Depois o
silêncio
volvia, com os passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente.
Pessoa - Livro do Desassossego
Outrora, quando eu era criança e feliz, vivia numa casa do pátio ao lado a voz de um papagaio verde a cores.
Nunca, nos dias de chuva, se lhe entristecia o dizer, e clamava, sem dúvida do abrigo, um qualquer sentimento constante, que pairava na tristeza como um gramofone antecipado.
Pensei neste papagaio porque estou triste e a infância longínqua o lembra? Não, pensei nele realmente, porque do pátio fronteiro de agora, uma voz de papagaio grita arrevesadamente.
Tudo se me confunde. Quando julgo que recordo, é outra coisa que penso; se vejo, ignoro, e quando me distraio, nitidamente vejo.
Viro as costas à janela cinzenta, de vidros frios às mãos que lhes tocam. E levo comigo, por um sortilégio da penumbra, de repente, o interior da casa antiga, fora da qual, no pátio ao lado, o papagaio gritava; e os meus olhos adormecem-se-me de toda a irreparabilidade de ter efetivamente vivido.
[225]
Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vagaroso e disperso, e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo, nítido, o sem sol do céu ocidental. Esse céu é de um azul esverdeado para cinzento branco, onde, do lado esquerdo, sobre os montes da outra margem, se agacha, amontoada, uma névoa acastanhada de cor-de-rosa morto. Há uma grande paz que não tenho dispersa friamente no ar outonal abstrato. Sofro de não ter o prazer vago de supor que ela existe. Mas, na realidade, não há paz nem falta de paz: céu apenas, céu de todas as cores que desmaiam — azul branco, verde ainda azulado, cinzento pálido entre verde e azul, vagos tons remotos de cores de nuvens que o não são, amareladamente escurecidas de encarnado findo. E tudo isto é uma visão que se extingue no mesmo momento em que é tida, um intervalo entre nada e nada, alado, posto alto, em tonalidades de céu e mágoa, prolixo e indefinido.
Sinto e esqueço. Uma saudade, que é a de toda a gente por tudo, invade-me como um ópio do ar frio. Há em mim um êxtase de ver, íntimo e postiço.
Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol cada vez mais se acaba, a luz extingue-se em branco lívido que se azula de esverdeado frio. Há no ar um torpor do que se não consegue nunca. Cala alto a paisagem do céu.
Nesta hora, em que sinto até transbordar, quisera ter a malícia inteira de dizer, o capricho livre de um estilo por destino. Mas não, só o céu alto é tudo, remoto, abolindo-se, e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e confusas, não é mais que o reflexo desse céu nulo num lago em mim — lago recluso entre rochedos hirtos, calado, olhar de morto, em que a altura se contempla esquecida.
Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto — sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente de todas as emoções, amarelecer-me esbatido para tristeza cinzenta na minha consciência externa de mim.
Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: e aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. E todo o peso e toda a mágoa deste universo real e impossível, deste céu estandarte de um exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente imaginário da lua emerge numa brancura elétrica parada, recortado a longínquo e a insensível.
É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito — porque és infinito, não se pode fugir de ti!
[226]
Com que luxúria e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as minuciosidades da sua arquitetura, a luz em algumas janelas, os vasos com plantas fazendo irregularidades nas sacadas — contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!
[227]
Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a primeira, que é minha, é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda, porém, é de todos, e não é — creio bem — uma sombra ou disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque toca no sentido íntimo de toda a valia da arte.
Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa. Como a música, o verso é limitado por leis rítmicas, que, ainda que não sejam as leis rígidas do verso regular, existem todavia como resguardos, coações, dispositivos automáticos de opressão e castigo. Na prosa falamos livres. Podemos incluir ritmos musicais, e contudo pensar. Podemos incluir ritmos poéticos, e contudo estar fora deles. Um ritmo ocasional de verso não estorva a prosa; um ritmo ocasional de prosa faz tropeçar o verso.
Na prosa se engloba toda a arte — em parte porque na palavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra livre se contém toda a possibilidade de o dizer e pensar. Na prosa damos tudo, por transposição: a cor e a forma, que a pintura não pode dar senão diretamente, em elas mesmas, sem dimensão íntima; o ritmo, que a música não pode dar senão diretamente, nele mesmo, sem corpo formal, nem aquele segundo corpo que é a ideia; a estrutura, que o arquiteto tem que formar de coisas duras, dadas, externas, e nós erguemos em ritmos, em indecisões, em decursos e fluidezas; a realidade, que o escultor tem que deixar no mundo, sem aura nem transubstanciação; a poesia, enfim, em que o poeta, como o iniciado em uma ordem oculta, é servo, ainda que voluntário, de um grau e de um ritual.
Creio bem que, em um mundo civilizado perfeito, não haveria outra arte que não a prosa. Deixaríamos os poentes aos mesmos poentes, cuidando apenas, em arte, de os compreender verbalmente, assim os transmitindo em música inteligível de cor. Não faríamos escultura dos corpos, que guardariam próprios, vistos e tocados, o seu relevo móbil e o seu morno suave. Faríamos casas só para morar nelas, que é, enfim, o para que elas são. A poesia ficaria para as crianças se aproximarem da prosa futura; que a poesia é, por certo, qualquer coisa de infantil, de mnemônico, de auxiliar e inicial.
Até as artes menores, ou as que assim podemos chamar, se refletem, múrmuras, na prosa. Há prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a ideia se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita. E há também na prosa sutilezas convulsas em que um grande ator, o Verbo, transmuda ritmicamente em sua substância corpórea o mistério impalpável do universo.
[228]
Tudo se penetra. A leitura dos clássicos, que não falam de poentes, tem-me tornado inteligíveis muitos poentes, em todas as suas cores. Há uma relação entre a competência sintática, pela qual se distingue a valia dos seres, dos sons, e das formas, e a capacidade de compreender quando o azul do céu é realmente verde, e que parte de amarelo existe no verde azul do céu.
No fundo é a mesma coisa — a capacidade de distinguir e de sutilizar. Sem sintaxe não há emoção duradoura. A imortalidade é uma função dos gramáticos.
[229]
Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo.
Que coisa tão reles e baixa que é a vida! Repara que para ser baixa e reles basta não a quereres, ser-te dada, nada depender da tua vontade, nem mesmo da tua ilusão da tua vontade.
Morrer é sermos outros totalmente. Por isso o suicídio é a covardia; é entregarmo-nos totalmente à vida.
[230]
A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida à ação, a ação, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.
[231]
Fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma das tragédias da alma. Sobretudo é grande quando se reconhece que essa obra é a melhor que se podia fazer. Mas ao ir escrever uma obra, saber de antemão que ela tem de ser imperfeita e falhada; ao está-la escrevendo estar vendo que ela é imperfeita e falhada — isto é o máximo da tortura e da humilhação do espírito. Não se os versos que escrevo sinto que me não satisfazem, mas sei que os versos que estou para escrever me não satisfarão, também. Sei-o tanto filosoficamente, como carnalmente, por uma entrevisão obscura e gladiolada.
Por que escrevo então? Porque, pregador que sou da renúncia, não aprendi ainda a executá-la plenamente. Não aprendi a abdicar da tendência para o verso e a prosa. Tenho de escrever como cumprindo um castigo. E o maior castigo é o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, falhado e incerto.
Em criança escrevia já versos. Então escrevia versos muito maus, mas julgava-os perfeitos. Nunca mais tornarei a ter o prazer falso de produzir obra perfeita. O que escrevo hoje é muito melhor. É melhor, mesmo, do que o que poderiam escrever os melhores. Mas está infinitamente abaixo daquilo que eu, não sei porquê, sinto que podia — ou talvez seja, que devia — escrever. Choro sobre os meus versos maus da infância como sobre uma criança morta, um filho morto, uma última esperança que se fosse.
[232]
Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda, que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.
Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.
Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta — estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade — um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.
Nada me satisfaz, nada me consola, tudo — quer haja sido, quer não — me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.
[233]
… a tristeza solene que habita em todas as coisas grandes — nos píncaros como nas grandes vidas, nas noites profundas como nos poemas eternos.
[234]
Podemos morrer se apenas amamos.
[235]
Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algumas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia — pelo menos talvez — ter convertido em amor ou afeto. Nunca tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.
