Uma luz de inferno frio visitara o
conteúdo
de tudo, e enchera os cérebros e os recantos.
Pessoa - Livro do Desassossego
Só então reparei que havia mais na rua que os candeeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um lugar vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida…
[434]
Luares
… molhadamente sujo de castanho morto
… nos resvalamentos nítidos dos telhados sobrepostos, branco cinzento, molhadamente sujo de castanho morto.
[435]
… e desnivela-se em conglomerados de sombra, recortados de um lado a branco, com diferenças azuladas de madrepérola fria.
[436]
(chuva)
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. É outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. É outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! —, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com que espreito, entre pálpebras de gato ao sol, os movimentos da lógica da minha imaginação desprendida. Vou sentindo sumirem-se-me os privilégios da penumbra, e os rios lentos sob as árvores das pestanas entrevistas, e o sussurro das cascatas perdidas entre o som do sangue lento nos ouvidos e o vago perdurar de chuva. Vou-me perdendo até vivo.
Não sei se durmo, ou se só sinto que durmo. Não sonho o intervalo certo, mas reparo, como se começasse a despertar de um sono não dormido, os primeiros ruídos da vida da cidade, a subir, como uma cheia, do lugar vago, lá em baixo, onde ficam as ruas que Deus fez. São sons alegres, coados pela tristeza da chuva que há, ou, talvez, que houve — pois a não ouço agora —, só o cinzento excessivo da luz frinchada até mais longe que me dá, nas sombras de uma claridade frouxa, insuficiente para a altura da madrugada, que não sei qual é… São sons alegres e dispersos e doem-me no coração como se me viessem, com eles, chamar a um exame ou a uma execução. Cada dia, se o ouço raiar da cama onde ignoro, me parece o dia de um grande acontecimento meu que não terei coragem para enfrentar. Cada dia, se o sinto erguer-se do leito das sombras, com um cair de roupas da cama pelas ruas e pelas vielas, vem chamar-me a um tribunal. Vou ser julgado em cada hoje que há. E o condenado perene que há em mim agarra-se ao leito como à mãe que perdeu, e acaricia o travesseiro como se a ama o defendesse de gentes.
A sesta feliz do bicho grande à sombra de árvores, o cansaço fresco do esfarrapado entre a erva alta, o torpor do negro na tarde morna e longínqua, a delícia do bocejo que pesa nos olhos frouxos tudo que acaricia o esquecimento, fazendo sono, o sossego do repouso na cabeça, encostando, pé ante pé, as portas da janela na alma, o afago anônimo de dormir.
Dormir, ser longínquo sem o saber, estar distante, esquecer com o próprio corpo; ter a liberdade de ser inconsciente, um refúgio de lago esquecido, estagnado entre frondes árvores, nos vastos afastamentos das florestas.
Um nada com respiração por fora, uma morte leve de que se desperta com saudade e frescura, um ceder dos tecidos da alma à massagem do esquecimento.
Ah, e de novo, como o protesto reatado de quem se não convenceu, ouço o alarido brusco da chuva chapinhar no universo aclarado. Sinto um frio até aos ossos supostos, como se tivesse medo. E agachado, nulo, humano a sós comigo na pouca treva que ainda me resta, choro. Sim, choro, choro de solidão e de vida, e a minha mágoa fútil como um carro sem rodas jaz à beira da realidade entre os estercos do abandono. Choro de tudo, entre perda do regaço, a morte da mão que me davam, os braços que não soube como me cingissem, o ombro que nunca poderia ter… E o dia que raia definitivamente, a mágoa que raia em mim como a verdade crua do dia, o que sonhei, o que pensei, o que se esqueceu em mim — tudo isso, numa amálgama de sombras, de ficções e de remorsos, se mistura no rastro em que vão os mundos e cai entre as coisas da vida como o esqueleto de um cacho de uvas, comido à esquina pelos garotos que o roubaram.
O ruído do dia humano aumenta de repente, como um som de sineta de chamada. Estala adentro da casa o fecho suave da primeira porta que se abre para viverem. Ouço chinelos num corredor absurdo que conduz até meu coração. E num gesto brusco, como quem enfim se matasse, arrojo de sobre o corpo duro as roupas profundas da cama que me abriga. Despertei. O som da chuva esbate-se para mais alto no exterior indefinido. Sinto-me mais feliz. Cumpri uma coisa que ignoro. Ergo-me, vou à janela, abro as portas com uma decisão de muita coragem. Luze um dia de chuva clara que me afoga os olhos em luz baça. Abro as próprias janelas de vidro. O ar fresco umedece-me a pele quente. Chove, sim, mas ainda que seja o mesmo é afinal tão menos! Quero refrescar-me, viver, e inclino o pescoço à vida, como a uma canga imensa.
[437]
Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobretudo nos meios-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos Douradores, temos o bom sono.
Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes transeuntes lentos, de aldeia transferida! Eu mesmo, olhando-os da janela do escritório, onde estou só, me transmuto: estou numa vila quieta da província, estagno numa aldeola incógnita, e porque me sinto outro sou feliz.
Bem sei: se ergo os olhos, está diante de mim a linha sórdida da casaria, as janelas por lavar de todos os escritórios da Baixa, as janelas sem sentido dos andares mais altos onde ainda se mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei isto, mas é tão suave a luz que doura tudo isto, tão sem sentido o ar calmo que me envolve, que não tenho razão sequer visual para abdicar da minha aldeia postiça, da minha vila de província onde o comércio é um sossego.
Bem sei, bem sei… Verdade seja que é a hora de almoço, ou de repouso, ou de intervalo. Tudo vai bem pela superfície da vida. Eu mesmo durmo, ainda que me debruce da varanda, como se fosse a amurada de um barco sobre uma paisagem nova. Eu mesmo nem cismo, como se estivesse na província. E, subitamente, outra coisa me surge, me envolve, me comanda: vejo por detrás do meio-dia da vila toda a vida em tudo da vila; vejo a grande felicidade estúpida da vida doméstica, a grande felicidade estúpida da vida nos campos, a grande felicidade estúpida do sossego na sordidez. Vejo, porque vejo. Mas não vi e desperto. Olho em roda, sorrindo, e, antes de mais nada, sacudo dos cotovelos do fato, infelizmente escuro, todo o pó do apoio da varanda, que ninguém limpou, ignorando que teria um dia, um momento que fosse, que ser a amurada sem pó possível de um barco singrando num turismo infinito.
[438]
Um azul esbranquiçado de verde noturno punha em recorte castanho negro, vagamente aureolado de cinzento amarelecido, a irregularidade fria dos edifícios que estavam de encontro ao horizonte do estio.
Dominamos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.
[439]
… a acuidade dolorosa das minhas sensações, ainda das que sejam de alegria; a alegria da acuidade das minhas sensações, ainda que sejam de tristeza.
Escrevo num domingo, manhã alta, num dia amplo de luz suave, em que, por sobre os telhados da cidade interrompida, o azul do céu sempre inédito fecha no esquecimento a existência misteriosa de astros…
É domingo em mim também…
Também meu coração vai a uma igreja que não sabe onde é, e vai vestido de um traje de veludo infante, com a cara corada das primeiras impressões a sorrir sem olhos tristes por cima do colarinho muito grande.
[440]
O céu do estio prolongado todos os dias despertava de azul verde baço, e breve se tornava de azul acinzentado de branco mudo. No ocidente, porém, era da cor que lhe costumam chamar, a ele todo.
Dizer a verdade, encontrar o que se espera, negar a ilusão de tudo — quantos o usam na subsidência e no declive, e como os nomes ilustres mancham de maiúsculas, como as de terras geográficas, as agudezas das páginas sóbrias e lidas!
Cosmorama de acontecer amanhã o que não poderia ter sucedido nunca! Lápis-lazúli das emoções descontínuas! Quantas memórias alberga uma suposição factícia, lembras-te, visão somente? E num delírio intersticiado de certezas, leve, breve, suave, o murmúrio da água de todos os parques nasce, emoção, do fundo da minha consciência de mim. Sem ninguém os bancos antigos, e as áleas alastram onde eles estão a sua melancolia de arruamentos vazios.
Noite em Heliópolis! Noite em Heliópolis! Noite em Heliópolis! Quem me dirá as palavras inúteis, me compensará a sangue e indecisão?
[441]
Floresce alto na solidão noturna um candeeiro incógnito por detrás de uma janela. Tudo mais na cidade que vejo está escuro, salvo onde reflexos frouxos da luz das ruas sobem vagamente e fazem aqui e ali pairar um luar inverso, muito pálido. Na negrura da noite, a própria casaria destaca pouco, entre si, as suas diversas cores, ou tons de cores: só diferenças vagas, dir-se-ia abstratas, irregularizam o conjunto atropelado.
