visto.
Já vi tudo que ainda não vi.
O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das ideias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando.
Paisagens são repetições. Numa simples viagem de comboio divido-me inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisagem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro. Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma.
Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei. A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.
Ah, viajem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida. Mas aos que pensam e sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios não os deixa dormir nem acordar.
De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como de um sono cheio de sonhos — uma confusão tórpida, com as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi.
Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas o desejo de os ter.
Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas. E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito. Uma ou outra vez tenho ido, sempre opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando estou de volta.
Quando se sente demais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo.
[123]
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver.
Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho vê com o olhar.
No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas só — o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana — o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios — todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo… Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem.
Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.
Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos.
Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.
[124]
(Chapter on Indifference or something like that)
Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo.
Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. Pedir mais é próprio das crianças. Conquistar mais é próprio dos loucos, porque toda a conquista é
Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite, mas há três maneiras de o fazer, e a cada alma elevada compete escolher uma das maneiras. Pode viver-se a vida em extremo pela posse extrema dela, pela viagem Ulisseia através de todas as sensações vividas, através de todas as formas de energia exteriorizada. Raros, porém, são, em todas as épocas do mundo, os que podem fechar os olhos cheios do cansaço soma de todos os cansaços, os que possuíram tudo de todas as maneiras.
Raros podem assim exigir da vida, conseguindo-o, que ela se lhes entregue corpo e alma; sabendo não ser ciumentos dela por saber ter-lhe o amor inteiramente. Mas este deve ser, sem dúvida, o desejo de toda a alma elevada e forte. Quando essa alma, porém, verifica que lhe [é] impossível tal realização, que não tem forças para a conquista de todas as partes do Todo, tem dois outros caminhos que siga — um, a abdicação inteira, a abstenção formal, completa, relegando para a esfera da sensibilidade aquilo que não pode possuir integralmente na região da atividade e da energia. Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria inane dos homens; outro, o caminho do perfeito equilíbrio, a busca do Limite na Proporção Absoluta, por onde a ânsia de Extremo passa da vontade e da emoção para a Inteligência, sendo toda a ambição não de viver toda a vida, não de sentir toda a vida, mas de ordenar toda a vida, de a cumprir em Harmonia e Coordenação inteligente.
A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial.
Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso.
Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.
[125]
Não fizeram, Senhor, as vossas naus viagem mais primeira que a que o meu pensamento, no desastre deste livro, conseguiu. Cabo não dobraram, nem Draia viram mais afastada, tanto da audácia dos audazes como da imaginação dos por ousar, igual aos cabos que dobrei com a minha meditação, e às praias a que, com o meu [. . . ], fiz aportar o meu esforço.
Por vosso início, Senhor, se descobriu o Mundo Real; por meu o Mundo Intelectual se descobrirá.
Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também, na viagem do meu pensamento, tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstrato, que está no fundo das coisas, há horrores, que passar, que os homens do mundo não imaginam e medos que ter que a experiência humana não conhece; é mais humano talvez o cabo para o lugar indefinido do mar comum do que a senda abstrata para o vácuo do mundo.
Apartados do uso dos seus lares, êxuis do caminho das suas casas, viúvos para sempre da brandura de a vida ser a mesma, chegaram por fim os vossos emissários, vós já morto, ao extremo oceânico da Terra. Viram, no material, um novo céu e uma terra nova.
Eu, longe dos caminhos de mim próprio, cego da visão da vida que amo, cheguei por fim, também, ao extremo vazio das coisas, à borda imponderável do limite dos entes, à porta sem lugar do abismo abstrato do Mundo.
Entrei, senhor, essa Porta. Vaguei, senhor, por esse mar. Contemplei, senhor, esse invisível abismo.
Ponho esta obra de Descoberta suprema na invocação do vosso nome português, criador de argonautas.
[126]
Tenho grandes estagnações. Não é que, como toda a gente, esteja dias sobre dias para responder num postal à carta urgente que me escreveram. Não é que, como ninguém, adie indefinidamente o fácil que me é útil, ou o útil que me é agradável. Há mais sutileza na minha desinteligência comigo. Estagno na mesma alma. Dá-se em mim uma suspensão da vontade, da emoção, do pensamento, e esta suspensão dura magnos dias; só a vida vegetativa da alma — a palavra, o gesto, o hábito — me exprimem eu para os outros, e, através deles, para mim.
Nesses períodos da sombra, sou incapaz de pensar, de sentir, de querer. Não sei escrever mais que algarismos, ou riscos. Não sinto, e a morte de quem amasse far-me-ia a impressão de ter sido realizada numa língua estrangeira. Não posso; é como se dormisse e os meus gestos, as minhas palavras, os meus atos certos, não fossem mais que uma respiração periférica, instinto rítmico de um organismo qualquer.
Assim se passam dias sobre dias, nem sei dizer quanto da minha vida, se somasse, se não haveria passado assim. Às vezes ocorre-me que, quando dispo esta paragem de mim, talvez não esteja na nudez que suponho, e haja ainda vestes impalpáveis a cobrir a eterna ausência da minha alma verdadeira; ocorre-me que pensar, sentir, querer também podem ser estagnações, perante um mais íntimo pensar, um sentir mais meu, uma vontade perdida algures no labirinto do que realmente sou.