A princípio de observar isto em mim, julguei — tanto nos desconhecemos — que havia neste caso da minha alma uma razão de timidez. Mas depois descobri que não havia; havia um tédio das emoções, diferente do tédio da vida, uma impaciência de me ligar a qualquer sentimento contínuo, sobretudo quando houvesse de se lhe atrelar um esforço prosseguido. Para quê? pensava em mim o que não pensa. Tenho a sutileza bastante, o tato psicológico suficiente para saber o “como”; o “como do como” sempre me escapou. A minha fraqueza de vontade começou sempre por ser uma fraqueza da vontade de ter vontade. Assim me sucedeu nas emoções como me sucede na inteligência, e na vontade mesma, e em tudo quanto é vida.
Mas daquela vez em que uma malícia da oportunidade me fez julgar que amava, e verificar deveras que era amado, fiquei, primeiro, estonteado e confuso, como se me saíra uma sorte grande em moeda inconvertível. Fiquei, depois, porque ninguém é humano sem o ser, levemente envaidecido; esta emoção, porém, que pareceria a mais natural, passou rapidamente. Sucedeu-se um sentimento difícil de definir, mas em que se salientavam incomodamente as sensações de tédio, de humilhação e de fadiga.
De tédio, como se o Destino me houvesse imposto uma tarefa em serões desconhecidos. De tédio, como se um novo dever — o de uma horrorosa reciprocidade — me fosse dado com a ironia de um privilégio, que eu me teria ainda que maçar, agradecendo-o ao Destino. De tédio, como se me não bastasse a monotonia inconsistente da vida, para agora se lhe sobrepor a monotonia obrigatória de um sentimento definido.
E de humilhação, sim, de humilhação. Tardei em perceber a que vinha um sentimento aparentemente tão pouco justificado pela sua causa. O amor a ser amado deveria ter-me aparecido. Deveria ter-me envaidecido de alguém reparar atentamente para a minha existência como ser-amável. Mas, à parte o breve momento de real envaidecimento, em que todavia não sei se o pasmo teve mais parte que a própria vaidade, a humilhação foi a sensação que recebi de mim. Senti que me era dada uma espécie de prêmio destinado a outrem — prêmio, sim, de valia para quem naturalmente o merecesse.
Mas fadiga, sobretudo fadiga — a fadiga que passa o tédio. Compreendi então uma frase de Chateaubriand que sempre me enganara por falta de experiência de mim mesmo. Diz Chateaubriand, figurando-se em René, “amarem-o cansava-o” — on le fatigait en l’aimant. Conheci, com pasmo, que isto representava uma experiência idêntica à minha, e cuja verdade portanto eu não tinha o direito de negar.
A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga de sermos o objeto do fardo das emoções alheias! Converter quem quisera ver-se livre, sempre livre, no moço de fretes da responsabilidade de corresponder, da decência de se não afastar, para que se não suponha que se é príncipe nas emoções e se renega o máximo que uma alma humana pode dar. A fadiga [de] se nos tornar a existência uma coisa dependente em absoluto de uma relação com um sentimento de outrem! A fadiga de, em todo o caso, ter forçosamente que sentir, ter forçosamente, ainda que sem reciprocidade, que amar um pouco também!
Passou de mim, como até mim veio, esse episódio na sombra. Hoje não resta dele nada, nem na minha inteligência, nem na minha emoção. Não me trouxe experiência alguma que eu não pudesse ter deduzido das leis da vida humana cujo conhecimento instintivo albergo em mim porque sou humano. Não me deu nem prazer que eu recorde com tristeza, ou pesar que eu lembre com tristeza também. Tenho a impressão de que foi uma coisa que li algures, um incidente sucedido a outrem, novela de que li metade, e de que a outra metade faltou, sem que me importasse que faltasse, pois até onde a li estava certa, e, embora não tivesse sentido, tal era já que lhe não poderia dar sentido a parte faltante, qualquer que fosse o seu enredo.
Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou. Mas é uma gratidão abstrata, pasmada, mais da inteligência do que de qualquer emoção. Tenho pena que alguém tivesse tido pena por minha causa; é disso que tenho pena, e não tenho pena de mais nada.
Não é natural que a vida me traga outro encontro com as emoções naturais. Quase desejo que apareça para ver como sinto dessa segunda vez, depois de ter atravessado toda uma extensa análise da primeira experiência. É possível que sinta menos; é também possível que sinta mais. Se o Destino o der, que o dê. Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os fatos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma.
[236]
Não se subordinar a nada — nem a um homem, nem a um amor, nem a uma ideia, ter aquela independência longínqua que consiste em não crer na verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecimento dela — tal é o estado em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a vida íntima intelectual dos que não vivem sem pensar. Pertencer — eis a banalidade. Credo, ideal, mulher ou profissão — tudo isso é a cela e as algemas. Ser é estar livre. A mesma ambição, se vão orgulho e paixão, é um fardo, não nos orgulharíamos se compreendêssemos que é um cordel pelo qual nos puxam. Não: nem ligações conosco! Livres de nós como dos outros, contemplativos sem êxtase, pensadores sem conclusão, viveremos, libertos de Deus, o pequeno intervalo que a distração dos algozes concede ao nosso êxtase na parada. Temos amanhã a guilhotina. Se a não tivéssemos amanhã tê-la-íamos depois de amanhã. Passeemos ao sol o repouso antes do fim, ignorantes voluntariamente dos propósitos e dos perseguimentos. O sol dourará nossas frontes sem rugas e a brisa terá frescura para quem deixar de esperar.
Atiro a caneta pela secretária fora e ela rola, regressando, sem que eu a apanhe, pelo declive onde trabalho. Senti tudo de repente. E a minha alegria manifesta-se por este gesto da raiva que não sinto.
[237]
Notas para uma regra de vida
Precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um dependente.
Aumentar a personalidade sem incluir nela nada alheio — nem pedindo aos outros, nem mandando nos outros, mas sendo outros quando outros são precisos.
Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem.
É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.
Consideremos um dono de escritório. Ele tem obrigação de poder dispensar toda a gente; tem a obrigação de saber escrever à máquina, de saber contabilidade, de saber varrer o escritório. Que a sua dependência dos outros seja, portanto, só uma necessidade de não perder tempo, e não uma necessidade da incompetência própria. Que diga ao praticante, “Vá deitar esta carta no correio” porque não quer perder o tempo que levaria o deitá-la no correio, mas não porque não saiba onde é o correio. Que diga ao empregado, “Vá tratar deste assunto ali”, porque não quer perder o tempo de o tratar, mas não porque não saiba tratá-lo.
[238]
Nenhum prêmio certo tem a virtude, nenhum castigo certo o pecado. Nem seria justo que houvesse tal prêmio ou tal castigo. Virtude ou pecado são manifestações inevitáveis de organismos condenados a um ou a outro, servindo a pena de serem bons ou a pena de serem maus. Por isso todas as religiões colocam as recompensas e os castigos, merecidos por quem, nada sendo nem podendo, nada pôde merecer, em outros mundos, de que nenhuma ciência pode dar notícia, de que nenhuma fé pode transmitir a visão.
Abdiquemos, pois, de toda a crença sincera, como de toda a preocupação de influir em outrem.
A vida, disse Tarde, é a busca do impossível através do inútil.
Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso fado; busquemo-lo através do inútil, porque não passa caminho por outro ponto; ascendamos, porém, à consciência de que nada buscamos que possa obter-se, de que por nada passamos que mereça um carinho ou uma saudade.
Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender, disse o escoliasta.
Compreendamos, compreendamos sempre, e façamos por tecer astuciosamente capelas ou grinaldas que hão-de murchar também, as flores espectrais dessa compreensão.
[239]
Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender. O sentido da frase é por vezes difícil de atingir.
Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão.
Caímos então naquele estado de inércia em que o mais que queremos é compreender bem o que é exposto — uma atitude estética, pois que queremos compreender sem nos interessar, sem que nos importe que o compreendido seja ou não verdadeiro, sem que vejamos mais no que compreendemos senão a forma exata como foi exposto, a posição de beleza racional que tem para nós.
Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões nossas, de querer pensar para agir. Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente, as opiniões alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o seu impulso.
[240]
Paisagem de chuva
Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a sua monotonia fria me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora um som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente, dobrosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade e àquela hora parecia que tardava indefinidamente.
Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir.