Um fio invisível me liga ao dono anônimo do candeeiro. Não é a comum circunstância de estarmos ambos acordados: não há nisso uma reciprocidade possível, pois, estando eu à janela no escuro, ele nunca poderia ver-me. E outra coisa, minha só, que se prende um pouco com a sensação de isolamento, que participa da noite e do silêncio, que escolhe aquele candeeiro para ponto de apoio porque é o único ponto de apoio que há. Parece que é por ele estar aceso que a noite é tão escura. Parece que é por eu estar desperto, sonhando na treva, que ele está alumiando.
Tudo que existe existe talvez porque outra coisa existe. Nada é, tudo coexiste: talvez assim seja certo. Sinto que eu não existiria, nesta hora — que não existiria, ao menos, do modo em que estou existindo, com esta consciência presente de mim, que por ser consciência e presente é neste momento inteiramente eu —, se aquele candeeiro não estivesse aceso além, algures, farol não indicando nada num falso privilégio de altura. Sinto isto porque não sinto nada. Penso isto porque isto é nada. Nada, nada, parte da noite e do silêncio e do que com eles eu sou de nulo, de negativo, de intervalar, espaço entre mim e mim, coisa esquecimento de qualquer deus…
[442]
Releio, em uma destas sonolências sem sono, em que nos entretemos inteligentemente sem a inteligência, algumas das páginas que formarão, todas juntas, o meu livro de impressões sem nexo. E delas me sobe, como um cheiro de coisa conhecida, uma impressão deserta de monotonia. Sinto que, ainda ao dizer que sou sempre diferente, disse sempre a mesma coisa; que sou mais análogo a mim mesmo do que quereria confessar; que, em fecho de contas, nem tive a alegria de ganhar nem a emoção de perder. Sou uma ausência de saldo de mim mesmo, de um equilíbrio involuntário que me desola e enfraquece.
Tudo, quanto escrevi, é pardo. Dir-se-ia que a minha vida, ainda a mental, era um dia de chuva lenta, em que tudo é desacontecimento e penumbra, privilégio vazio e razão esquecida. Desolo-me a seda rota. Desconheço-me a luz e tédio.
Meu esforço humilde, de sequer dizer quem sou, de registrar, como uma máquina de nervos, as impressões mínimas da minha vida subjetiva e aguda, tudo isso se me esvaziou como um balde em que esbarrassem, e se molhou pela terra como a água de tudo. Fabriquei-me a tintas falsas, resultei a império de trapeira. Meu coração, de quem fiei os grandes acontecimentos da prosa vivida, parece-me hoje, escrito na distância destas páginas relidas com outra alma, uma bomba de quintal de província, instalada por instinto e manobrada por serviço. Naufraguei sem tormenta num mar onde se pode estar de pé.
E pergunto, ao que me resta de consciente nesta série confusa de intervalos entre coisas que não existem, de que me serviu encher tantas páginas de frases em que acreditei como minhas, de emoções que senti como pensadas, de bandeiras e pendões de exércitos que são, afinal, papéis colados com cuspo pela filha do mendigo debaixo dos beirais.
Pergunto ao que me resta de mim a que vêm estas páginas inúteis, consagradas ao lixo e ao desvio, perdidas antes de ser entre os papéis rasgados do Destino.
Pergunto, e prossigo. Escrevo a pergunta, embrulho-a em novas frases, desmeado-a de novas emoções. E amanhã tornarei a escrever, na sequência do meu livro estúpido, as impressões diárias do meu desconvencimento com frio.
Sigam, tais como são. Jogado o dominó, e ganho o jogo, ou perdido, as pedras viram-se para baixo e o jogo findo é negro.
[443]
Que de Infernos e Purgatórios e Paraísos tenho em mim — e quem me conhece um gesto discordando da vida. . , a mim tão calmo e tão plácido?
Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.
[444]
Tudo se me tornou insuportável, exceto a vida. O escritório, a casa, as ruas — o contrário até, se o tivesse — me sobrebasta e oprime; só o conjunto me alivia. Sim, qualquer coisa de tudo isto é bastante para me consolar. Um raio de sol que entre eternamente no escritório morto; um pregão atirado que sobe rápido até à janela do meu quarto; a existência de gente; o haver clima e mudança de tempo, a espantosa objetividade do mundo…
O raio de sol entrou de repente para mim, que de repente o vi… Era, porém, um risco de luz muito agudo, quase sem cor a cortar à faca nua o chão negro e madeirento, a avivar, à roda de onde passava, os pregos velhos e os sulcos entre as tábuas, negras pautas do não-branco.
Minutos seguidos segui o efeito insensível da penetração do sol no escritório quieto… Ocupações do cárcere! Só os enclausurados veem assim o sol mover-se, como quem olha para formigas.
[445]
Dizem que o tédio é uma doença de inertes, ou que ataca só os que nada têm que fazer. Essa moléstia da alma é porém mais sutil: ataca os que têm disposição para ela, e poupa menos os que trabalham, ou fingem que trabalham (o que para o caso é o mesmo) que os inertes deveras.
Nada há pior que o contraste entre o esplendor natural da vida interna, com as suas Índias naturais e os seus países incógnitos, e a sordidez, ainda que em verdade não seja sórdida, de quotidianidade da vida. O tédio pesa mais quando não tem a desculpa da inércia. O tédio dos grandes esforçados é o pior de todos.
Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais há que fazer, mais tédio há que sentir.
Quantas vezes ergo do livro onde estou escrevendo e que trabalho a cabeça vazia de todo o mundo! Mais me valera estar inerte, sem fazer nada, sem ter que fazer nada, porque esse tédio, ainda que real, ao menos o gozaria. No meu tédio presente não há repouso, nem nobreza, nem bem-estar em que haja mal-estar: há um apagamento enorme de todos os gestos feitos, não um cansaço virtual dos gestos por não fazer.
[446]
Omar Khayyam
O tédio de Khayyam não é o tédio de quem não sabe o que faça, porque na verdade nada pode ou sabe fazer. Esse é o tédio dos que nasceram mortos, e dos que legitimamente se orientam para a morfina ou a cocaína. É mais profundo e mais nobre o tédio do sábio persa. É o tédio de quem pensou claramente e viu que tudo era obscuro, de quem mediu todas as religiões e todas as filosofias e depois disse, como Salomão: “Vi que tudo era vaidade e aflições de ânimo”, ou como, ao despedir-se do poder e do mundo, outro rei, que era imperador, nele, Septímio Severo: “Omnia fui, nihil…” “Fui tudo; nada vale a pena”.
A vida, disse Tardei, é a busca do impossível através do inútil; assim diria, se o houvesse dito, Omar Khayyam.
Daí a insistência do persa no uso do vinho. Bebe! Bebe! É toda a sua filosofia prática. Não é o beber da alegria, que bebe porque mais se alegre, porque mais seja ela mesma. Não é o beber do desespero, que bebe para esquecer, para ser menos ele mesmo. Ao vinho junta a alegria, a ação e o amor; e há que reparar que não há em Khayyam nota alguma de energia, nenhuma frase de amor. Aquela Sàki, cuja figura grácil entrevista surge (mas surge pouco) nos rubaiyat, não é senão a “rapariga que serve o vinho”. O poeta é grato à sua esbelteza como o fora à esbelteza da ânfora, onde o vinho se contivesse.
A alegria fala, do vinho, como o Deão Aldrich :
A filosofia prática de Khayyam reduz-se pois a um epicurismo suave, esbatido até ao mínimo do desejo de prazer. Basta-lhe ver rosas e beber vinho.
Uma brisa leve, uma conversa sem intuito nem propósito, um púcaro de vinho, flores, em isso, e em não mais do que isso, põe o sábio persa o seu desejo máximo. O amor agita e cansa, a ação dispersa e falha, ninguém sabe saber e pensar embacia tudo. Mais vale pois cessar em nós de desejar ou de esperar, de ter a pretensão fútil de explicar o mundo, ou o propósito estulto de o emendar ou governar. Tudo é nada, ou, como se diz na Antologia Grega, “tudo vem da sem-razão”, e é um grego, e portanto um racional, que o diz.