Seja como for deixo que seja. E ao deus, ou aos deuses, que haja, largo da mão o que sou, conforme a sorte manda e o acaso faz, fiel a um compromisso esquecido.
[127]
Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor a minha ideia de os achar belos.
Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos, o não ser doido para que pudesse afastar da alma de todos os que me cercam. E tomar o sonho por real, viver demasiado os sonhos deu-me este espinho à rosa falsa de minha sonhada vida: que nem os sonhos me agradam, porque lhes acho defeitos.
Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas me oculto o rumor da vida alheia ao meu olhá-la, do outro lado.
Ditosos os fazedores de sistemas pessimistas! Não só se amparam de ter feito qualquer coisa, como também se alegram do explicado, e se incluem na dor universal.
Eu não me queixo pelo mundo. Não protesto em nome do universo. Não sou pessimista. Sofro e queixo-me, mas não sei se o que há de mal é o sofrimento nem sei se é humano sofrer. Que me importa saber se isso é certo ou não?
Eu sofro, não sei se merecidamente. (Corça perseguida. )
Eu não sou pessimista, sou triste.
[128]
Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade.
Nada poderia indignar-me tanto como se no escritório me estranhassem.
Quero gozar comigo a ironia de me não estranharem. Quero o cilício de me julgarem igual a eles. Quero a crucifixão de me não distinguirem. Há martírios mais sutis que aqueles que se registram dos santos e dos eremitas. Há suplícios da inteligência como os há do corpo e do desejo.
E desses, como dos outros, suplícios há uma volúpia.
[129]
O moço atava os embrulhos de todos os dias no frio crepuscular do escritório vasto. “Que grande trovão”, disse para ninguém, com um tom alto de “bons dias”, o crudelíssimo bandido. Meu coração começou a bater [de] novo. O apocalipse tinha passado. Fez-se uma pausa.
E com que alívio — luz forte e clara, espaço, trovão duro — este troar próximo já afastado nos aliviava do que houvera. Deus cessara. Senti-me respirar com os pulmões inteiros. Reparei que estava pouco ar no escritório. Notei que havia ali outra gente, sem ser o moço. Todos haviam estado calados. Soou uma coisa tremula e crespa: era a grande folha espessa do Razão que o Moreira virara para diante, bruscamente, para verificar.
[130]
Penso, muitas vezes, em como eu seria se, resguardado do vento da sorte pelo biombo da riqueza, nunca houvesse sido trazido, pela mão moral de meu tio, para um escritório de Lisboa, nem houvesse ascendido dele para outros, até este píncaro barato de bom ajudante de guarda-livros, com um trabalho como uma certa sesta e um ordenado que dá para estar a viver.
Sei bem que, se esse passado que não foi tivesse sido, eu não seria hoje capaz de escrever estas páginas, em todo o caso melhores, por algumas, do que as nenhumas que em melhores circunstâncias não teria feito mais que sonhar. É que a banalidade é uma inteligência e a realidade, sobretudo se é estúpida ou áspera, um complemento natural da alma.
Devo ao ser guarda-livros grande parte do que posso sentir e pensar como a negação e a fuga do cargo.
Se houvesse de inscrever, no lugar sem letras de resposta a um questionário, a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório. E a todos poria, em letras magnas, o endereço chave LISBOA.
Vendo bem, tanto o Cesário Verde como estes foram para a minha visão do mundo coeficientes de correção. Creio que é esta a frase, cujo sentido exato evidentemente ignoro, com que os engenheiros designam o tratamento que se faz à matemática para ela poder andar até à vida. Se é, foi isso mesmo. Se não é, passe por o que poderia ser, e a intenção valha pela metáfora que falhou.
Considerando, aliás, e com a clareza que posso, o que tem sido aparentemente a minha vida, vejo-a como uma coisa colorida — capa de chocolate ou anilha de charuto — varrida, pela escova leve da criada que escuta de cima, da toalha a levantar para a pá de lixo das migalhas, entre as côdeas da realidade propriamente dita. Destaca-se das coisas cujo destino é igual por um privilégio que vai ter à pá também. E a conversa dos deuses continua por cima do escovar, indiferente a esses incidentes do serviço do mundo.
Sim, se eu tivesse sido rico, resguardado, escovado, ornamental, não teria sido nem esse breve episódio de papel bonito entre migalhas; teria ficado num prato da sorte — “não, muito obrigado” — e recolheria ao aparador para envelhecer. Assim, rejeitado depois de me comerem o miolo prático, vou com o pó do que resta do corpo de Cristo para o caixote do lixo, e nem imagino o que se segue, e entre que astros; mas sempre é seguir.
[131]
Não tendo que fazer, nem que pensar em fazer, vou pôr neste papel a descrição do meu ideal — Apontamento À sensibilidade de Mallarmé dentro do estilo de Vieira; sonhar como Verlaine no corpo de Horácio; ser Homero ao luar.
Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver claro para escrever justo; conhecer-se com fingimento e tática, naturalizar-se diferente e com todos os documentos; em suma, usar por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro que daqui estou vendo com as latas pequenas da graxa da nova marca.
Todos estes ideais, possíveis ou impossíveis, acabam agora. Tenho a realidade diante de mim — não é sequer o caixeiro, é a mão dele (a ele não vejo), tentáculo absurdo de uma alma com família e sorte, que faz trejeitos de aranha sem teia no esticar-se da reposição cá à frente.