O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas pedras, crescia do fundo da rua, estralejava por baixo da vidraça, apagava-se para o fundo da rua, para o fundo do vago sono que eu não conseguia de todo. Batia, de quando em quando, uma porta de escada. Às vezes havia um chapinhar líquido de passos, um roçar por si mesmas de vestes molhadas. Uma ou outra vez, quando os passos eram mais, soava alto e atacava.
Depois o silêncio volvia, com os passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente.
Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente. Quanto à janela, eu só a ouvia.
Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que eu ia a sonhar. Os objetos vagos, participantes, na sombra, da minha insônia, passavam a ter lugar e dor na minha desolação.
[241]
Sonho triangular
A luz tornara-se de um amarelo exageradamente lento, de um amarelo sujo de lividez. Haviam crescido os intervalos entre as coisas, e os sons, mais espaçados de uma maneira nova, davam-se desligadamente. Quando se ouviam acabavam de repente, como que cortados. O calor, que parecia ter aumentado, parecia estar, ele calor, frio. Pela leve frincha das portas encostadas da janela via-se a atitude de exagerada expectativa da única árvore visível. O seu verde era outro. O silêncio entrara-lhe com a cor. Na atmosfera haviam-se fechado pétalas. E na própria composição do espaço uma interrelação diferente de qualquer coisa como planos havia alterado e quebrado o modo dos sons, das luzes e das cores usarem a extensão.
[242]
À parte aqueles sonhos vulgares, que são as vergonhas correntes das alfurjas da alma, que ninguém ousará confessar, e oprimem as vigílias como fantasmas sujos, viscosidades e borbulhas sebentas da sensibilidade reprimida, o que [de] ridículo, o que de apavorador, e indizível, a alma pode, ainda que com esforço, reconhecer nos seus recantos!
A alma humana é um manicômio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjetividade.
[243]
Quem quisesse fazer um catálogo de monstros, não teria mais que fotografar em palavras aquelas coisas que a noite traz às almas sonolentas que não conseguem dormir. Essas coisas têm toda a incoerência do sonho sem a desculpa incógnita de se estar dormindo. Pairam como morcegos sobre a passividade da alma, ou vampiros que suguem o sangue da submissão.
São larvas do declive e do desperdício, sombras que enchem o vale, vestígios que ficam do destino. Umas vezes são vermes, nauseantes à própria alma que os afaga e cria; outras vezes são espectros, e rondam sinistramente coisa nenhuma; outras vezes, ainda, emergem cobras dos recôncavos absurdos das emoções perdidas.
Lastro do falso, não servem senão para que não sirvamos. São dúvidas do abismo, deitadas na alma, arrastando dobras sonolentas e frias. Duram fumos, passam rastros, e não há mais que o haverem sido na substância estéril de ter tido consciência deles. Um ou outro é como uma peça íntima de fogo-de-artifício: faísca-se um tempo entre sonhos, e o resto é a inconsciência da consciência com que o vimos.
Nastro desatado, a alma não existe em si mesma. As grandes paisagens são para amanhã, e nós já vivemos. Falhou a conversa interrompida. Quem diria que a vida havia de ser assim?
Perco-me se me encontro, duvido se acho, não tenho se obtive. Como se passeasse, durmo, mas estou desperto. Como se dormisse, acordo, e não me pertenço. A vida, afinal, é, em si mesma, uma grande insônia, e há um estremunhamento lúcido em tudo quanto pensamos e fazemos.
Seria feliz se pudesse dormir. Esta opinião é deste momento, porque não durmo. A noite é um peso imenso por detrás do afogar-me com o cobertor mudo do que sonho. Tenho uma indigestão na alma.
Sempre, depois de depois, virá o dia, mas será tarde, como sempre.
Tudo dorme e é feliz, menos eu. Descanso um pouco, sem que ouse que durma. E grandes cabeças de monstros sem ser emergem confusas do fundo de quem sou. São dragões do Oriente do abismo, com línguas encarnadas de fora da lógica, com olhos que fitam sem vida a minha vida morta que os não fita.
A tampa, por amor de Deus, a tampa! Concluam-me a inconsciência e vida!
Felizmente, pela janela fria, de portas desdobradas para trás, um fio triste de luz pálida começa a tirar a sombra do horizonte. Felizmente, o que vai raiar é o dia. Sossego, quase, do cansaço do desassossego. Um galo canta, absurdo, em plena cidade. O dia lívido começa no meu vago sono. Alguma vez dormirei. Um ruído de rodas faz carroça. Minhas pálpebras dormem, mas não eu. Tudo, enfim, é o Destino.
[244]
Ser major reformado parece-me uma coisa ideal. É pena não se poder ter sido eternamente apenas major reformado.
A sede de ser completo deixou-me neste estado de mágoa inútil.
A futilidade trágica da vida.
A minha curiosidade irmã das cotovias.
A angústia pérfida dos poentes, tímida enxárcia nas auroras.
Sentemo-nos aqui. De aqui vê-se mais céu. É consoladora a expansão enorme desta altura estrelada. Dói a vida menos ao vê-la; passa por nossa face quente da vida o aceno pequeno dum leque leve.
[245]
A alma humana é vítima tão inevitável da dor que sofre a dor da surpresa dolorosa mesmo com o que devia esperar. Tal homem, que toda a vida falou da inconstância e da volubilidade feminina como de coisas naturais e típicas, terá toda a angústia da surpresa triste quando se encontre traído em amor — tal qual, não outro, como se tivesse sempre tido por dogma ou esperança a fidelidade e a firmeza da mulher. Tal outro, que tem tudo por oco e vazio, sentirá como um raio súbito a descoberta de que têm por nada o que escreve, ou que é estéril o seu esforço por ensinar, ou que é falsa a comunicabilidade da sua emoção.
Não há que crer que os homens, a quem estes desastres acontecem, e outros desastres como estes, houvessem sido pouco sinceros nas coisas que disseram, ou que escreveram, e em cuja substância esses desastres eram previsíveis ou certos. Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente com a naturalidade da emoção espontânea. E isto parece poder ser assim, a alma parece poder assim ter surpresas, só para que a dor lhe não falte, o opróbrio não deixe de lhe caber, a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na vida. Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento. Só não passa quem não sente; e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes, são os que vêm a passar e a sofrer do que previam e do que desdenhavam. E a isto que se chama a Vida.
[246]
Considerar todas as coisas que nos sucedem como acidentes ou episódios de um romance, a que assistimos não com a atenção senão com a vida. Só com essa atitude poderemos vencer a malícia dos dias e os caprichos dos sucessos.
[247]
A vida prática sempre me pareceu o menos cômodo dos suicídios. Agir foi sempre para mim a condenação violenta do sonho injustamente condenado.
Ter influência no mundo exterior, alterar coisas, transpor entes, influir em gente — tudo isto pareceu-me sempre de uma substância mais nebulosa que a dos meus devaneios. A futilidade imanente de todas as formas da ação foi, desde a minha infância, uma das medidas mais queridas do meu desapego até de mim.
Agir é reagir contra si próprio. Influenciar é sair de casa.
Sempre meditei como era absurdo que, onde a realidade substancial é uma série de sensações, houvesse coisas tão complicadamente simples como comércios, indústrias, relações sociais e familiares, tão desoladoramente incompreensíveis perante a atitude interior da alma para com a ideia de verdade.
[248]
Da minha abstenção de colaborar na existência do mundo exterior advém, entre outras coisas, um fenômeno psíquico curioso.
Abstendo-me inteiramente da ação, desinteressando-me das Coisas, consigo ver o mundo exterior quando atento nele com uma objetividade perfeita. Como nada interessa ou leva a ter razão para alterá-lo, não o altero.
É assim consigo
[249]
Desde o meio do século dezoito que uma doença terrível baixou progressivamente sobre a civilização. Dezessete séculos de aspiração cristã constantemente iludida, cinco séculos de aspiração pagã perenemente postergada — o catolicismo que falira como cristismo, a renascença que falira como paganismo, a reforma que falira como fenômeno universal. O desastre de tudo quanto se sonhara, a vergonha de tudo quanto se conseguira, a miséria de viver sem vida digna que os outros pudessem ter conosco, e sem vida dos outros que pudéssemos dignamente ter.
Isto caiu nas almas e envenenou-as. O horror à ação, por ter de ser vil numa sociedade vil, inundou os espíritos. A atividade superior da alma adoeceu; só a atividade inferior, porque mais vitalizada, não decaiu; inerte a outra, assumiu a regência do mundo.