[447]
Quedar-nos-emos indiferentes à verdade ou mentira de todas as religiões, de todas as filosofias, de todas as hipóteses inutilmente verificáveis a que chamamos ciências. Tão-pouco nos preocupará o destino da chamada humanidade, ou o que sofra ou não sofra em seu conjunto. Caridade, sim, para com o “próximo” como no Evangelho se diz, e não com o homem, de que nele se não fala. E todos, até certo ponto, assim somos: que nos pesa, ao melhor de nós, um massacre na China? Mais nos dói, ao que de nós mais imagine, a bofetada injusta que vimos dar na rua a uma criança.
Caridade para com todos, intimidade com nenhum. Assim interpreta FitzGerald, em um passo de uma sua nota, qualquer coisa da ética de Khayyam.
Recomenda o Evangelho amor ao próximo: não diz amor ao homem ou à humanidade, de que verdadeiramente ninguém pode curar.
Perguntar-se-á talvez se faço minha a filosofia de Khayyam, tal como aqui, creio que com justeza, a escrevi de novo e interpreto. Responderei que não sei. Há dias em que essa me parece a melhor, e até a única, de todas as filosofias práticas. Há outros dias em que me parece nula, morta, inútil, como um copo vazio. Não me conheço, porque penso. Não sei pois o que verdadeiramente penso. Não seria assim se tivesse fé; mas também não seria assim se estivesse louco. Na verdade, se fosse outro seria outro.
Para além destas coisas do mundo profano, há, é certo, as lições secretas das ordens iniciáticas, os mistérios declarados, quando secretos, ou velados, quando os figuram ritos públicos. Há o que está oculto ou meio oculto nos grandes ritos católicos, seja no Ritual de Maria na Igreja Romana, seja a Cerimônia do Espírito na Franco-Maçonaria. Mas quem nos diz, afinal, que o iniciado, quando íncola dos penetrais dos mistérios, não é senão avara presa da nossa nova face da ilusão? Que é a certeza que tem, se mais firme que ele a tem um louco no que lhe é loucura? Dizia Spencer que o que sabemos é uma esfera que, quanto mais se alarga, em tantos mais pontos tem contato com o que não sabemos. Nem me esquecem, neste capítulo do que as iniciações podem ministrar, as palavras terríveis de um Mestre da Magia. “Já vi Ísis” diz, “já toquei em Ísis: não sei contudo se ela existe”.
[448]
Omar Khayyam
Ornar tinha uma personalidade; eu, feliz ou infelizmente, não tenho nenhuma. Do que sou numa hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci. Quem, como Omar, é quem é, vive num só mundo, que é o externo; quem, como eu, não é quem é, vive não só no mundo externo, mas num sucessivo e diverso mundo interno. A sua filosofia, ainda que queira ser a mesma que a de Ornar, forçosamente o não poderá ser. Assim, sem que deveras o queira, tenho em mim, como se fossem almas, as filosofias que critique; Ornar podia rejeitar a todas, pois lhe eram externas, não as posso eu rejeitar, porque são eu.
[449]
Há mágoas íntimas que não sabemos distinguir, por o que contêm de sutil e de infiltrado, se são da alma ou do corpo, se são o mal-estar de se estar sentindo a futilidade da vida, se são a má disposição que vem de qualquer abismo orgânico — estômago, fígado ou cérebro. Quantas vezes se me tolda a consciência vulgar de mim mesmo, num sedimento torvo de estagnação inquieta! Quantas vezes me dói existir, numa náusea a tal ponto incerta que não sei distinguir se é um tédio, se um prenúncio de vómito! Quantas vezes…
Minha alma está hoje triste até ao corpo. Todo eu me doo, memória, olhos e braços. Há como que um reumatismo em tudo quanto sou. Não me influi no ser a clareza límpida do dia, céu de grande azul puro, maré alta parada de luz difusa. Não me abranda nada o leve sopro fresco, outonal como se o estio não esquecesse, com que o ar tem personalidade. Nada me é nada. Estou triste, mas não com uma tristeza definida, nem sequer com uma tristeza indefinida. Estou triste ali fora, na rua juncada de caixotes.
Estas expressões não traduzem exatamente o que sinto porque sem dúvida nada pode traduzir exatamente o que alguém sente. Mas de algum modo tento dar a impressão do que sinto, mistura de várias espécies de eu e da rua alheia, que, porque a vejo, também, de um modo íntimo que não sei analisar, me pertence, faz parte de mim.
Quisera viver diverso em países distantes. Quisera morrer outro entre bandeiras desconhecidas. Quisera ser aclamado imperador em outras eras, melhores hoje porque não são de hoje, vistas em vislumbre e colorido, inéditas a esfinges. Quisera tudo quanto pode tornar ridículo o que sou, e porque torna ridículo o que sou. Quisera, quisera… Mas há sempre o sol quando o sol brilha e a noite quando a noite chega. Há sempre a mágoa quando a mágoa nos dói e o sonho quando o sonho nos embala. Há sempre o que há, e nunca o que deveria haver, não por ser melhor ou por ser pior, mas por ser outro. Há sempre…
Na rua cheia de caixotes vão os carregadores limpando a rua. Um a um, com risos e ditos, vão pondo os caixotes nas carroças. Do alto da minha janela do escritório eu os vou vendo, com olhos tardos em que as pálpebras estão dormindo. E qualquer coisa de sutil, de incompreensível, liga o que sinto aos fretes que estou vendo fazer, qualquer sensação desconhecida faz caixote de todo este meu tédio, ou angústia, ou náusea, e o ergue, em ombros de quem chalaceia alto, para uma carroça que não está aqui. E a luz do dia, serena como sempre, luze obliquamente, porque a rua é estreita, sobre onde estão erguendo os caixotes — não sobre os caixotes, que estão na sombra, mas sobre o ângulo lá ao fim onde os moços de fretes estão a fazer não fazer nada, indeterminadamente.
[450]
Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador pairou: a mesma chuva pareceu intimidar-se; um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito, como um grito, um formidável dia estilhaçou-se.
Uma luz de inferno frio visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cérebros e os recantos. Tudo pasmou. Um peso caiu de tudo porque o golpe passara. A chuva triste era alegre com o seu ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o amarelo do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem dúvida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma carroça rápida estorvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente o telefone tiritou, O patrão Vasques, em vez de retroceder para o escritório, avançou para o aparelho da sala grande. Houve um repouso e um silêncio e a chuva caía como um pesadelo, O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, que não tocara mais. O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma coisa incômoda.
Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, desconcertou-nos a todos. Trabalhamos meio tontos, agradáveis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que ninguém lho dissesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande sala adentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua, que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se a voz dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente, na rua ao lado, as campainhas dos elétricos tinham também uma socialidade conosco. Uma gargalhada de criança deserta fez de canário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.
Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vasques disse, do guarda-vento entreaberto, “Podem sair”, e disse-o como uma bênção comercial. Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e, avançando para o Moreira, disse-lhe um “até amanhã” cheio de esperança, e apertei-lhe a mão como depois de um grande favor.
[451]
Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.
“Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo. ” Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e gênero das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.
[452]
O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito colecionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes; tinha mapas — uns arrancados de periódicos, outros que pedia aqui e ali —; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Austrália.
Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido: era também uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena de não saber o que é feito dele, ou, na verdade, suponho somente que deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem, estúpido, cumpridor dos seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer — morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado com o corpo, ele que tão bem viajava com a alma.
Recordo-me de repente: ele sabia exatamente por que vias-férreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias-férreas se percorria a Inglaterra, e, através das pronúncias erradas dos nomes estranhos, havia a certeza aureolada da sua grandeza de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez um dia, em velho, se lembre como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar em Bordéus.
E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele estivesse somente imitando alguém. Ou… sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino.
[453]
Do terraço deste café olho tremulamente para a vida. Pouco vejo dela — a espalhada — nesta sua concentração neste largo nítido e meu. Um marasmo, como um começo de bebedeira, elucida-me a alma de coisas. Decorre fora de mim, nos passos dos que passam e na fúria regulada de movimentos, a vida evidente e unânime. Nesta hora dos sentidos estagnarem-me e tudo me parecer outra coisa — as minhas sensações um erro confuso e lúcido, abro asas mas não me movo, como um condor suposto.
Homem de ideais que sou, quem sabe se a minha maior aspiração não é realmente não passar de ocupar este lugar a esta mesa deste café?
Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o momento em que ainda não é antemanhã.
E a luz bate tão serenamente e perfeitamente nas coisas, doura-as tão de realidade sorridente e triste! Todo o mistério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua.