E uma das latas caiu, como o Destino de toda a gente.
[132]
Quanto mais contemplo o espetáculo do mundo, e o fluxo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente me compenetro da ficção ingênita de tudo, do prestígio falso da pompa de todas as realidades. E nesta contemplação, que a todos, que refletem, uma ou outra vez terá sucedido, a marcha multicolor dos costumes e das modas, o caminho complexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa dos impérios e das culturas — tudo isso me aparece como um mito e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos. Mas não sei se a definição suprema de todos esses propósitos mortos, até quando conseguidos, deve estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo “Já sei tudo”, ou na indiferença demasiado experiente do imperador Severo: “omnia fui, nihil expedit — fui tudo, nada vale a pena. ”
[133]
O mundo, monturo de forças instintivas, que em todo o caso brilha ao sol com tons palhetados de ouro claro e escuro.
Para mim, se considero, pestes, tormentas, guerras, são produtos da mesma força cega, operando uma vez através de micróbios inconscientes, outra vez através de raios e águas inconscientes, outra vez através de homens inconscientes. Um terremoto e um massacre não têm para mim diferença senão a que há entre assassinar com uma faca e assassinar com um punhal. O monstro imanente nas coisas tanto se serve — para o seu bem ou o seu mal, que, ao que parece, lhe são indiferentes — da deslocação de um pedregulho na altura ou da deslocação do ciúme ou da cobiça num coração. O pedregulho cai, e mata um homem; a cobiça ou o ciúme armam um braço, e o braço mata um homem. Assim é o mundo, monturo de forças instintivas, que todavia brilha ao sol com tons palhetados de ouro claro e escuro.
Para fazer face à brutalidade de indiferença, que constitui o fundo visível das coisas, descobriram os místicos que o melhor era repudiar.
Negar o mundo, virar-se dele como de um pântano a cuja beira nos encontrássemos. Negar como o Buda, negando-lhe a realidade absoluta; negar como o Cristo, negando-lhe a realidade relativa; negar.
Não pedi à vida mais do que ela me não exigisse nada. À porta da cabana que não tive sentei-me ao sol que nunca houve, e gozei a velhice futura da minha realidade cansada (com o prazer de a não ter ainda).
Não ter morrido ainda basta para os pobres da vida, e ter ainda a esperança para contente com o sonho só quando não estou sonhando, contente com o mundo só quando sonho longe dele. Pêndulo oscilante, sempre movendo-se para não chegar, indo só para voltar, preso eternamente à dupla fatalidade de um centro e de um movimento inútil.
[134]
Busco-me e não me encontro. Pertenço a horas crisântemos, nítidas em alongamentos de jarros. Devo fazer da minha alma uma coisa decorativa.
Não sei que detalhes demasiadamente pomposos e escolhidos definem o feitio do meu espírito. O meu amor ao ornamental é, sem dúvida, porque sinto nele qualquer coisa de idêntico à substância da minha alma.
[135]
As coisas mais simples, mais realmente simples, que nada pode tornar semissimples, torna-mas complexas o eu vivê-las. Dar a alguém os bons-dias por vezes intimida-me. Seca-se-me a voz, como se houvesse uma audácia estranha em ter essas palavras em voz alta. É uma espécie de pudor de existir — não tem outro nome!
A análise constante das nossas sensações cria um modo novo de sentir, que parece artificial a quem analise só com a inteligência, que não com a própria sensação.
Toda a vida fui fútil metafisicamente, sério a brincar. Nada fiz a sério, por mais que quisesse. Divertiu-se em mim comigo um Destino malin.
Ter emoções de chita, ou de seda, ou de brocado! Ter emoções descritíveis assim! Ter emoções descritíveis!
Sobe por mim na alma um arrependimento que é de Deus por tudo, uma paixão surda de lágrimas pela condenação dos sonhos na carne dos que os sonharam… E odeio sem ódio todos os poetas que escreveram versos, todos os idealistas que fizeram ver o seu ideal, todos os que conseguiram o que queriam.
Vagueio indefinidamente nas ruas sossegadas, ando até cansar o corpo em acordo com a alma, dói-me até aquele extremo da dor conhecida que tem um gozo em sentir-se, uma compaixão materna por si-mesma, que é musicada e indefinível.
Dormir! Adormecer! Sossegar! Ser uma consciência abstrata de respirar sossegadamente, sem mundo, sem astros, sem alma — mar morto de emoção refletindo uma ausência de estrelas!
[136]
O peso de sentir! O peso de ter que sentir!
[137]
… a hiperacuidade não sei se das sensações, se da só expressão delas, ou se, mais propriamente, da inteligência que está entre umas e outra e forma do propósito de exprimir a emoção fictícia que existe só para ser expressa. (Talvez não seja mais em mim que a máquina de revelar quem não sou. )
[138]
Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade.
A erudição da sensibilidade nada tem a ver com a experiência da vida. A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contato com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar.
Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. “Qualquer estrada”, disse Carlylé, “até esta estrada de Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo. ” Mas a estrada de Entepfuhl, se for seguida toda, e até ao fim, volta a Entepfuhl; de modo que o Entepfuhl, onde já estávamos, é aquele mesmo fim do mundo que íamos a buscar.
Condillac começa o seu livro célebre, “Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações”. Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é minha.
Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos.
Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.
Nos países que os outros visitam, visitam-nos anônimos e peregrinos. Nos países que tenho visitado, tenho sido, não só o prazer escondido do viajante incógnito, mas a majestade do Rei que ali reina, e o povo cujo uso ali habita, e a história inteira daquela nação e das outras. As mesmas paisagens, as mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas em Deus com a substância da minha imaginação.
[139]
Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação.
Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.
Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave do fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora — visto com ouvido — o som súbito do elétrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva.
Há muito tempo que não sou eu.
[140]
Acontece-me às vezes, e sempre que acontece é quase de repente, surgir-me no meio das sensações um cansaço tão terrível da vida que não há sequer hipótese de ato com que dominá-lo.
Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?
O meu orgulho lapidado por cegos e a minha desilusão pisada por mendigos.
“Quero-te só para sonho”, dizem à mulher amada, em versos que lhe não enviam, os que não ousam dizer-lhe nada. Este “quero-te só para sonho” é um verso de um velho poema meu. Registro a memória com um sorriso, e nem o sorriso comento.
[107]
Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando encontram; daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam. Sofro a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados os poetas românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é não ser nunca protagonista.
Não tenho uma ideia de mim próprio; nem aquela que consiste em uma falta de ideia de mim próprio. Sou um nômade da consciência de mim. Tresmalharam-se à primeira guarda os rebanhos da minha riqueza íntima.
A única tragédia é não nos podermos conceber trágicos. Vi sempre nitidamente a minha coexistência com o mundo. Nunca senti nitidamente a minha falta de coexistir com ele; por isso nunca fui um normal.
Agir é repousar.
Todos os problemas são insolúveis. A essência de haver um problema é não haver uma solução. Procurar um fato significa não haver um fato.
Pensar é não saber existir.
Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão. A minha impaciência constantemente me quer arrancar desse sossego, e a minha inércia constantemente me detém nele. Medito, então, em uma modorra de físico, que se parece com a volúpia apenas como o sussurro de vento lembra vozes, na eterna insaciabilidade dos meus desejos vagos, na perene instabilidade das minhas ânsias impossíveis. Sofro, principalmente, do mal de poder sofrer. Falta-me qualquer coisa que não desejo e sofro por isso não ser propriamente sofrer.
O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia. As flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não haver aqui flautas e isso lembrar-mas. Os idílios longínquos, ao pé de riachos, doem-me esta hora análoga por dentro,
[108]
A vida pode ser sentida como uma náusea no estômago, a existência da própria alma como um incômodo dos músculos. A desolação do espírito, quando agudamente sentida, faz marés, de longe, no corpo, e dói por delegação.
Estou consciente de mim em um dia, em que a dor de ser consciente é, como diz o poeta,
languidez, mareo y angustioso afán.
[109]
(storm)
Sobra silêncio escuro lividamente. A seu modo, perto, entre o errar raro e rápido das carroças, um camião troveja — eco ridículo, mecânico, do que vai real na distância próxima dos céus.
De novo, sem aviso, espadana luz magnética, pestanejando. Bate o coração um hausto breve. Quebra-se uma redoma no alto, em estilhaços grandes de cúpula. Um lençol novo de má chuva agride o som do chão.
(patrão Vasques) A sua cara lívida está de um verde falso e desnorteado.
Noto-o, entre o ar difícil do peito, com a fraternidade de saber que também estarei assim.
[110]
Quando durmo muitos sonhos, venho para a rua, de olhos abertos, ainda com o rastro e a segurança deles. E pasmo do automatismo meu com que os outros me desconhecem. Porque atravesso a vida quotidiana sem largar a mão da ama astral, e os meus passos na rua vão concordes e consoantes com obscuros desígnios da imaginação de dormir. E na rua vou certo; não cambaleio; respondo bem; existo.
Mas, quando há um intervalo, e não tenho que vigiar o curso da minha marcha, para evitar veículos ou não estorvar peões, quando não tenho que falar a alguém, nem me pesa a entrada para uma porta próxima, largo-me de novo nas águas do sonho, como um barco de papel dobrado em bicos, e de novo regresso à ilusão mortiça que me acalentara a vaga consciência da manhã nascendo entre o som dos carros que hortaliçam.
E então, em plena vida, é que o sonho tem grandes cinemas. Desço uma rua irreal da Baixa e a realidade das vidas que não são ata-me, com carinho, a cabeça num trapo branco de reminiscências falsas. Sou navegador num desconhecimento de mim. Venci tudo onde nunca estive. E é uma brisa nova esta sonolência com que posso andar, curvado para a frente numa marcha sobre o impossível.
Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por detrás de isso, céu meu, constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito.
[111]
Todo o homem de hoje, em quem a estatura moral e o relevo intelectual não sejam de pigmeu ou de charro, ama, quando ama, com o amor romântico.
O amor romântico é um produto extremo de séculos sobre séculos de influência cristã; e, tanto quanto à sua substância, como quanto à sequência do seu desenvolvimento, pode ser dado a conhecer a quem não o perceba comparando-o com uma veste, ou traje, que a alma ou a imaginação fabriquem para com ele vestir as criaturas, que acaso apareçam, e o espírito ache que lhes cabe.
Mas todo o traje, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e em breve, sob a veste do ideal que formamos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em quem o vestimos.