Assim nasceu uma literatura e uma arte feitas dos elementos secundários do pensamento — o romantismo; e uma vida social feita dos elementos secundários da atividade — a democracia moderna.
As almas nascidas para mandar só tinham o remédio de abster-se. As almas nascidas para criar, numa sociedade onde as forças criadoras faliam, tinham por único mundo plástico à sua vontade o mundo social dos seus sonhos, a esterilidade introspectiva da própria alma.
Chamamos “românticos”, por igual, aos grandes que faliram e aos pequenos que se revelaram. Mas não há semelhança senão na sentimentalidade evidente; mas em uns a sentimentalidade mostra a impossibilidade do uso ativo da inteligência; em outros mostra a ausência da própria inteligência. São fruto da mesma época um Chateaubriand e um Hugo, um Vigny e um Michelet. Mas um Chateaubriand é uma alma grande que diminui; um Hugo é uma alma pequena que se distende com o vento do tempo; um Vigny é um gênio que teve de fugir; um Michelet uma mulher que teve de ser homem de gênio. No pai de todos, Jean-Jacques Rousseau, as duas tendências estão juntas. A inteligência nele era de criador, a sensibilidade de escravo. Afirma ambas por igual.
Mas a sensibilidade social, que tinha, envenenou as suas teorias, que a inteligência apenas dispôs claramente. A inteligência que tinha só serviu para gemer a miséria de coexistir com tal sensibilidade.
J. J. Rousseau é o homem moderno, mas mais completo que qualquer homem moderno. Das fraquezas que o fizeram falir tirou — ai dele e de nós! — as forças que o fizeram triunfar. O que partiu dele venceu, mas nos lábaros da sua vitória, quando entrou na cidade, viu-se que estava escrita, em baixo, a palavra “Derrota”. No que dele ficou para trás, incapaz do esforço de vencer, foram as coroas e os cetros, a majestade de mandar e a glória de vencer por destino interno.
II
O mundo, no qual nascemos, sofre de século e meio de renúncia e de violência — da renúncia dos superiores e da violência dos inferiores, que é a sua vitória. Nenhuma qualidade superior pode afirmar-se modernamente, tanto na ação, como no pensamento, na esfera política, como na especulativa.
A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde uma sensibilidade fina não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contato da alma com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras — poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos.
[250]
Mesmo que eu quisesse criar, a única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito.
Por isso se desenvolveu a ciência. A única coisa em que há construção, hoje, é uma máquina; o único argumento em que há encadeamento o de uma demonstração matemática.
O poder de criar precisa de ponto de apoio, da muleta da realidade.
A arte é uma ciência…
Sofre ritmicamente.
Não posso ler, porque a minha crítica hiperacesa não descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que sinto logo que ele não é real; e assim o seu valor desaparece. Não posso entreter-me na contemplação inocente das coisas e dos homens, porque a ânsia de aprofundar é inevitável, e, desde que o meu interesse não pode existir sem ela, ou há-de morrer às mãos dela ou secar.
Não posso entreter-me com a especulação metafísica porque sei de sobra, e por mim, que todos os sistemas são defensáveis e intelectualmente possíveis; e, para gozar a arte intelectual de construir sistemas, falta-me o poder esquecer que o fim da especulação metafísica é a procura da verdade.
Um passado feliz em cuja lembrança torne a ser feliz; sem nada no presente que me alegre ou me interesse, em sonho ou hipótese de futuro que seja diferente deste presente ou possa ter outro passado que esse passado, jazo a minha vida, consciente espectro de um paraíso em que nunca estive, cadáver-nado das minhas esperanças por haver.
Felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a angústia altera mas não divide, que creem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado.
[251]
Fragmentos de uma autobiografia
Primeiro entretiveram-me as especulações metafísicas, as ideias científicas depois. Atraíram-me finalmente as sociológicas. Mas em nenhum destes estádios da minha busca da verdade encontrei segurança e alívio.
Pouco lia, em qualquer das preocupações. Mas no pouco que lia, tantas teorias me cansava de ver, contraditórias, igualmente assentes em razões desenvolvidas, todas elas igualmente prováveis e de acordo com uma certa escolha de fatos que tinha sempre o ar de ser os fatos todos. Se erguia dos livros os meus olhos cansados, ou se dos meus pensamentos desviava para o mundo exterior a minha perturbada atenção, só uma coisa eu via, desmentindo-me toda a utilidade de ler e pensar, arrancando-me uma a uma todas as pétalas da ideia do esforço: a infinita complexidade das coisas, a imensa soma, a prolixa inatingibilidade dos próprios poucos fatos que se poderiam conceber precisos para o levantamento de uma ciência.
***
O desgosto de não encontrar nada encontrei comigo pouco a pouco. Não achei razão nem lógica senão a um ceticismo que nem sequer buscava uma lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei — por que me havia eu de curar disso? E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma deva pertencer à doença? Quem nos afirma que, a ser doença, a doença não era mais desejável, ou mais lógica, ou mais, do que a saúde? A ser a saúde preferível, porque era eu doente se não por naturalmente o ser, e se naturalmente o era, por que ir contra a Natureza, que para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?
Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia, apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a responsabilidade social — talhei nessa matéria de a estátua pensada da minha existência.
Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou aquele modo estético da vida. Do pouco que lia aprendi a extrair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava, apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo distante e errado, prolongar mais dentro de mim.
Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.
Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu hedonismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Lentamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensinei-me a ser insensível quer para os apelos dos instintos quer para as solicitações.
Reduzi ao mínimo o meu contato com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida. Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.
Do estudo da metafísica, das ciências, passei a ocupações de espírito mais violentas para o equilíbrio dos meus nervos. Gastei apavoradas noites debruçado sobre volumes de místicos e de cabalistas, que nunca tinha paciência para ler de todo, de outra maneira que não intermitentemente, trêmulo e. Os ritos e as razões dos Rosa-Cruz, a simbólica da Cabala e dos Templários, — sofri durante tempos a opressão de tudo isso. E encheram a febre dos meus dias especulações venenosas, da razão demoníaca da metafísica — a magia, a alquimia — extraindo um falso estímulo vital de sensação dolorosa e presciente de estar como que sempre à beira de saber um mistério supremo. Perdi-me pelos sistemas secundários, excitados, da metafísica, sistemas cheios de analogias perturbantes, de alçapões para a lucidez, grandes paisagens misteriosas onde reflexos de sobrenatural acordam mistérios nos contornos.
Envelheci pelas sensações… Gastei-me gerando os pensamentos… E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se denegrir [? ].
Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma.
Abandonei-me, mas não sei a quê.
Concentrei e limitei os meus desejos, para os poder requintar melhor.
Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido.
Hoje sou ascético na minha religião de mim. Uma chávena de café, um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas, o trabalho, o amor, até a beleza e a glória. Não tenho quase necessidade de estímulos. Ópio tenho-o eu na alma.
Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem saiba já em que penso, com que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada vez demais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.
Não faço teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso. Para meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que me importa o que ela é para os outros!
A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um a vida que me parece que lhes convém no meu sonho.
[252]
Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto, onde nada de ativo intervém, onde por fim até a nossa consciência de nós mesmos se atola num lodo — só aí, nesse morno e úmido não-ser, a abdicação da ação competentemente se atinge.
Não querer compreender, não analisar… Ver-se como à natureza; olhar para as suas impressões como para um campo — a sabedoria é isto.
[253]
o sagrado instinto de não ter teorias…
[254]
Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da tarde, me tem batido na alma, com uma violência súbita e estonteante, a estranhíssima presença da organização das coisas. Não são bem as coisas naturais que tanto me afetam, que tão poderosamente me trazem esta sensação: são antes os arruamentos, os letreiros, as pessoas vestidas e falando, os empregos, os jornais, a inteligência de tudo. Ou, antes, é o fato de que existem arruamentos, letreiros, empregos, homens, sociedade, tudo a entender-se e a seguir e a abrir caminhos.
Reparo no homem diretamente, e vejo que é tão inconsciente como um cão ou um gato; fala por uma inconsciência de outra ordem; organiza-se em sociedade por uma inconsciência de outra ordem, absolutamente inferior à que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social. E então, tanto ou mais que da existência de organismos, tanto ou mais que da existência de leis físicas rígidas e intelectuais, se me revela por uma luz evidente a inteligência que cria e impregna o mundo.
Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim entendeu o autor da frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores — falar e pensar são apenas novos instintos, menos seguros que os outros porque novos.
Pensei neste papagaio porque estou triste e a infância longínqua o lembra? Não, pensei nele realmente, porque do pátio fronteiro de agora, uma voz de papagaio grita arrevesadamente.
Tudo se me confunde. Quando julgo que recordo, é outra coisa que penso; se vejo, ignoro, e quando me distraio, nitidamente vejo.
Viro as costas à janela cinzenta, de vidros frios às mãos que lhes tocam. E levo comigo, por um sortilégio da penumbra, de repente, o interior da casa antiga, fora da qual, no pátio ao lado, o papagaio gritava; e os meus olhos adormecem-se-me de toda a irreparabilidade de ter efetivamente vivido.
[225]
Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vagaroso e disperso, e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo, nítido, o sem sol do céu ocidental. Esse céu é de um azul esverdeado para cinzento branco, onde, do lado esquerdo, sobre os montes da outra margem, se agacha, amontoada, uma névoa acastanhada de cor-de-rosa morto. Há uma grande paz que não tenho dispersa friamente no ar outonal abstrato. Sofro de não ter o prazer vago de supor que ela existe. Mas, na realidade, não há paz nem falta de paz: céu apenas, céu de todas as cores que desmaiam — azul branco, verde ainda azulado, cinzento pálido entre verde e azul, vagos tons remotos de cores de nuvens que o não são, amareladamente escurecidas de encarnado findo. E tudo isto é uma visão que se extingue no mesmo momento em que é tida, um intervalo entre nada e nada, alado, posto alto, em tonalidades de céu e mágoa, prolixo e indefinido.
Sinto e esqueço. Uma saudade, que é a de toda a gente por tudo, invade-me como um ópio do ar frio. Há em mim um êxtase de ver, íntimo e postiço.
Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol cada vez mais se acaba, a luz extingue-se em branco lívido que se azula de esverdeado frio. Há no ar um torpor do que se não consegue nunca. Cala alto a paisagem do céu.
Nesta hora, em que sinto até transbordar, quisera ter a malícia inteira de dizer, o capricho livre de um estilo por destino. Mas não, só o céu alto é tudo, remoto, abolindo-se, e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e confusas, não é mais que o reflexo desse céu nulo num lago em mim — lago recluso entre rochedos hirtos, calado, olhar de morto, em que a altura se contempla esquecida.
Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto — sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente de todas as emoções, amarelecer-me esbatido para tristeza cinzenta na minha consciência externa de mim.
Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: e aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. E todo o peso e toda a mágoa deste universo real e impossível, deste céu estandarte de um exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente imaginário da lua emerge numa brancura elétrica parada, recortado a longínquo e a insensível.
É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito — porque és infinito, não se pode fugir de ti!
[226]
Com que luxúria e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as minuciosidades da sua arquitetura, a luz em algumas janelas, os vasos com plantas fazendo irregularidades nas sacadas — contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!
[227]
Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a primeira, que é minha, é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda, porém, é de todos, e não é — creio bem — uma sombra ou disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque toca no sentido íntimo de toda a valia da arte.
Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa. Como a música, o verso é limitado por leis rítmicas, que, ainda que não sejam as leis rígidas do verso regular, existem todavia como resguardos, coações, dispositivos automáticos de opressão e castigo. Na prosa falamos livres. Podemos incluir ritmos musicais, e contudo pensar. Podemos incluir ritmos poéticos, e contudo estar fora deles. Um ritmo ocasional de verso não estorva a prosa; um ritmo ocasional de prosa faz tropeçar o verso.
Na prosa se engloba toda a arte — em parte porque na palavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra livre se contém toda a possibilidade de o dizer e pensar. Na prosa damos tudo, por transposição: a cor e a forma, que a pintura não pode dar senão diretamente, em elas mesmas, sem dimensão íntima; o ritmo, que a música não pode dar senão diretamente, nele mesmo, sem corpo formal, nem aquele segundo corpo que é a ideia; a estrutura, que o arquiteto tem que formar de coisas duras, dadas, externas, e nós erguemos em ritmos, em indecisões, em decursos e fluidezas; a realidade, que o escultor tem que deixar no mundo, sem aura nem transubstanciação; a poesia, enfim, em que o poeta, como o iniciado em uma ordem oculta, é servo, ainda que voluntário, de um grau e de um ritual.
Creio bem que, em um mundo civilizado perfeito, não haveria outra arte que não a prosa. Deixaríamos os poentes aos mesmos poentes, cuidando apenas, em arte, de os compreender verbalmente, assim os transmitindo em música inteligível de cor. Não faríamos escultura dos corpos, que guardariam próprios, vistos e tocados, o seu relevo móbil e o seu morno suave. Faríamos casas só para morar nelas, que é, enfim, o para que elas são. A poesia ficaria para as crianças se aproximarem da prosa futura; que a poesia é, por certo, qualquer coisa de infantil, de mnemônico, de auxiliar e inicial.
Até as artes menores, ou as que assim podemos chamar, se refletem, múrmuras, na prosa. Há prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a ideia se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita. E há também na prosa sutilezas convulsas em que um grande ator, o Verbo, transmuda ritmicamente em sua substância corpórea o mistério impalpável do universo.
[228]
Tudo se penetra. A leitura dos clássicos, que não falam de poentes, tem-me tornado inteligíveis muitos poentes, em todas as suas cores. Há uma relação entre a competência sintática, pela qual se distingue a valia dos seres, dos sons, e das formas, e a capacidade de compreender quando o azul do céu é realmente verde, e que parte de amarelo existe no verde azul do céu.
No fundo é a mesma coisa — a capacidade de distinguir e de sutilizar. Sem sintaxe não há emoção duradoura. A imortalidade é uma função dos gramáticos.
[229]
Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo.
Que coisa tão reles e baixa que é a vida! Repara que para ser baixa e reles basta não a quereres, ser-te dada, nada depender da tua vontade, nem mesmo da tua ilusão da tua vontade.
Morrer é sermos outros totalmente. Por isso o suicídio é a covardia; é entregarmo-nos totalmente à vida.
[230]
A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida à ação, a ação, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.
[231]
Fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma das tragédias da alma. Sobretudo é grande quando se reconhece que essa obra é a melhor que se podia fazer. Mas ao ir escrever uma obra, saber de antemão que ela tem de ser imperfeita e falhada; ao está-la escrevendo estar vendo que ela é imperfeita e falhada — isto é o máximo da tortura e da humilhação do espírito. Não se os versos que escrevo sinto que me não satisfazem, mas sei que os versos que estou para escrever me não satisfarão, também. Sei-o tanto filosoficamente, como carnalmente, por uma entrevisão obscura e gladiolada.
Por que escrevo então? Porque, pregador que sou da renúncia, não aprendi ainda a executá-la plenamente. Não aprendi a abdicar da tendência para o verso e a prosa. Tenho de escrever como cumprindo um castigo. E o maior castigo é o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, falhado e incerto.
Em criança escrevia já versos. Então escrevia versos muito maus, mas julgava-os perfeitos. Nunca mais tornarei a ter o prazer falso de produzir obra perfeita. O que escrevo hoje é muito melhor. É melhor, mesmo, do que o que poderiam escrever os melhores. Mas está infinitamente abaixo daquilo que eu, não sei porquê, sinto que podia — ou talvez seja, que devia — escrever. Choro sobre os meus versos maus da infância como sobre uma criança morta, um filho morto, uma última esperança que se fosse.
[232]
Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda, que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.
Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.
Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta — estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade — um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.
Nada me satisfaz, nada me consola, tudo — quer haja sido, quer não — me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.
[233]
… a tristeza solene que habita em todas as coisas grandes — nos píncaros como nas grandes vidas, nas noites profundas como nos poemas eternos.
[234]
Podemos morrer se apenas amamos.
[235]
Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algumas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia — pelo menos talvez — ter convertido em amor ou afeto. Nunca tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.