Ah, como as coisas quotidianas roçam mistérios por nós! Como à superfície que a luz toca, desta vida complexa de humanos, a Hora, sorriso incerto, sobe aos lábios do Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundo tão antigo, tão oculto, tão tendo outro sentido que aquele que luze em tudo isto!
[454]
A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.
As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: e a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma — variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca [. . . ] — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.
[455]
Todos aqueles acasos infelizes da nossa vida, em que fomos, ou ridículos, ou reles, ou atrasados, consideremo-los, à luz da nossa serenidade íntima, como incômodos de viagem. Neste mundo, viajantes, volentes ou involentes, entre nada e nada ou entre tudo e tudo, somos somente passageiros, que não devem dar demasiado vulto aos percalços do percurso, às contundências da trajetória. Consolo-me com isto, não sei se porque me consolo, se porque há nisto que me console. Mas a consolação fictícia torna-se-me verdade se não penso nela.
Depois, há tantas consolações! Há o céu azul alto, limpo e sereno, onde bóiam sempre nuvens imperfeitas. Há a brisa leve, que agita os ramos duros das árvores, se é no campo; que faz oscilar as roupas estendidas, nos quartos andares, ou quintos, se é na cidade. Há o calor ou o fresco, se os há, e sempre, no fundo, vêm memórias, com suas saudades ou sua esperança, e um sorriso de magia à janela do nada, o que desejamos batendo à porta do que somos, como pedintes que são o Cristo.
[456]
Há quanto tempo não escrevo! Passei, em dias, séculos de renúncia incerta. Estagnei, como um lago deserto, entre paisagens que não há.
No entretanto, corria-me bem a monotonia variada dos dias, a sucessão nunca igual das horas iguais, a vida. Corria-me bem. Se dormisse, não me correria de outro modo. Estagnei, como um lago que não há, entre paisagens desertas.
É frequente o desconhecer-me — o que sucede com frequência aos que se conhecem. Assisto a mim nos vários disfarces com que sou vivo. Possuo de quanto muda o que é sempre o mesmo, de quanto se faz tudo o que é nada.
Relembro, longínquo em mim, como se viajara para dentro, a monotonia, todavia tão diferente, daquela casa de província… Ali passei a infância, mas não saberia dizer, se quisesse fazê-lo, se com mais ou menos felicidade do que passo a vida de hoje. Era outro o quem sou que ali vivia: são vidas diferentes, diversas, incomparáveis. As mesmas monotonias, que as aproximam por fora, eram sem dúvida diferentes por dentro. Não eram duas monotonias, mas duas vidas.
A que propósito relembro?
O cansaço. Lembrar é um repouso, porque é não agir. Que de vezes, para maior descanso, relembro o que nunca foi, e não há nitidez nem saudade nas minhas memórias das províncias onde estive como os que moram; tábua a tábua do soalho, oscilo o oscilar de outrem, nas vastas salas onde nunca morei.
De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação — a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar em mim.
De tal modo me desvesti do meu próprio ser que existir é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E em torno de mim todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens que nunca verei.
[457]
As coisas modernas são
A evolução dos espelhos;
Os guarda-fatos.
Passamos a ser criaturas vestidas, de corpo e alma.
E, como a alma corresponde sempre ao corpo, um traje espiritual estabeleceu-se. Passamos a ter a alma essencialmente vestida, assim como passamos — homens, corpos — à categoria de animais vestidos.
Não é só o fato de que o nosso traje se torna uma parte de nós. É também a complicação desse traje e a sua curiosa qualidade de não ter quase nenhuma relação com os elementos da elegância natural do corpo nem com os dos seus movimentos.
Se me pedissem que explicasse o que é este meu estado de alma, através de uma razão social, eu responderia mudamente apontando para um espelho, para um cabide e para uma caneta com tinta.
[458]
No nevoeiro leve da manhã de meia-primavera, a Baixa desperta entorpecida e o sol nasce como que lento. Há uma alegria sossegada no ar com metade de frio, e a vida, ao sopro leve da brisa que não há, tirita vagamente do frio que já passou, pela lembrança do frio mais que pelo frio, pela comparação com o verão próximo, mais que pelo tempo que está fazendo.
Não abriram ainda as lojas, salvas as leitarias e os cafés, mas o repouso não é de torpor, como o de domingo; é de repouso apenas. Um vestígio louro antecede-se no ar que se revela, e o azul cora palidamente através da bruma que se esfina. O começo do movimento rareia pelas ruas, destaca-se a separação dos peões, e nas poucas janelas abertas, altas, madrugam também aparecimentos. Os elétricos traçam a meio-ar o seu vinco móbil amarelo e numerado. E, de minuto a minuto, sensivelmente, as ruas desdesertam-se.
Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem emoção. Despertei cedo; vim para a rua sem preconceitos. Examino como quem cisma. Vejo como quem pensa. E uma leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a bruma que vai saindo do exterior parece que se me infiltra lentamente.
Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um biombo branco onde a realidade projeta cores e luz em vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se nega, e o meu próprio abstrato observar era uma negação ainda.
Tolda-se o ar de falta de névoa, tolda-se de luz pálida, em a qual a névoa como que se misturou. Reparo subitamente que o ruído é muito maior, que muito mais gente existe. Os passos dos mais transeuntes são menos apressados. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa dos outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, e [a] igualdade divergente das vendedeiras de tudo mais desmonotoniza-se só no conteúdo das cestas, onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais do seu ofício andante. Os polícias estagnam nos cruzamentos, desmentido parados da civilização ao movimento invisível da subida do dia.
Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo — contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independentemente de se lhe chamar varina, e de saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do Mistério, mas diretamente como florações da Realidade.
Soam — devem ser oito as que não conto — badaladas de horas de sino ou relógio grande. Acordo de mim pela banalidade de haver horas, clausura que a vida social impõe à continuidade do tempo fronteira no abstrato, limite no desconhecido. Acordo de mim e, olhando para tudo, agora já cheio de vida e de humanidade costumada, vejo que a névoa que saiu de todo do céu, salvo o que no azul ainda paira de ainda não bem azul, me entrou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as coisas, que é por onde elas têm contato com a minha alma. Perdi a visão do que via. Ceguei com vista. Sinto já com a banalidade do conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida.
Sim, a vida a que eu também pertenço, e que também me pertence a mim; não já a Realidade, que é só de Deus, ou de si mesma, que não contém mistério nem verdade, que, pois que é real ou o finge ser, algures exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, ideia de uma alma que fosse exterior.
Volvo lentos os passos mais rápidos do que julgo ao portão para onde subirei de novo para casa. Mas não entro; hesito; sigo para diante. A Praça da Figueira, bocejando venderes [sic] de várias cores, cobre-me, esfreguesando-se o horizonte de ambulante. Avanço lentamente, morto, e a minha visão já não é minha, já não é nada: é só a do animal humano que herdou, sem querer, a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã e todas as mais ilusões que formam a civilização em que sinto. Onde estarão os vivos?
[459]
Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade. Gosto, sem isso, de estar na cidade, porém com isso o meu gosto seria dois.
[460]
Quanto mais alta a sensibilidade, e mais sutil a capacidade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas. É precisa uma prodigiosa inteligência para ter angústia ante um dia escuro. A humanidade, que é pouco sensível, não se angustia com o tempo, porque faz sempre tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em cima.
O dia baço e mole escalda umidamente. Sozinho no escritório, passo em revista a minha vida, e o que vejo nela é como o dia que me oprime e me aflige. Vejo-me criança contente de nada, adolescente aspirando a tudo, viril sem alegria nem aspiração. E tudo isto se passou na moleza e no embaciado, como o dia que mo faz ver ou lembrar.
Qual de nós pode, voltando-se no caminho onde não há regresso, dizer que o seguiu como o devia ter seguido?
[461]
Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque das coisas mais pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol, como não há-de sofrer no escuro do dia sempre encoberto da sua vida?
O meu isolamento não é uma busca de felicidade, que não tenho alma para conseguir; nem de tranquilidade, que ninguém obtém senão quando nunca a perdeu — mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.
As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada, o antessabor da morte e do apagamento.
Nunca tive alguém a quem pudesse chamar “Mestre”. Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou um caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apolo ou Atena me apareceu, para que me iluminasse a alma.
[462]
Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contato com as coisas levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contato, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contato com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os fatos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incômodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara à infância antes da análise, ainda que antes da vontade!
Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insetos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir.
Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe, a graça morta dos bancos de pedra para os que foram — pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei.
[463]
Sossego enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício some-se-me da alma como se não fora nunca. Fico só e calmo. A hora que passo é como aquela em que me convertesse a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se deixasse de existir, conservando a consciência disso.