O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceita desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida.
[112]
Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém.
É um conceito nosso — em suma, é a nós mesmos — que amamos.
Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é abjeto, mas, em exata verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.
As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois “amo-te” ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstrata de impressões que constitui a atividade da alma.
Estou hoje lúcido como se não existisse. Meu pensamento é em claro como um esqueleto, sem os trapos carnais da ilusão de exprimir. E estas considerações, que formo e abandono, não nasceram de coisa alguma — de coisa alguma, pelo menos, que me esteja na plateia da consciência.
Talvez aquela desilusão do caixeiro de praça com a rapariga que tinha, talvez qualquer frase lida nos casos amorosos que os jornais transcrevem dos estrangeiros, talvez até uma vaga náusea que trago comigo e me não expeli fisicamente…
Disse mal o escoliasta de Virgílio. É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar.
[113]
Dois, três dias de semelhança de princípio de amor…
Tudo isto vale para o esteta pelas sensações que lhe causa. Avançar seria entrar no domínio onde começa o ciúme, o sofrimento, a excitação.
Nesta antecâmara da emoção há toda a suavidade do amor sem a sua profundeza — um gozo leve, portanto, aroma vago de desejos; se com isso se perde a grandeza que há na tragédia do amor, repare-se que, para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incômodas de sofrer. O próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida.
Reina quem não está entre os vulgares.
Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguisse persuadir-me que esta teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida.
[114] Estética do artifício
A vida prejudica a expressão nunca o poderia contar da vida. Se eu vivesse um grande amor. Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim.
Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é — crede-me bem — para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta.
Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia.
Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas — onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza.
Penso às vezes no belo que seria poder, unificando os meus sonhos, criar-me uma vida contínua, sucedendo-se, dentro do decorrer de dias inteiros, com convivas imaginários com gente criada, e ir vivendo, sofrendo, gozando essa vida falsa. Ali me aconteceriam desgraças; grandes alegrias ali cairiam sobre mim. E nada de mim seria real. Mas teria tudo uma lógica soberba, sua; seria tudo segundo um ritmo de voluptuosa falsidade, passando tudo numa cidade feita da minha alma, perdida até [ao] cais à beira de um comboio calmo, muito longe dentro de mim, muito longe… E tudo nítido, inevitável, como na vida exterior, mas estética de Morte do Sol.
[115]
Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a minha vida, quase que sem pensar nisso, mas tanta arte instintiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha.
[116]
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida — umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.
[117]
A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa.
Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma.
Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade direta; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não “Tenho vontade de chorar”, que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto: “Tenho vontade de lágrimas”. E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afetada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida. “Tenho vontade de lágrimas”! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral.
Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades factícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido.
[118]
Que me pesa que ninguém leia o que escrevo? Escrevo-o para me distrair de viver, e publico-o porque o jogo tem essa regra. Se amanhã se perdessem todos os meus escritos, teria pena, mas, creio bem, não com pena violenta e louca como seria de supor, pois que em tudo ia toda a minha vida. Não é outra, pois, que a mãe, morto o filho, meses depois estar aí [? ] e é a mesma. A grande terra que serve os mortos serviria, menos maternalmente, esses papéis. Tudo não importa e creio bem que houve quem visse a vida sem uma grande paciência para essa criança acordada e com grande desejo do sossego de quando ela, enfim, se tenha ido deitar.
[119]
Foi sempre com desgosto que li no diário de Amiel as referências que lembram que ele publicou livros. A figura quebra-se ali. Se não fora isso, que grande!
O diário de Amiel doeu-me sempre por minha causa.
Quando cheguei àquele ponto em que ele diz que sobre ele desceu o fruto do espírito como sendo “a consciência da consciência”, senti uma referência direta à minha alma.
[120]
Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra qualquer coração humano ante a dor dos outros, e o desconforto alheio, ponho-a eu no exame das minhas próprias dores, levo-a tão longe que nas ocasiões em que me sinto ridículo ou mesquinho, gozo-a como se fosse outro que o estivesse sendo. Por uma estranha e fantástica transformação de sentimentos, acontece que não sinto essa alegria maldosa e humaníssima perante a dor e o ridículo alheio. Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado.
Mais terrível de que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.
Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida.
Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer para uma ação qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver mais longe adentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube providenciar.
[121]
Como todo o indivíduo de grande mobilidade mental, tenho um amor orgânico e fatal à fixação. Abomino a vida nova e o lugar desconhecido.
[122]
A ideia de viajar nauseia-me.
Já vi tudo que nunca tinha visto.
Já vi tudo que ainda não vi.
O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das ideias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando.
Paisagens são repetições. Numa simples viagem de comboio divido-me inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisagem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro. Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma.
Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei. A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.
Ah, viajem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida. Mas aos que pensam e sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios não os deixa dormir nem acordar.
De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como de um sono cheio de sonhos — uma confusão tórpida, com as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi.
Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas o desejo de os ter.
Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas. E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito. Uma ou outra vez tenho ido, sempre opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando estou de volta.
Quando se sente demais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo.
[123]
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver.
Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho vê com o olhar.
No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas só — o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana — o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios — todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo… Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem.
Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.
Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos.
Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.
[124]
(Chapter on Indifference or something like that)
Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo.
Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. Pedir mais é próprio das crianças. Conquistar mais é próprio dos loucos, porque toda a conquista é
Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite, mas há três maneiras de o fazer, e a cada alma elevada compete escolher uma das maneiras. Pode viver-se a vida em extremo pela posse extrema dela, pela viagem Ulisseia através de todas as sensações vividas, através de todas as formas de energia exteriorizada. Raros, porém, são, em todas as épocas do mundo, os que podem fechar os olhos cheios do cansaço soma de todos os cansaços, os que possuíram tudo de todas as maneiras.
Raros podem assim exigir da vida, conseguindo-o, que ela se lhes entregue corpo e alma; sabendo não ser ciumentos dela por saber ter-lhe o amor inteiramente. Mas este deve ser, sem dúvida, o desejo de toda a alma elevada e forte. Quando essa alma, porém, verifica que lhe [é] impossível tal realização, que não tem forças para a conquista de todas as partes do Todo, tem dois outros caminhos que siga — um, a abdicação inteira, a abstenção formal, completa, relegando para a esfera da sensibilidade aquilo que não pode possuir integralmente na região da atividade e da energia. Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria inane dos homens; outro, o caminho do perfeito equilíbrio, a busca do Limite na Proporção Absoluta, por onde a ânsia de Extremo passa da vontade e da emoção para a Inteligência, sendo toda a ambição não de viver toda a vida, não de sentir toda a vida, mas de ordenar toda a vida, de a cumprir em Harmonia e Coordenação inteligente.
A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial.
Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso.
Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.
[125]
Não fizeram, Senhor, as vossas naus viagem mais primeira que a que o meu pensamento, no desastre deste livro, conseguiu. Cabo não dobraram, nem Draia viram mais afastada, tanto da audácia dos audazes como da imaginação dos por ousar, igual aos cabos que dobrei com a minha meditação, e às praias a que, com o meu [. . . ], fiz aportar o meu esforço.
Por vosso início, Senhor, se descobriu o Mundo Real; por meu o Mundo Intelectual se descobrirá.
Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também, na viagem do meu pensamento, tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstrato, que está no fundo das coisas, há horrores, que passar, que os homens do mundo não imaginam e medos que ter que a experiência humana não conhece; é mais humano talvez o cabo para o lugar indefinido do mar comum do que a senda abstrata para o vácuo do mundo.
Apartados do uso dos seus lares, êxuis do caminho das suas casas, viúvos para sempre da brandura de a vida ser a mesma, chegaram por fim os vossos emissários, vós já morto, ao extremo oceânico da Terra. Viram, no material, um novo céu e uma terra nova.
Eu, longe dos caminhos de mim próprio, cego da visão da vida que amo, cheguei por fim, também, ao extremo vazio das coisas, à borda imponderável do limite dos entes, à porta sem lugar do abismo abstrato do Mundo.
Entrei, senhor, essa Porta. Vaguei, senhor, por esse mar. Contemplei, senhor, esse invisível abismo.
Ponho esta obra de Descoberta suprema na invocação do vosso nome português, criador de argonautas.
[126]
Tenho grandes estagnações. Não é que, como toda a gente, esteja dias sobre dias para responder num postal à carta urgente que me escreveram. Não é que, como ninguém, adie indefinidamente o fácil que me é útil, ou o útil que me é agradável. Há mais sutileza na minha desinteligência comigo. Estagno na mesma alma. Dá-se em mim uma suspensão da vontade, da emoção, do pensamento, e esta suspensão dura magnos dias; só a vida vegetativa da alma — a palavra, o gesto, o hábito — me exprimem eu para os outros, e, através deles, para mim.
Nesses períodos da sombra, sou incapaz de pensar, de sentir, de querer. Não sei escrever mais que algarismos, ou riscos. Não sinto, e a morte de quem amasse far-me-ia a impressão de ter sido realizada numa língua estrangeira. Não posso; é como se dormisse e os meus gestos, as minhas palavras, os meus atos certos, não fossem mais que uma respiração periférica, instinto rítmico de um organismo qualquer.
Assim se passam dias sobre dias, nem sei dizer quanto da minha vida, se somasse, se não haveria passado assim. Às vezes ocorre-me que, quando dispo esta paragem de mim, talvez não esteja na nudez que suponho, e haja ainda vestes impalpáveis a cobrir a eterna ausência da minha alma verdadeira; ocorre-me que pensar, sentir, querer também podem ser estagnações, perante um mais íntimo pensar, um sentir mais meu, uma vontade perdida algures no labirinto do que realmente sou.
Seja como for deixo que seja. E ao deus, ou aos deuses, que haja, largo da mão o que sou, conforme a sorte manda e o acaso faz, fiel a um compromisso esquecido.
[127]
Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor a minha ideia de os achar belos.
Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos, o não ser doido para que pudesse afastar da alma de todos os que me cercam. E tomar o sonho por real, viver demasiado os sonhos deu-me este espinho à rosa falsa de minha sonhada vida: que nem os sonhos me agradam, porque lhes acho defeitos.
Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas me oculto o rumor da vida alheia ao meu olhá-la, do outro lado.
Ditosos os fazedores de sistemas pessimistas! Não só se amparam de ter feito qualquer coisa, como também se alegram do explicado, e se incluem na dor universal.