A princípio de observar isto em mim, julguei — tanto nos desconhecemos — que havia neste caso da minha alma uma razão de timidez. Mas depois descobri que não havia; havia um tédio das emoções, diferente do tédio da vida, uma impaciência de me ligar a qualquer sentimento contínuo, sobretudo quando houvesse de se lhe atrelar um esforço prosseguido. Para quê? pensava em mim o que não pensa. Tenho a sutileza bastante, o tato psicológico suficiente para saber o “como”; o “como do como” sempre me escapou. A minha fraqueza de vontade começou sempre por ser uma fraqueza da vontade de ter vontade. Assim me sucedeu nas emoções como me sucede na inteligência, e na vontade mesma, e em tudo quanto é vida.
Mas daquela vez em que uma malícia da oportunidade me fez julgar que amava, e verificar deveras que era amado, fiquei, primeiro, estonteado e confuso, como se me saíra uma sorte grande em moeda inconvertível. Fiquei, depois, porque ninguém é humano sem o ser, levemente envaidecido; esta emoção, porém, que pareceria a mais natural, passou rapidamente. Sucedeu-se um sentimento difícil de definir, mas em que se salientavam incomodamente as sensações de tédio, de humilhação e de fadiga.
De tédio, como se o Destino me houvesse imposto uma tarefa em serões desconhecidos. De tédio, como se um novo dever — o de uma horrorosa reciprocidade — me fosse dado com a ironia de um privilégio, que eu me teria ainda que maçar, agradecendo-o ao Destino. De tédio, como se me não bastasse a monotonia inconsistente da vida, para agora se lhe sobrepor a monotonia obrigatória de um sentimento definido.
E de humilhação, sim, de humilhação. Tardei em perceber a que vinha um sentimento aparentemente tão pouco justificado pela sua causa. O amor a ser amado deveria ter-me aparecido. Deveria ter-me envaidecido de alguém reparar atentamente para a minha existência como ser-amável. Mas, à parte o breve momento de real envaidecimento, em que todavia não sei se o pasmo teve mais parte que a própria vaidade, a humilhação foi a sensação que recebi de mim. Senti que me era dada uma espécie de prêmio destinado a outrem — prêmio, sim, de valia para quem naturalmente o merecesse.
Mas fadiga, sobretudo fadiga — a fadiga que passa o tédio. Compreendi então uma frase de Chateaubriand que sempre me enganara por falta de experiência de mim mesmo. Diz Chateaubriand, figurando-se em René, “amarem-o cansava-o” — on le fatigait en l’aimant. Conheci, com pasmo, que isto representava uma experiência idêntica à minha, e cuja verdade portanto eu não tinha o direito de negar.
A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga de sermos o objeto do fardo das emoções alheias! Converter quem quisera ver-se livre, sempre livre, no moço de fretes da responsabilidade de corresponder, da decência de se não afastar, para que se não suponha que se é príncipe nas emoções e se renega o máximo que uma alma humana pode dar. A fadiga [de] se nos tornar a existência uma coisa dependente em absoluto de uma relação com um sentimento de outrem! A fadiga de, em todo o caso, ter forçosamente que sentir, ter forçosamente, ainda que sem reciprocidade, que amar um pouco também!
Passou de mim, como até mim veio, esse episódio na sombra. Hoje não resta dele nada, nem na minha inteligência, nem na minha emoção. Não me trouxe experiência alguma que eu não pudesse ter deduzido das leis da vida humana cujo conhecimento instintivo albergo em mim porque sou humano. Não me deu nem prazer que eu recorde com tristeza, ou pesar que eu lembre com tristeza também. Tenho a impressão de que foi uma coisa que li algures, um incidente sucedido a outrem, novela de que li metade, e de que a outra metade faltou, sem que me importasse que faltasse, pois até onde a li estava certa, e, embora não tivesse sentido, tal era já que lhe não poderia dar sentido a parte faltante, qualquer que fosse o seu enredo.
Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou. Mas é uma gratidão abstrata, pasmada, mais da inteligência do que de qualquer emoção. Tenho pena que alguém tivesse tido pena por minha causa; é disso que tenho pena, e não tenho pena de mais nada.
Não é natural que a vida me traga outro encontro com as emoções naturais. Quase desejo que apareça para ver como sinto dessa segunda vez, depois de ter atravessado toda uma extensa análise da primeira experiência. É possível que sinta menos; é também possível que sinta mais. Se o Destino o der, que o dê. Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os fatos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma.
[236]
Não se subordinar a nada — nem a um homem, nem a um amor, nem a uma ideia, ter aquela independência longínqua que consiste em não crer na verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecimento dela — tal é o estado em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a vida íntima intelectual dos que não vivem sem pensar. Pertencer — eis a banalidade. Credo, ideal, mulher ou profissão — tudo isso é a cela e as algemas. Ser é estar livre. A mesma ambição, se vão orgulho e paixão, é um fardo, não nos orgulharíamos se compreendêssemos que é um cordel pelo qual nos puxam. Não: nem ligações conosco! Livres de nós como dos outros, contemplativos sem êxtase, pensadores sem conclusão, viveremos, libertos de Deus, o pequeno intervalo que a distração dos algozes concede ao nosso êxtase na parada. Temos amanhã a guilhotina. Se a não tivéssemos amanhã tê-la-íamos depois de amanhã. Passeemos ao sol o repouso antes do fim, ignorantes voluntariamente dos propósitos e dos perseguimentos. O sol dourará nossas frontes sem rugas e a brisa terá frescura para quem deixar de esperar.
Atiro a caneta pela secretária fora e ela rola, regressando, sem que eu a apanhe, pelo declive onde trabalho. Senti tudo de repente. E a minha alegria manifesta-se por este gesto da raiva que não sinto.
[237]
Notas para uma regra de vida
Precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um dependente.
Aumentar a personalidade sem incluir nela nada alheio — nem pedindo aos outros, nem mandando nos outros, mas sendo outros quando outros são precisos.
Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem.
É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.
Consideremos um dono de escritório. Ele tem obrigação de poder dispensar toda a gente; tem a obrigação de saber escrever à máquina, de saber contabilidade, de saber varrer o escritório. Que a sua dependência dos outros seja, portanto, só uma necessidade de não perder tempo, e não uma necessidade da incompetência própria. Que diga ao praticante, “Vá deitar esta carta no correio” porque não quer perder o tempo que levaria o deitá-la no correio, mas não porque não saiba onde é o correio. Que diga ao empregado, “Vá tratar deste assunto ali”, porque não quer perder o tempo de o tratar, mas não porque não saiba tratá-lo.
[238]
Nenhum prêmio certo tem a virtude, nenhum castigo certo o pecado. Nem seria justo que houvesse tal prêmio ou tal castigo. Virtude ou pecado são manifestações inevitáveis de organismos condenados a um ou a outro, servindo a pena de serem bons ou a pena de serem maus. Por isso todas as religiões colocam as recompensas e os castigos, merecidos por quem, nada sendo nem podendo, nada pôde merecer, em outros mundos, de que nenhuma ciência pode dar notícia, de que nenhuma fé pode transmitir a visão.
Abdiquemos, pois, de toda a crença sincera, como de toda a preocupação de influir em outrem.
A vida, disse Tarde, é a busca do impossível através do inútil.
Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso fado; busquemo-lo através do inútil, porque não passa caminho por outro ponto; ascendamos, porém, à consciência de que nada buscamos que possa obter-se, de que por nada passamos que mereça um carinho ou uma saudade.
Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender, disse o escoliasta.
Compreendamos, compreendamos sempre, e façamos por tecer astuciosamente capelas ou grinaldas que hão-de murchar também, as flores espectrais dessa compreensão.
[239]
Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender. O sentido da frase é por vezes difícil de atingir.
Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão.
Caímos então naquele estado de inércia em que o mais que queremos é compreender bem o que é exposto — uma atitude estética, pois que queremos compreender sem nos interessar, sem que nos importe que o compreendido seja ou não verdadeiro, sem que vejamos mais no que compreendemos senão a forma exata como foi exposto, a posição de beleza racional que tem para nós.
Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões nossas, de querer pensar para agir. Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente, as opiniões alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o seu impulso.
[240]
Paisagem de chuva
Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a sua monotonia fria me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora um som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente, dobrosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade e àquela hora parecia que tardava indefinidamente.
Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir.
O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas pedras, crescia do fundo da rua, estralejava por baixo da vidraça, apagava-se para o fundo da rua, para o fundo do vago sono que eu não conseguia de todo. Batia, de quando em quando, uma porta de escada. Às vezes havia um chapinhar líquido de passos, um roçar por si mesmas de vestes molhadas. Uma ou outra vez, quando os passos eram mais, soava alto e atacava.