Sossego, sim, sossego.
[434]
Luares
… molhadamente sujo de castanho morto
… nos resvalamentos nítidos dos telhados sobrepostos, branco cinzento, molhadamente sujo de castanho morto.
[435]
… e desnivela-se em conglomerados de sombra, recortados de um lado a branco, com diferenças azuladas de madrepérola fria.
[436]
(chuva)
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. É outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. É outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! —, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com que espreito, entre pálpebras de gato ao sol, os movimentos da lógica da minha imaginação desprendida. Vou sentindo sumirem-se-me os privilégios da penumbra, e os rios lentos sob as árvores das pestanas entrevistas, e o sussurro das cascatas perdidas entre o som do sangue lento nos ouvidos e o vago perdurar de chuva. Vou-me perdendo até vivo.
Não sei se durmo, ou se só sinto que durmo. Não sonho o intervalo certo, mas reparo, como se começasse a despertar de um sono não dormido, os primeiros ruídos da vida da cidade, a subir, como uma cheia, do lugar vago, lá em baixo, onde ficam as ruas que Deus fez. São sons alegres, coados pela tristeza da chuva que há, ou, talvez, que houve — pois a não ouço agora —, só o cinzento excessivo da luz frinchada até mais longe que me dá, nas sombras de uma claridade frouxa, insuficiente para a altura da madrugada, que não sei qual é… São sons alegres e dispersos e doem-me no coração como se me viessem, com eles, chamar a um exame ou a uma execução. Cada dia, se o ouço raiar da cama onde ignoro, me parece o dia de um grande acontecimento meu que não terei coragem para enfrentar. Cada dia, se o sinto erguer-se do leito das sombras, com um cair de roupas da cama pelas ruas e pelas vielas, vem chamar-me a um tribunal. Vou ser julgado em cada hoje que há. E o condenado perene que há em mim agarra-se ao leito como à mãe que perdeu, e acaricia o travesseiro como se a ama o defendesse de gentes.
A sesta feliz do bicho grande à sombra de árvores, o cansaço fresco do esfarrapado entre a erva alta, o torpor do negro na tarde morna e longínqua, a delícia do bocejo que pesa nos olhos frouxos tudo que acaricia o esquecimento, fazendo sono, o sossego do repouso na cabeça, encostando, pé ante pé, as portas da janela na alma, o afago anônimo de dormir.
Dormir, ser longínquo sem o saber, estar distante, esquecer com o próprio corpo; ter a liberdade de ser inconsciente, um refúgio de lago esquecido, estagnado entre frondes árvores, nos vastos afastamentos das florestas.
Um nada com respiração por fora, uma morte leve de que se desperta com saudade e frescura, um ceder dos tecidos da alma à massagem do esquecimento.
Ah, e de novo, como o protesto reatado de quem se não convenceu, ouço o alarido brusco da chuva chapinhar no universo aclarado. Sinto um frio até aos ossos supostos, como se tivesse medo. E agachado, nulo, humano a sós comigo na pouca treva que ainda me resta, choro. Sim, choro, choro de solidão e de vida, e a minha mágoa fútil como um carro sem rodas jaz à beira da realidade entre os estercos do abandono. Choro de tudo, entre perda do regaço, a morte da mão que me davam, os braços que não soube como me cingissem, o ombro que nunca poderia ter… E o dia que raia definitivamente, a mágoa que raia em mim como a verdade crua do dia, o que sonhei, o que pensei, o que se esqueceu em mim — tudo isso, numa amálgama de sombras, de ficções e de remorsos, se mistura no rastro em que vão os mundos e cai entre as coisas da vida como o esqueleto de um cacho de uvas, comido à esquina pelos garotos que o roubaram.
O ruído do dia humano aumenta de repente, como um som de sineta de chamada. Estala adentro da casa o fecho suave da primeira porta que se abre para viverem. Ouço chinelos num corredor absurdo que conduz até meu coração. E num gesto brusco, como quem enfim se matasse, arrojo de sobre o corpo duro as roupas profundas da cama que me abriga. Despertei. O som da chuva esbate-se para mais alto no exterior indefinido. Sinto-me mais feliz. Cumpri uma coisa que ignoro. Ergo-me, vou à janela, abro as portas com uma decisão de muita coragem. Luze um dia de chuva clara que me afoga os olhos em luz baça. Abro as próprias janelas de vidro. O ar fresco umedece-me a pele quente. Chove, sim, mas ainda que seja o mesmo é afinal tão menos! Quero refrescar-me, viver, e inclino o pescoço à vida, como a uma canga imensa.
[437]
Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobretudo nos meios-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos Douradores, temos o bom sono.
Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes transeuntes lentos, de aldeia transferida! Eu mesmo, olhando-os da janela do escritório, onde estou só, me transmuto: estou numa vila quieta da província, estagno numa aldeola incógnita, e porque me sinto outro sou feliz.
Bem sei: se ergo os olhos, está diante de mim a linha sórdida da casaria, as janelas por lavar de todos os escritórios da Baixa, as janelas sem sentido dos andares mais altos onde ainda se mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei isto, mas é tão suave a luz que doura tudo isto, tão sem sentido o ar calmo que me envolve, que não tenho razão sequer visual para abdicar da minha aldeia postiça, da minha vila de província onde o comércio é um sossego.
Bem sei, bem sei… Verdade seja que é a hora de almoço, ou de repouso, ou de intervalo. Tudo vai bem pela superfície da vida. Eu mesmo durmo, ainda que me debruce da varanda, como se fosse a amurada de um barco sobre uma paisagem nova. Eu mesmo nem cismo, como se estivesse na província. E, subitamente, outra coisa me surge, me envolve, me comanda: vejo por detrás do meio-dia da vila toda a vida em tudo da vila; vejo a grande felicidade estúpida da vida doméstica, a grande felicidade estúpida da vida nos campos, a grande felicidade estúpida do sossego na sordidez. Vejo, porque vejo. Mas não vi e desperto. Olho em roda, sorrindo, e, antes de mais nada, sacudo dos cotovelos do fato, infelizmente escuro, todo o pó do apoio da varanda, que ninguém limpou, ignorando que teria um dia, um momento que fosse, que ser a amurada sem pó possível de um barco singrando num turismo infinito.
[438]
Um azul esbranquiçado de verde noturno punha em recorte castanho negro, vagamente aureolado de cinzento amarelecido, a irregularidade fria dos edifícios que estavam de encontro ao horizonte do estio.
Dominamos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.
[439]
… a acuidade dolorosa das minhas sensações, ainda das que sejam de alegria; a alegria da acuidade das minhas sensações, ainda que sejam de tristeza.
Escrevo num domingo, manhã alta, num dia amplo de luz suave, em que, por sobre os telhados da cidade interrompida, o azul do céu sempre inédito fecha no esquecimento a existência misteriosa de astros…
É domingo em mim também…
Também meu coração vai a uma igreja que não sabe onde é, e vai vestido de um traje de veludo infante, com a cara corada das primeiras impressões a sorrir sem olhos tristes por cima do colarinho muito grande.
[440]
O céu do estio prolongado todos os dias despertava de azul verde baço, e breve se tornava de azul acinzentado de branco mudo. No ocidente, porém, era da cor que lhe costumam chamar, a ele todo.
Dizer a verdade, encontrar o que se espera, negar a ilusão de tudo — quantos o usam na subsidência e no declive, e como os nomes ilustres mancham de maiúsculas, como as de terras geográficas, as agudezas das páginas sóbrias e lidas!
Cosmorama de acontecer amanhã o que não poderia ter sucedido nunca! Lápis-lazúli das emoções descontínuas! Quantas memórias alberga uma suposição factícia, lembras-te, visão somente? E num delírio intersticiado de certezas, leve, breve, suave, o murmúrio da água de todos os parques nasce, emoção, do fundo da minha consciência de mim. Sem ninguém os bancos antigos, e as áleas alastram onde eles estão a sua melancolia de arruamentos vazios.
Noite em Heliópolis! Noite em Heliópolis! Noite em Heliópolis! Quem me dirá as palavras inúteis, me compensará a sangue e indecisão?
[441]
Floresce alto na solidão noturna um candeeiro incógnito por detrás de uma janela. Tudo mais na cidade que vejo está escuro, salvo onde reflexos frouxos da luz das ruas sobem vagamente e fazem aqui e ali pairar um luar inverso, muito pálido. Na negrura da noite, a própria casaria destaca pouco, entre si, as suas diversas cores, ou tons de cores: só diferenças vagas, dir-se-ia abstratas, irregularizam o conjunto atropelado.