Eu não me queixo pelo mundo. Não protesto em nome do universo. Não sou pessimista. Sofro e queixo-me, mas não sei se o que há de mal é o sofrimento nem sei se é humano sofrer. Que me importa saber se isso é certo ou não?
Eu sofro, não sei se merecidamente. (Corça perseguida. )
Eu não sou pessimista, sou triste.
[128]
Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade.
Nada poderia indignar-me tanto como se no escritório me estranhassem.
Quero gozar comigo a ironia de me não estranharem. Quero o cilício de me julgarem igual a eles. Quero a crucifixão de me não distinguirem. Há martírios mais sutis que aqueles que se registram dos santos e dos eremitas. Há suplícios da inteligência como os há do corpo e do desejo.
E desses, como dos outros, suplícios há uma volúpia.
[129]
O moço atava os embrulhos de todos os dias no frio crepuscular do escritório vasto. “Que grande trovão”, disse para ninguém, com um tom alto de “bons dias”, o crudelíssimo bandido. Meu coração começou a bater [de] novo. O apocalipse tinha passado. Fez-se uma pausa.
E com que alívio — luz forte e clara, espaço, trovão duro — este troar próximo já afastado nos aliviava do que houvera. Deus cessara. Senti-me respirar com os pulmões inteiros. Reparei que estava pouco ar no escritório. Notei que havia ali outra gente, sem ser o moço. Todos haviam estado calados. Soou uma coisa tremula e crespa: era a grande folha espessa do Razão que o Moreira virara para diante, bruscamente, para verificar.
[130]
Penso, muitas vezes, em como eu seria se, resguardado do vento da sorte pelo biombo da riqueza, nunca houvesse sido trazido, pela mão moral de meu tio, para um escritório de Lisboa, nem houvesse ascendido dele para outros, até este píncaro barato de bom ajudante de guarda-livros, com um trabalho como uma certa sesta e um ordenado que dá para estar a viver.
Sei bem que, se esse passado que não foi tivesse sido, eu não seria hoje capaz de escrever estas páginas, em todo o caso melhores, por algumas, do que as nenhumas que em melhores circunstâncias não teria feito mais que sonhar. É que a banalidade é uma inteligência e a realidade, sobretudo se é estúpida ou áspera, um complemento natural da alma.
Devo ao ser guarda-livros grande parte do que posso sentir e pensar como a negação e a fuga do cargo.
Se houvesse de inscrever, no lugar sem letras de resposta a um questionário, a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório. E a todos poria, em letras magnas, o endereço chave LISBOA.
Vendo bem, tanto o Cesário Verde como estes foram para a minha visão do mundo coeficientes de correção. Creio que é esta a frase, cujo sentido exato evidentemente ignoro, com que os engenheiros designam o tratamento que se faz à matemática para ela poder andar até à vida. Se é, foi isso mesmo. Se não é, passe por o que poderia ser, e a intenção valha pela metáfora que falhou.
Considerando, aliás, e com a clareza que posso, o que tem sido aparentemente a minha vida, vejo-a como uma coisa colorida — capa de chocolate ou anilha de charuto — varrida, pela escova leve da criada que escuta de cima, da toalha a levantar para a pá de lixo das migalhas, entre as côdeas da realidade propriamente dita. Destaca-se das coisas cujo destino é igual por um privilégio que vai ter à pá também. E a conversa dos deuses continua por cima do escovar, indiferente a esses incidentes do serviço do mundo.
Sim, se eu tivesse sido rico, resguardado, escovado, ornamental, não teria sido nem esse breve episódio de papel bonito entre migalhas; teria ficado num prato da sorte — “não, muito obrigado” — e recolheria ao aparador para envelhecer. Assim, rejeitado depois de me comerem o miolo prático, vou com o pó do que resta do corpo de Cristo para o caixote do lixo, e nem imagino o que se segue, e entre que astros; mas sempre é seguir.
[131]
Não tendo que fazer, nem que pensar em fazer, vou pôr neste papel a descrição do meu ideal — Apontamento À sensibilidade de Mallarmé dentro do estilo de Vieira; sonhar como Verlaine no corpo de Horácio; ser Homero ao luar.
Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver claro para escrever justo; conhecer-se com fingimento e tática, naturalizar-se diferente e com todos os documentos; em suma, usar por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro que daqui estou vendo com as latas pequenas da graxa da nova marca.
Todos estes ideais, possíveis ou impossíveis, acabam agora. Tenho a realidade diante de mim — não é sequer o caixeiro, é a mão dele (a ele não vejo), tentáculo absurdo de uma alma com família e sorte, que faz trejeitos de aranha sem teia no esticar-se da reposição cá à frente.
E uma das latas caiu, como o Destino de toda a gente.
[132]
Quanto mais contemplo o espetáculo do mundo, e o fluxo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente me compenetro da ficção ingênita de tudo, do prestígio falso da pompa de todas as realidades. E nesta contemplação, que a todos, que refletem, uma ou outra vez terá sucedido, a marcha multicolor dos costumes e das modas, o caminho complexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa dos impérios e das culturas — tudo isso me aparece como um mito e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos. Mas não sei se a definição suprema de todos esses propósitos mortos, até quando conseguidos, deve estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo “Já sei tudo”, ou na indiferença demasiado experiente do imperador Severo: “omnia fui, nihil expedit — fui tudo, nada vale a pena. ”
[133]
O mundo, monturo de forças instintivas, que em todo o caso brilha ao sol com tons palhetados de ouro claro e escuro.