Depois o silêncio volvia, com os passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente.
Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente. Quanto à janela, eu só a ouvia.
Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que eu ia a sonhar. Os objetos vagos, participantes, na sombra, da minha insônia, passavam a ter lugar e dor na minha desolação.
[241]
Sonho triangular
A luz tornara-se de um amarelo exageradamente lento, de um amarelo sujo de lividez. Haviam crescido os intervalos entre as coisas, e os sons, mais espaçados de uma maneira nova, davam-se desligadamente. Quando se ouviam acabavam de repente, como que cortados. O calor, que parecia ter aumentado, parecia estar, ele calor, frio. Pela leve frincha das portas encostadas da janela via-se a atitude de exagerada expectativa da única árvore visível. O seu verde era outro. O silêncio entrara-lhe com a cor. Na atmosfera haviam-se fechado pétalas. E na própria composição do espaço uma interrelação diferente de qualquer coisa como planos havia alterado e quebrado o modo dos sons, das luzes e das cores usarem a extensão.
[242]
À parte aqueles sonhos vulgares, que são as vergonhas correntes das alfurjas da alma, que ninguém ousará confessar, e oprimem as vigílias como fantasmas sujos, viscosidades e borbulhas sebentas da sensibilidade reprimida, o que [de] ridículo, o que de apavorador, e indizível, a alma pode, ainda que com esforço, reconhecer nos seus recantos!
A alma humana é um manicômio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjetividade.
[243]
Quem quisesse fazer um catálogo de monstros, não teria mais que fotografar em palavras aquelas coisas que a noite traz às almas sonolentas que não conseguem dormir. Essas coisas têm toda a incoerência do sonho sem a desculpa incógnita de se estar dormindo. Pairam como morcegos sobre a passividade da alma, ou vampiros que suguem o sangue da submissão.
São larvas do declive e do desperdício, sombras que enchem o vale, vestígios que ficam do destino. Umas vezes são vermes, nauseantes à própria alma que os afaga e cria; outras vezes são espectros, e rondam sinistramente coisa nenhuma; outras vezes, ainda, emergem cobras dos recôncavos absurdos das emoções perdidas.
Lastro do falso, não servem senão para que não sirvamos. São dúvidas do abismo, deitadas na alma, arrastando dobras sonolentas e frias. Duram fumos, passam rastros, e não há mais que o haverem sido na substância estéril de ter tido consciência deles. Um ou outro é como uma peça íntima de fogo-de-artifício: faísca-se um tempo entre sonhos, e o resto é a inconsciência da consciência com que o vimos.
Nastro desatado, a alma não existe em si mesma. As grandes paisagens são para amanhã, e nós já vivemos. Falhou a conversa interrompida. Quem diria que a vida havia de ser assim?
Perco-me se me encontro, duvido se acho, não tenho se obtive. Como se passeasse, durmo, mas estou desperto. Como se dormisse, acordo, e não me pertenço. A vida, afinal, é, em si mesma, uma grande insônia, e há um estremunhamento lúcido em tudo quanto pensamos e fazemos.
Seria feliz se pudesse dormir. Esta opinião é deste momento, porque não durmo. A noite é um peso imenso por detrás do afogar-me com o cobertor mudo do que sonho. Tenho uma indigestão na alma.
Sempre, depois de depois, virá o dia, mas será tarde, como sempre.
Tudo dorme e é feliz, menos eu. Descanso um pouco, sem que ouse que durma. E grandes cabeças de monstros sem ser emergem confusas do fundo de quem sou. São dragões do Oriente do abismo, com línguas encarnadas de fora da lógica, com olhos que fitam sem vida a minha vida morta que os não fita.
A tampa, por amor de Deus, a tampa! Concluam-me a inconsciência e vida!
Felizmente, pela janela fria, de portas desdobradas para trás, um fio triste de luz pálida começa a tirar a sombra do horizonte. Felizmente, o que vai raiar é o dia. Sossego, quase, do cansaço do desassossego. Um galo canta, absurdo, em plena cidade. O dia lívido começa no meu vago sono. Alguma vez dormirei. Um ruído de rodas faz carroça. Minhas pálpebras dormem, mas não eu. Tudo, enfim, é o Destino.
[244]
Ser major reformado parece-me uma coisa ideal. É pena não se poder ter sido eternamente apenas major reformado.
A sede de ser completo deixou-me neste estado de mágoa inútil.
A futilidade trágica da vida.
A minha curiosidade irmã das cotovias.
A angústia pérfida dos poentes, tímida enxárcia nas auroras.
Sentemo-nos aqui. De aqui vê-se mais céu. É consoladora a expansão enorme desta altura estrelada. Dói a vida menos ao vê-la; passa por nossa face quente da vida o aceno pequeno dum leque leve.
[245]
A alma humana é vítima tão inevitável da dor que sofre a dor da surpresa dolorosa mesmo com o que devia esperar. Tal homem, que toda a vida falou da inconstância e da volubilidade feminina como de coisas naturais e típicas, terá toda a angústia da surpresa triste quando se encontre traído em amor — tal qual, não outro, como se tivesse sempre tido por dogma ou esperança a fidelidade e a firmeza da mulher. Tal outro, que tem tudo por oco e vazio, sentirá como um raio súbito a descoberta de que têm por nada o que escreve, ou que é estéril o seu esforço por ensinar, ou que é falsa a comunicabilidade da sua emoção.
Não há que crer que os homens, a quem estes desastres acontecem, e outros desastres como estes, houvessem sido pouco sinceros nas coisas que disseram, ou que escreveram, e em cuja substância esses desastres eram previsíveis ou certos. Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente com a naturalidade da emoção espontânea. E isto parece poder ser assim, a alma parece poder assim ter surpresas, só para que a dor lhe não falte, o opróbrio não deixe de lhe caber, a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na vida. Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento. Só não passa quem não sente; e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes, são os que vêm a passar e a sofrer do que previam e do que desdenhavam. E a isto que se chama a Vida.
[246]
Considerar todas as coisas que nos sucedem como acidentes ou episódios de um romance, a que assistimos não com a atenção senão com a vida. Só com essa atitude poderemos vencer a malícia dos dias e os caprichos dos sucessos.
[247]
A vida prática sempre me pareceu o menos cômodo dos suicídios. Agir foi sempre para mim a condenação violenta do sonho injustamente condenado.
Ter influência no mundo exterior, alterar coisas, transpor entes, influir em gente — tudo isto pareceu-me sempre de uma substância mais nebulosa que a dos meus devaneios. A futilidade imanente de todas as formas da ação foi, desde a minha infância, uma das medidas mais queridas do meu desapego até de mim.
Agir é reagir contra si próprio. Influenciar é sair de casa.
Sempre meditei como era absurdo que, onde a realidade substancial é uma série de sensações, houvesse coisas tão complicadamente simples como comércios, indústrias, relações sociais e familiares, tão desoladoramente incompreensíveis perante a atitude interior da alma para com a ideia de verdade.
[248]
Da minha abstenção de colaborar na existência do mundo exterior advém, entre outras coisas, um fenômeno psíquico curioso.
Abstendo-me inteiramente da ação, desinteressando-me das Coisas, consigo ver o mundo exterior quando atento nele com uma objetividade perfeita. Como nada interessa ou leva a ter razão para alterá-lo, não o altero.
É assim consigo
[249]
Desde o meio do século dezoito que uma doença terrível baixou progressivamente sobre a civilização. Dezessete séculos de aspiração cristã constantemente iludida, cinco séculos de aspiração pagã perenemente postergada — o catolicismo que falira como cristismo, a renascença que falira como paganismo, a reforma que falira como fenômeno universal. O desastre de tudo quanto se sonhara, a vergonha de tudo quanto se conseguira, a miséria de viver sem vida digna que os outros pudessem ter conosco, e sem vida dos outros que pudéssemos dignamente ter.
Isto caiu nas almas e envenenou-as. O horror à ação, por ter de ser vil numa sociedade vil, inundou os espíritos. A atividade superior da alma adoeceu; só a atividade inferior, porque mais vitalizada, não decaiu; inerte a outra, assumiu a regência do mundo.
Assim nasceu uma literatura e uma arte feitas dos elementos secundários do pensamento — o romantismo; e uma vida social feita dos elementos secundários da atividade — a democracia moderna.