Um fio invisível me liga ao dono anônimo do candeeiro. Não é a comum circunstância de estarmos ambos acordados: não há nisso uma reciprocidade possível, pois, estando eu à janela no escuro, ele nunca poderia ver-me. E outra coisa, minha só, que se prende um pouco com a sensação de isolamento, que participa da noite e do silêncio, que escolhe aquele candeeiro para ponto de apoio porque é o único ponto de apoio que há. Parece que é por ele estar aceso que a noite é tão escura. Parece que é por eu estar desperto, sonhando na treva, que ele está alumiando.
Tudo que existe existe talvez porque outra coisa existe. Nada é, tudo coexiste: talvez assim seja certo. Sinto que eu não existiria, nesta hora — que não existiria, ao menos, do modo em que estou existindo, com esta consciência presente de mim, que por ser consciência e presente é neste momento inteiramente eu —, se aquele candeeiro não estivesse aceso além, algures, farol não indicando nada num falso privilégio de altura. Sinto isto porque não sinto nada. Penso isto porque isto é nada. Nada, nada, parte da noite e do silêncio e do que com eles eu sou de nulo, de negativo, de intervalar, espaço entre mim e mim, coisa esquecimento de qualquer deus…
[442]
Releio, em uma destas sonolências sem sono, em que nos entretemos inteligentemente sem a inteligência, algumas das páginas que formarão, todas juntas, o meu livro de impressões sem nexo. E delas me sobe, como um cheiro de coisa conhecida, uma impressão deserta de monotonia. Sinto que, ainda ao dizer que sou sempre diferente, disse sempre a mesma coisa; que sou mais análogo a mim mesmo do que quereria confessar; que, em fecho de contas, nem tive a alegria de ganhar nem a emoção de perder. Sou uma ausência de saldo de mim mesmo, de um equilíbrio involuntário que me desola e enfraquece.
Tudo, quanto escrevi, é pardo. Dir-se-ia que a minha vida, ainda a mental, era um dia de chuva lenta, em que tudo é desacontecimento e penumbra, privilégio vazio e razão esquecida. Desolo-me a seda rota. Desconheço-me a luz e tédio.
Meu esforço humilde, de sequer dizer quem sou, de registrar, como uma máquina de nervos, as impressões mínimas da minha vida subjetiva e aguda, tudo isso se me esvaziou como um balde em que esbarrassem, e se molhou pela terra como a água de tudo. Fabriquei-me a tintas falsas, resultei a império de trapeira. Meu coração, de quem fiei os grandes acontecimentos da prosa vivida, parece-me hoje, escrito na distância destas páginas relidas com outra alma, uma bomba de quintal de província, instalada por instinto e manobrada por serviço. Naufraguei sem tormenta num mar onde se pode estar de pé.
E pergunto, ao que me resta de consciente nesta série confusa de intervalos entre coisas que não existem, de que me serviu encher tantas páginas de frases em que acreditei como minhas, de emoções que senti como pensadas, de bandeiras e pendões de exércitos que são, afinal, papéis colados com cuspo pela filha do mendigo debaixo dos beirais.
Pergunto ao que me resta de mim a que vêm estas páginas inúteis, consagradas ao lixo e ao desvio, perdidas antes de ser entre os papéis rasgados do Destino.
Pergunto, e prossigo. Escrevo a pergunta, embrulho-a em novas frases, desmeado-a de novas emoções. E amanhã tornarei a escrever, na sequência do meu livro estúpido, as impressões diárias do meu desconvencimento com frio.
Sigam, tais como são. Jogado o dominó, e ganho o jogo, ou perdido, as pedras viram-se para baixo e o jogo findo é negro.
[443]
Que de Infernos e Purgatórios e Paraísos tenho em mim — e quem me conhece um gesto discordando da vida. . , a mim tão calmo e tão plácido?
Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.
[444]
Tudo se me tornou insuportável, exceto a vida. O escritório, a casa, as ruas — o contrário até, se o tivesse — me sobrebasta e oprime; só o conjunto me alivia. Sim, qualquer coisa de tudo isto é bastante para me consolar. Um raio de sol que entre eternamente no escritório morto; um pregão atirado que sobe rápido até à janela do meu quarto; a existência de gente; o haver clima e mudança de tempo, a espantosa objetividade do mundo…
O raio de sol entrou de repente para mim, que de repente o vi… Era, porém, um risco de luz muito agudo, quase sem cor a cortar à faca nua o chão negro e madeirento, a avivar, à roda de onde passava, os pregos velhos e os sulcos entre as tábuas, negras pautas do não-branco.
Minutos seguidos segui o efeito insensível da penetração do sol no escritório quieto… Ocupações do cárcere! Só os enclausurados veem assim o sol mover-se, como quem olha para formigas.
[445]
Dizem que o tédio é uma doença de inertes, ou que ataca só os que nada têm que fazer. Essa moléstia da alma é porém mais sutil: ataca os que têm disposição para ela, e poupa menos os que trabalham, ou fingem que trabalham (o que para o caso é o mesmo) que os inertes deveras.
Nada há pior que o contraste entre o esplendor natural da vida interna, com as suas Índias naturais e os seus países incógnitos, e a sordidez, ainda que em verdade não seja sórdida, de quotidianidade da vida. O tédio pesa mais quando não tem a desculpa da inércia. O tédio dos grandes esforçados é o pior de todos.
Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais há que fazer, mais tédio há que sentir.
Quantas vezes ergo do livro onde estou escrevendo e que trabalho a cabeça vazia de todo o mundo! Mais me valera estar inerte, sem fazer nada, sem ter que fazer nada, porque esse tédio, ainda que real, ao menos o gozaria. No meu tédio presente não há repouso, nem nobreza, nem bem-estar em que haja mal-estar: há um apagamento enorme de todos os gestos feitos, não um cansaço virtual dos gestos por não fazer.
[446]
Omar Khayyam
O tédio de Khayyam não é o tédio de quem não sabe o que faça, porque na verdade nada pode ou sabe fazer. Esse é o tédio dos que nasceram mortos, e dos que legitimamente se orientam para a morfina ou a cocaína. É mais profundo e mais nobre o tédio do sábio persa. É o tédio de quem pensou claramente e viu que tudo era obscuro, de quem mediu todas as religiões e todas as filosofias e depois disse, como Salomão: “Vi que tudo era vaidade e aflições de ânimo”, ou como, ao despedir-se do poder e do mundo, outro rei, que era imperador, nele, Septímio Severo: “Omnia fui, nihil…” “Fui tudo; nada vale a pena”.
A vida, disse Tardei, é a busca do impossível através do inútil; assim diria, se o houvesse dito, Omar Khayyam.
Daí a insistência do persa no uso do vinho. Bebe! Bebe! É toda a sua filosofia prática. Não é o beber da alegria, que bebe porque mais se alegre, porque mais seja ela mesma. Não é o beber do desespero, que bebe para esquecer, para ser menos ele mesmo. Ao vinho junta a alegria, a ação e o amor; e há que reparar que não há em Khayyam nota alguma de energia, nenhuma frase de amor. Aquela Sàki, cuja figura grácil entrevista surge (mas surge pouco) nos rubaiyat, não é senão a “rapariga que serve o vinho”. O poeta é grato à sua esbelteza como o fora à esbelteza da ânfora, onde o vinho se contivesse.
A alegria fala, do vinho, como o Deão Aldrich :
A filosofia prática de Khayyam reduz-se pois a um epicurismo suave, esbatido até ao mínimo do desejo de prazer. Basta-lhe ver rosas e beber vinho.
Uma brisa leve, uma conversa sem intuito nem propósito, um púcaro de vinho, flores, em isso, e em não mais do que isso, põe o sábio persa o seu desejo máximo. O amor agita e cansa, a ação dispersa e falha, ninguém sabe saber e pensar embacia tudo. Mais vale pois cessar em nós de desejar ou de esperar, de ter a pretensão fútil de explicar o mundo, ou o propósito estulto de o emendar ou governar. Tudo é nada, ou, como se diz na Antologia Grega, “tudo vem da sem-razão”, e é um grego, e portanto um racional, que o diz.