Para mim, se considero, pestes, tormentas, guerras, são produtos da mesma força cega, operando uma vez através de micróbios inconscientes, outra vez através de raios e águas inconscientes, outra vez através de homens inconscientes. Um terremoto e um massacre não têm para mim diferença senão a que há entre assassinar com uma faca e assassinar com um punhal. O monstro imanente nas coisas tanto se serve — para o seu bem ou o seu mal, que, ao que parece, lhe são indiferentes — da deslocação de um pedregulho na altura ou da deslocação do ciúme ou da cobiça num coração. O pedregulho cai, e mata um homem; a cobiça ou o ciúme armam um braço, e o braço mata um homem. Assim é o mundo, monturo de forças instintivas, que todavia brilha ao sol com tons palhetados de ouro claro e escuro.
Para fazer face à brutalidade de indiferença, que constitui o fundo visível das coisas, descobriram os místicos que o melhor era repudiar.
Negar o mundo, virar-se dele como de um pântano a cuja beira nos encontrássemos. Negar como o Buda, negando-lhe a realidade absoluta; negar como o Cristo, negando-lhe a realidade relativa; negar.
Não pedi à vida mais do que ela me não exigisse nada. À porta da cabana que não tive sentei-me ao sol que nunca houve, e gozei a velhice futura da minha realidade cansada (com o prazer de a não ter ainda).
Não ter morrido ainda basta para os pobres da vida, e ter ainda a esperança para contente com o sonho só quando não estou sonhando, contente com o mundo só quando sonho longe dele. Pêndulo oscilante, sempre movendo-se para não chegar, indo só para voltar, preso eternamente à dupla fatalidade de um centro e de um movimento inútil.
[134]
Busco-me e não me encontro. Pertenço a horas crisântemos, nítidas em alongamentos de jarros. Devo fazer da minha alma uma coisa decorativa.
Não sei que detalhes demasiadamente pomposos e escolhidos definem o feitio do meu espírito. O meu amor ao ornamental é, sem dúvida, porque sinto nele qualquer coisa de idêntico à substância da minha alma.
[135]
As coisas mais simples, mais realmente simples, que nada pode tornar semissimples, torna-mas complexas o eu vivê-las. Dar a alguém os bons-dias por vezes intimida-me. Seca-se-me a voz, como se houvesse uma audácia estranha em ter essas palavras em voz alta. É uma espécie de pudor de existir — não tem outro nome!
A análise constante das nossas sensações cria um modo novo de sentir, que parece artificial a quem analise só com a inteligência, que não com a própria sensação.
Toda a vida fui fútil metafisicamente, sério a brincar. Nada fiz a sério, por mais que quisesse. Divertiu-se em mim comigo um Destino malin.
Ter emoções de chita, ou de seda, ou de brocado! Ter emoções descritíveis assim! Ter emoções descritíveis!
Sobe por mim na alma um arrependimento que é de Deus por tudo, uma paixão surda de lágrimas pela condenação dos sonhos na carne dos que os sonharam… E odeio sem ódio todos os poetas que escreveram versos, todos os idealistas que fizeram ver o seu ideal, todos os que conseguiram o que queriam.
Vagueio indefinidamente nas ruas sossegadas, ando até cansar o corpo em acordo com a alma, dói-me até aquele extremo da dor conhecida que tem um gozo em sentir-se, uma compaixão materna por si-mesma, que é musicada e indefinível.
Dormir! Adormecer! Sossegar! Ser uma consciência abstrata de respirar sossegadamente, sem mundo, sem astros, sem alma — mar morto de emoção refletindo uma ausência de estrelas!
[136]
O peso de sentir! O peso de ter que sentir!
[137]
… a hiperacuidade não sei se das sensações, se da só expressão delas, ou se, mais propriamente, da inteligência que está entre umas e outra e forma do propósito de exprimir a emoção fictícia que existe só para ser expressa. (Talvez não seja mais em mim que a máquina de revelar quem não sou. )
[138]
Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade.
A erudição da sensibilidade nada tem a ver com a experiência da vida. A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contato com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar.
Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. “Qualquer estrada”, disse Carlylé, “até esta estrada de Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo. ” Mas a estrada de Entepfuhl, se for seguida toda, e até ao fim, volta a Entepfuhl; de modo que o Entepfuhl, onde já estávamos, é aquele mesmo fim do mundo que íamos a buscar.
Condillac começa o seu livro célebre, “Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações”. Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é minha.
Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos.
Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.
Nos países que os outros visitam, visitam-nos anônimos e peregrinos. Nos países que tenho visitado, tenho sido, não só o prazer escondido do viajante incógnito, mas a majestade do Rei que ali reina, e o povo cujo uso ali habita, e a história inteira daquela nação e das outras. As mesmas paisagens, as mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas em Deus com a substância da minha imaginação.
[139]
Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação.
Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.
Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave do fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora — visto com ouvido — o som súbito do elétrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva.
Há muito tempo que não sou eu.
[140]
Acontece-me às vezes, e sempre que acontece é quase de repente, surgir-me no meio das sensações um cansaço tão terrível da vida que não há sequer hipótese de ato com que dominá-lo.