As almas nascidas para mandar só tinham o remédio de abster-se. As almas nascidas para criar, numa sociedade onde as forças criadoras faliam, tinham por único mundo plástico à sua vontade o mundo social dos seus sonhos, a esterilidade introspectiva da própria alma.
Chamamos “românticos”, por igual, aos grandes que faliram e aos pequenos que se revelaram. Mas não há semelhança senão na sentimentalidade evidente; mas em uns a sentimentalidade mostra a impossibilidade do uso ativo da inteligência; em outros mostra a ausência da própria inteligência. São fruto da mesma época um Chateaubriand e um Hugo, um Vigny e um Michelet. Mas um Chateaubriand é uma alma grande que diminui; um Hugo é uma alma pequena que se distende com o vento do tempo; um Vigny é um gênio que teve de fugir; um Michelet uma mulher que teve de ser homem de gênio. No pai de todos, Jean-Jacques Rousseau, as duas tendências estão juntas. A inteligência nele era de criador, a sensibilidade de escravo. Afirma ambas por igual.
Mas a sensibilidade social, que tinha, envenenou as suas teorias, que a inteligência apenas dispôs claramente. A inteligência que tinha só serviu para gemer a miséria de coexistir com tal sensibilidade.
J. J. Rousseau é o homem moderno, mas mais completo que qualquer homem moderno. Das fraquezas que o fizeram falir tirou — ai dele e de nós! — as forças que o fizeram triunfar. O que partiu dele venceu, mas nos lábaros da sua vitória, quando entrou na cidade, viu-se que estava escrita, em baixo, a palavra “Derrota”. No que dele ficou para trás, incapaz do esforço de vencer, foram as coroas e os cetros, a majestade de mandar e a glória de vencer por destino interno.
II
O mundo, no qual nascemos, sofre de século e meio de renúncia e de violência — da renúncia dos superiores e da violência dos inferiores, que é a sua vitória. Nenhuma qualidade superior pode afirmar-se modernamente, tanto na ação, como no pensamento, na esfera política, como na especulativa.
A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde uma sensibilidade fina não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contato da alma com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras — poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos.
[250]
Mesmo que eu quisesse criar, a única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito.
Por isso se desenvolveu a ciência. A única coisa em que há construção, hoje, é uma máquina; o único argumento em que há encadeamento o de uma demonstração matemática.
O poder de criar precisa de ponto de apoio, da muleta da realidade.
A arte é uma ciência…
Sofre ritmicamente.
Não posso ler, porque a minha crítica hiperacesa não descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que sinto logo que ele não é real; e assim o seu valor desaparece. Não posso entreter-me na contemplação inocente das coisas e dos homens, porque a ânsia de aprofundar é inevitável, e, desde que o meu interesse não pode existir sem ela, ou há-de morrer às mãos dela ou secar.
Não posso entreter-me com a especulação metafísica porque sei de sobra, e por mim, que todos os sistemas são defensáveis e intelectualmente possíveis; e, para gozar a arte intelectual de construir sistemas, falta-me o poder esquecer que o fim da especulação metafísica é a procura da verdade.
Um passado feliz em cuja lembrança torne a ser feliz; sem nada no presente que me alegre ou me interesse, em sonho ou hipótese de futuro que seja diferente deste presente ou possa ter outro passado que esse passado, jazo a minha vida, consciente espectro de um paraíso em que nunca estive, cadáver-nado das minhas esperanças por haver.
Felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a angústia altera mas não divide, que creem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado.
[251]
Fragmentos de uma autobiografia
Primeiro entretiveram-me as especulações metafísicas, as ideias científicas depois. Atraíram-me finalmente as sociológicas. Mas em nenhum destes estádios da minha busca da verdade encontrei segurança e alívio.
Pouco lia, em qualquer das preocupações. Mas no pouco que lia, tantas teorias me cansava de ver, contraditórias, igualmente assentes em razões desenvolvidas, todas elas igualmente prováveis e de acordo com uma certa escolha de fatos que tinha sempre o ar de ser os fatos todos. Se erguia dos livros os meus olhos cansados, ou se dos meus pensamentos desviava para o mundo exterior a minha perturbada atenção, só uma coisa eu via, desmentindo-me toda a utilidade de ler e pensar, arrancando-me uma a uma todas as pétalas da ideia do esforço: a infinita complexidade das coisas, a imensa soma, a prolixa inatingibilidade dos próprios poucos fatos que se poderiam conceber precisos para o levantamento de uma ciência.
***
O desgosto de não encontrar nada encontrei comigo pouco a pouco. Não achei razão nem lógica senão a um ceticismo que nem sequer buscava uma lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei — por que me havia eu de curar disso? E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma deva pertencer à doença? Quem nos afirma que, a ser doença, a doença não era mais desejável, ou mais lógica, ou mais, do que a saúde? A ser a saúde preferível, porque era eu doente se não por naturalmente o ser, e se naturalmente o era, por que ir contra a Natureza, que para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?
Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia, apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a responsabilidade social — talhei nessa matéria de a estátua pensada da minha existência.
Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou aquele modo estético da vida. Do pouco que lia aprendi a extrair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava, apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo distante e errado, prolongar mais dentro de mim.
Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.
Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu hedonismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Lentamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensinei-me a ser insensível quer para os apelos dos instintos quer para as solicitações.
Reduzi ao mínimo o meu contato com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida. Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.
Do estudo da metafísica, das ciências, passei a ocupações de espírito mais violentas para o equilíbrio dos meus nervos. Gastei apavoradas noites debruçado sobre volumes de místicos e de cabalistas, que nunca tinha paciência para ler de todo, de outra maneira que não intermitentemente, trêmulo e. Os ritos e as razões dos Rosa-Cruz, a simbólica da Cabala e dos Templários, — sofri durante tempos a opressão de tudo isso. E encheram a febre dos meus dias especulações venenosas, da razão demoníaca da metafísica — a magia, a alquimia — extraindo um falso estímulo vital de sensação dolorosa e presciente de estar como que sempre à beira de saber um mistério supremo. Perdi-me pelos sistemas secundários, excitados, da metafísica, sistemas cheios de analogias perturbantes, de alçapões para a lucidez, grandes paisagens misteriosas onde reflexos de sobrenatural acordam mistérios nos contornos.
Envelheci pelas sensações… Gastei-me gerando os pensamentos… E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se denegrir [? ].
Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma.
Abandonei-me, mas não sei a quê.
Concentrei e limitei os meus desejos, para os poder requintar melhor.
Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido.
Hoje sou ascético na minha religião de mim. Uma chávena de café, um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas, o trabalho, o amor, até a beleza e a glória. Não tenho quase necessidade de estímulos. Ópio tenho-o eu na alma.
Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem saiba já em que penso, com que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada vez demais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.
Não faço teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso. Para meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que me importa o que ela é para os outros!
A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um a vida que me parece que lhes convém no meu sonho.
[252]
Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto, onde nada de ativo intervém, onde por fim até a nossa consciência de nós mesmos se atola num lodo — só aí, nesse morno e úmido não-ser, a abdicação da ação competentemente se atinge.
Não querer compreender, não analisar… Ver-se como à natureza; olhar para as suas impressões como para um campo — a sabedoria é isto.
[253]
o sagrado instinto de não ter teorias…
[254]
Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da tarde, me tem batido na alma, com uma violência súbita e estonteante, a estranhíssima presença da organização das coisas. Não são bem as coisas naturais que tanto me afetam, que tão poderosamente me trazem esta sensação: são antes os arruamentos, os letreiros, as pessoas vestidas e falando, os empregos, os jornais, a inteligência de tudo. Ou, antes, é o fato de que existem arruamentos, letreiros, empregos, homens, sociedade, tudo a entender-se e a seguir e a abrir caminhos.
Reparo no homem diretamente, e vejo que é tão inconsciente como um cão ou um gato; fala por uma inconsciência de outra ordem; organiza-se em sociedade por uma inconsciência de outra ordem, absolutamente inferior à que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social. E então, tanto ou mais que da existência de organismos, tanto ou mais que da existência de leis físicas rígidas e intelectuais, se me revela por uma luz evidente a inteligência que cria e impregna o mundo.
Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim entendeu o autor da frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores — falar e pensar são apenas novos instintos, menos seguros que os outros porque novos.