[447]
Quedar-nos-emos indiferentes à verdade ou mentira de todas as religiões, de todas as filosofias, de todas as hipóteses inutilmente verificáveis a que chamamos ciências. Tão-pouco nos preocupará o destino da chamada humanidade, ou o que sofra ou não sofra em seu conjunto. Caridade, sim, para com o “próximo” como no Evangelho se diz, e não com o homem, de que nele se não fala. E todos, até certo ponto, assim somos: que nos pesa, ao melhor de nós, um massacre na China? Mais nos dói, ao que de nós mais imagine, a bofetada injusta que vimos dar na rua a uma criança.
Caridade para com todos, intimidade com nenhum. Assim interpreta FitzGerald, em um passo de uma sua nota, qualquer coisa da ética de Khayyam.
Recomenda o Evangelho amor ao próximo: não diz amor ao homem ou à humanidade, de que verdadeiramente ninguém pode curar.
Perguntar-se-á talvez se faço minha a filosofia de Khayyam, tal como aqui, creio que com justeza, a escrevi de novo e interpreto. Responderei que não sei. Há dias em que essa me parece a melhor, e até a única, de todas as filosofias práticas. Há outros dias em que me parece nula, morta, inútil, como um copo vazio. Não me conheço, porque penso. Não sei pois o que verdadeiramente penso. Não seria assim se tivesse fé; mas também não seria assim se estivesse louco. Na verdade, se fosse outro seria outro.
Para além destas coisas do mundo profano, há, é certo, as lições secretas das ordens iniciáticas, os mistérios declarados, quando secretos, ou velados, quando os figuram ritos públicos. Há o que está oculto ou meio oculto nos grandes ritos católicos, seja no Ritual de Maria na Igreja Romana, seja a Cerimônia do Espírito na Franco-Maçonaria. Mas quem nos diz, afinal, que o iniciado, quando íncola dos penetrais dos mistérios, não é senão avara presa da nossa nova face da ilusão? Que é a certeza que tem, se mais firme que ele a tem um louco no que lhe é loucura? Dizia Spencer que o que sabemos é uma esfera que, quanto mais se alarga, em tantos mais pontos tem contato com o que não sabemos. Nem me esquecem, neste capítulo do que as iniciações podem ministrar, as palavras terríveis de um Mestre da Magia. “Já vi Ísis” diz, “já toquei em Ísis: não sei contudo se ela existe”.
[448]
Omar Khayyam
Ornar tinha uma personalidade; eu, feliz ou infelizmente, não tenho nenhuma. Do que sou numa hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci. Quem, como Omar, é quem é, vive num só mundo, que é o externo; quem, como eu, não é quem é, vive não só no mundo externo, mas num sucessivo e diverso mundo interno. A sua filosofia, ainda que queira ser a mesma que a de Ornar, forçosamente o não poderá ser. Assim, sem que deveras o queira, tenho em mim, como se fossem almas, as filosofias que critique; Ornar podia rejeitar a todas, pois lhe eram externas, não as posso eu rejeitar, porque são eu.
[449]
Há mágoas íntimas que não sabemos distinguir, por o que contêm de sutil e de infiltrado, se são da alma ou do corpo, se são o mal-estar de se estar sentindo a futilidade da vida, se são a má disposição que vem de qualquer abismo orgânico — estômago, fígado ou cérebro. Quantas vezes se me tolda a consciência vulgar de mim mesmo, num sedimento torvo de estagnação inquieta! Quantas vezes me dói existir, numa náusea a tal ponto incerta que não sei distinguir se é um tédio, se um prenúncio de vómito! Quantas vezes…
Minha alma está hoje triste até ao corpo. Todo eu me doo, memória, olhos e braços. Há como que um reumatismo em tudo quanto sou. Não me influi no ser a clareza límpida do dia, céu de grande azul puro, maré alta parada de luz difusa. Não me abranda nada o leve sopro fresco, outonal como se o estio não esquecesse, com que o ar tem personalidade. Nada me é nada. Estou triste, mas não com uma tristeza definida, nem sequer com uma tristeza indefinida. Estou triste ali fora, na rua juncada de caixotes.
Estas expressões não traduzem exatamente o que sinto porque sem dúvida nada pode traduzir exatamente o que alguém sente. Mas de algum modo tento dar a impressão do que sinto, mistura de várias espécies de eu e da rua alheia, que, porque a vejo, também, de um modo íntimo que não sei analisar, me pertence, faz parte de mim.
Quisera viver diverso em países distantes. Quisera morrer outro entre bandeiras desconhecidas. Quisera ser aclamado imperador em outras eras, melhores hoje porque não são de hoje, vistas em vislumbre e colorido, inéditas a esfinges. Quisera tudo quanto pode tornar ridículo o que sou, e porque torna ridículo o que sou. Quisera, quisera… Mas há sempre o sol quando o sol brilha e a noite quando a noite chega. Há sempre a mágoa quando a mágoa nos dói e o sonho quando o sonho nos embala. Há sempre o que há, e nunca o que deveria haver, não por ser melhor ou por ser pior, mas por ser outro. Há sempre…
Na rua cheia de caixotes vão os carregadores limpando a rua. Um a um, com risos e ditos, vão pondo os caixotes nas carroças. Do alto da minha janela do escritório eu os vou vendo, com olhos tardos em que as pálpebras estão dormindo. E qualquer coisa de sutil, de incompreensível, liga o que sinto aos fretes que estou vendo fazer, qualquer sensação desconhecida faz caixote de todo este meu tédio, ou angústia, ou náusea, e o ergue, em ombros de quem chalaceia alto, para uma carroça que não está aqui. E a luz do dia, serena como sempre, luze obliquamente, porque a rua é estreita, sobre onde estão erguendo os caixotes — não sobre os caixotes, que estão na sombra, mas sobre o ângulo lá ao fim onde os moços de fretes estão a fazer não fazer nada, indeterminadamente.
[450]
Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador pairou: a mesma chuva pareceu intimidar-se; um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito, como um grito, um formidável dia estilhaçou-se.
Uma luz de inferno frio visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cérebros e os recantos. Tudo pasmou. Um peso caiu de tudo porque o golpe passara. A chuva triste era alegre com o seu ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o amarelo do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem dúvida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma carroça rápida estorvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente o telefone tiritou, O patrão Vasques, em vez de retroceder para o escritório, avançou para o aparelho da sala grande. Houve um repouso e um silêncio e a chuva caía como um pesadelo, O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, que não tocara mais. O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma coisa incômoda.
Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, desconcertou-nos a todos. Trabalhamos meio tontos, agradáveis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que ninguém lho dissesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande sala adentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua, que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se a voz dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente, na rua ao lado, as campainhas dos elétricos tinham também uma socialidade conosco. Uma gargalhada de criança deserta fez de canário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.
Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vasques disse, do guarda-vento entreaberto, “Podem sair”, e disse-o como uma bênção comercial. Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e, avançando para o Moreira, disse-lhe um “até amanhã” cheio de esperança, e apertei-lhe a mão como depois de um grande favor.
[451]
Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.
“Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo. ” Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e gênero das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.
[452]
O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito colecionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes; tinha mapas — uns arrancados de periódicos, outros que pedia aqui e ali —; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Austrália.
Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido: era também uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena de não saber o que é feito dele, ou, na verdade, suponho somente que deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem, estúpido, cumpridor dos seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer — morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado com o corpo, ele que tão bem viajava com a alma.
Recordo-me de repente: ele sabia exatamente por que vias-férreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias-férreas se percorria a Inglaterra, e, através das pronúncias erradas dos nomes estranhos, havia a certeza aureolada da sua grandeza de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez um dia, em velho, se lembre como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar em Bordéus.
E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele estivesse somente imitando alguém. Ou… sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino.
[453]
Do terraço deste café olho tremulamente para a vida. Pouco vejo dela — a espalhada — nesta sua concentração neste largo nítido e meu. Um marasmo, como um começo de bebedeira, elucida-me a alma de coisas. Decorre fora de mim, nos passos dos que passam e na fúria regulada de movimentos, a vida evidente e unânime. Nesta hora dos sentidos estagnarem-me e tudo me parecer outra coisa — as minhas sensações um erro confuso e lúcido, abro asas mas não me movo, como um condor suposto.
Homem de ideais que sou, quem sabe se a minha maior aspiração não é realmente não passar de ocupar este lugar a esta mesa deste café?
Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o momento em que ainda não é antemanhã.
E a luz bate tão serenamente e perfeitamente nas coisas, doura-as tão de realidade sorridente e triste! Todo o mistério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua.
Ah, como as coisas quotidianas roçam mistérios por nós! Como à superfície que a luz toca, desta vida complexa de humanos, a Hora, sorriso incerto, sobe aos lábios do Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundo tão antigo, tão oculto, tão tendo outro sentido que aquele que luze em tudo isto!
[454]
A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.
As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: e a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma — variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca [. . . ] — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.
[455]
Todos aqueles acasos infelizes da nossa vida, em que fomos, ou ridículos, ou reles, ou atrasados, consideremo-los, à luz da nossa serenidade íntima, como incômodos de viagem. Neste mundo, viajantes, volentes ou involentes, entre nada e nada ou entre tudo e tudo, somos somente passageiros, que não devem dar demasiado vulto aos percalços do percurso, às contundências da trajetória. Consolo-me com isto, não sei se porque me consolo, se porque há nisto que me console. Mas a consolação fictícia torna-se-me verdade se não penso nela.
Depois, há tantas consolações! Há o céu azul alto, limpo e sereno, onde bóiam sempre nuvens imperfeitas. Há a brisa leve, que agita os ramos duros das árvores, se é no campo; que faz oscilar as roupas estendidas, nos quartos andares, ou quintos, se é na cidade. Há o calor ou o fresco, se os há, e sempre, no fundo, vêm memórias, com suas saudades ou sua esperança, e um sorriso de magia à janela do nada, o que desejamos batendo à porta do que somos, como pedintes que são o Cristo.
[456]
Há quanto tempo não escrevo! Passei, em dias, séculos de renúncia incerta. Estagnei, como um lago deserto, entre paisagens que não há.
No entretanto, corria-me bem a monotonia variada dos dias, a sucessão nunca igual das horas iguais, a vida. Corria-me bem. Se dormisse, não me correria de outro modo. Estagnei, como um lago que não há, entre paisagens desertas.
É frequente o desconhecer-me — o que sucede com frequência aos que se conhecem. Assisto a mim nos vários disfarces com que sou vivo. Possuo de quanto muda o que é sempre o mesmo, de quanto se faz tudo o que é nada.
Relembro, longínquo em mim, como se viajara para dentro, a monotonia, todavia tão diferente, daquela casa de província… Ali passei a infância, mas não saberia dizer, se quisesse fazê-lo, se com mais ou menos felicidade do que passo a vida de hoje. Era outro o quem sou que ali vivia: são vidas diferentes, diversas, incomparáveis. As mesmas monotonias, que as aproximam por fora, eram sem dúvida diferentes por dentro. Não eram duas monotonias, mas duas vidas.
A que propósito relembro?
O cansaço. Lembrar é um repouso, porque é não agir. Que de vezes, para maior descanso, relembro o que nunca foi, e não há nitidez nem saudade nas minhas memórias das províncias onde estive como os que moram; tábua a tábua do soalho, oscilo o oscilar de outrem, nas vastas salas onde nunca morei.
De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação — a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar em mim.
De tal modo me desvesti do meu próprio ser que existir é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E em torno de mim todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens que nunca verei.
[457]
As coisas modernas são
A evolução dos espelhos;
Os guarda-fatos.
Passamos a ser criaturas vestidas, de corpo e alma.
E, como a alma corresponde sempre ao corpo, um traje espiritual estabeleceu-se. Passamos a ter a alma essencialmente vestida, assim como passamos — homens, corpos — à categoria de animais vestidos.
Não é só o fato de que o nosso traje se torna uma parte de nós. É também a complicação desse traje e a sua curiosa qualidade de não ter quase nenhuma relação com os elementos da elegância natural do corpo nem com os dos seus movimentos.
Se me pedissem que explicasse o que é este meu estado de alma, através de uma razão social, eu responderia mudamente apontando para um espelho, para um cabide e para uma caneta com tinta.
[458]
No nevoeiro leve da manhã de meia-primavera, a Baixa desperta entorpecida e o sol nasce como que lento. Há uma alegria sossegada no ar com metade de frio, e a vida, ao sopro leve da brisa que não há, tirita vagamente do frio que já passou, pela lembrança do frio mais que pelo frio, pela comparação com o verão próximo, mais que pelo tempo que está fazendo.
Não abriram ainda as lojas, salvas as leitarias e os cafés, mas o repouso não é de torpor, como o de domingo; é de repouso apenas. Um vestígio louro antecede-se no ar que se revela, e o azul cora palidamente através da bruma que se esfina. O começo do movimento rareia pelas ruas, destaca-se a separação dos peões, e nas poucas janelas abertas, altas, madrugam também aparecimentos. Os elétricos traçam a meio-ar o seu vinco móbil amarelo e numerado. E, de minuto a minuto, sensivelmente, as ruas desdesertam-se.
Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem emoção. Despertei cedo; vim para a rua sem preconceitos. Examino como quem cisma. Vejo como quem pensa. E uma leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a bruma que vai saindo do exterior parece que se me infiltra lentamente.
Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um biombo branco onde a realidade projeta cores e luz em vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se nega, e o meu próprio abstrato observar era uma negação ainda.
Tolda-se o ar de falta de névoa, tolda-se de luz pálida, em a qual a névoa como que se misturou. Reparo subitamente que o ruído é muito maior, que muito mais gente existe. Os passos dos mais transeuntes são menos apressados. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa dos outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, e [a] igualdade divergente das vendedeiras de tudo mais desmonotoniza-se só no conteúdo das cestas, onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais do seu ofício andante. Os polícias estagnam nos cruzamentos, desmentido parados da civilização ao movimento invisível da subida do dia.
Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo — contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independentemente de se lhe chamar varina, e de saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do Mistério, mas diretamente como florações da Realidade.
Soam — devem ser oito as que não conto — badaladas de horas de sino ou relógio grande. Acordo de mim pela banalidade de haver horas, clausura que a vida social impõe à continuidade do tempo fronteira no abstrato, limite no desconhecido. Acordo de mim e, olhando para tudo, agora já cheio de vida e de humanidade costumada, vejo que a névoa que saiu de todo do céu, salvo o que no azul ainda paira de ainda não bem azul, me entrou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as coisas, que é por onde elas têm contato com a minha alma. Perdi a visão do que via. Ceguei com vista. Sinto já com a banalidade do conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida.
Sim, a vida a que eu também pertenço, e que também me pertence a mim; não já a Realidade, que é só de Deus, ou de si mesma, que não contém mistério nem verdade, que, pois que é real ou o finge ser, algures exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, ideia de uma alma que fosse exterior.
Volvo lentos os passos mais rápidos do que julgo ao portão para onde subirei de novo para casa. Mas não entro; hesito; sigo para diante. A Praça da Figueira, bocejando venderes [sic] de várias cores, cobre-me, esfreguesando-se o horizonte de ambulante. Avanço lentamente, morto, e a minha visão já não é minha, já não é nada: é só a do animal humano que herdou, sem querer, a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã e todas as mais ilusões que formam a civilização em que sinto. Onde estarão os vivos?
[459]
Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade. Gosto, sem isso, de estar na cidade, porém com isso o meu gosto seria dois.
[460]
Quanto mais alta a sensibilidade, e mais sutil a capacidade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas. É precisa uma prodigiosa inteligência para ter angústia ante um dia escuro. A humanidade, que é pouco sensível, não se angustia com o tempo, porque faz sempre tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em cima.
O dia baço e mole escalda umidamente. Sozinho no escritório, passo em revista a minha vida, e o que vejo nela é como o dia que me oprime e me aflige. Vejo-me criança contente de nada, adolescente aspirando a tudo, viril sem alegria nem aspiração. E tudo isto se passou na moleza e no embaciado, como o dia que mo faz ver ou lembrar.
Qual de nós pode, voltando-se no caminho onde não há regresso, dizer que o seguiu como o devia ter seguido?
[461]
Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque das coisas mais pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol, como não há-de sofrer no escuro do dia sempre encoberto da sua vida?
O meu isolamento não é uma busca de felicidade, que não tenho alma para conseguir; nem de tranquilidade, que ninguém obtém senão quando nunca a perdeu — mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.
As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada, o antessabor da morte e do apagamento.
Nunca tive alguém a quem pudesse chamar “Mestre”. Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou um caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apolo ou Atena me apareceu, para que me iluminasse a alma.
[462]
Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contato com as coisas levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contato, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contato com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os fatos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incômodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara à infância antes da análise, ainda que antes da vontade!
Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insetos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir.
Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe, a graça morta dos bancos de pedra para os que foram — pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei.
[463]
Sossego enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício some-se-me da alma como se não fora nunca. Fico só e calmo. A hora que passo é como aquela em que me convertesse a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se deixasse de existir, conservando a consciência disso.
Sossego, sim, sossego.