Estamos todos habituados a considerar-nos como
primordialmente
realidades mentais, e aos outros como diretamente realidades físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós.
Pessoa - Livro do Desassossego
Era um outono de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do inverno traz de bom — verão duro findo, primavera por chegar, outono definindo-se em inverno enfim.
E no ar alto, por onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.
Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, é porque o lembro. O outono que tenho é o que perdi.
[321]
A oportunidade é como o dinheiro, que, aliás, não é mais que uma oportunidade. Para quem age, a oportunidade é um episódio da vontade, e a vontade não me interessa. Para quem, como eu, não age, a oportunidade é o canto da falta de sereias. Tem que ser desprezado com volúpia, arrumado alto para nenhum uso.
Ter ocasião de… Nesse campo se disporá a estátua da renúncia.
Ó largos campos ao sol, o espectador, por quem só sois vivos, contempla-vos da sombra.
O álcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a respiração do seu ritmo e se desfazem sorrindo, na ironia das cobras da espuma, na magnificência triste das penumbras.
[322]
Por fácil que seja, todo o gesto representa a violação de um segredo espiritual. Todo o gesto é um ato revolucionário; um exílio, talvez, da verdadeira dos nossos propósitos.
A ação é uma doença do pensamento, um cancro da imaginação. Agir é exilar-se. Toda a ação é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizá-lo. No mito de Jesus está escrito isto; Deus, ao tornar-se homem, não pode acabar senão pelo martírio. O supremo sonhador tem por filho o martírio supremo.
As sombras rotas das folhagens, o canto trêmulo das aves, os braços estendidos dos rios, trepidando ao sol o seu luzir fresco, as verduras, as papoulas, e a simplicidade das sensações — ao sentir isto, sinto dele saudades, como se ao senti-lo o não sentisse.
As horas, como um carro ao entardecer, regressam chiando pelas sombras dos meus pensamentos. Se ergo os olhos de sobre o meu pensamento, elas ardem-me do espetáculo do mundo.
Para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. Por isso realizar é não realizar. A vida está cheia de paradoxos como as rosas de espinhos.
Eu desejaria fazer a apoteose de uma incoerência nova, que ficasse sendo como que a constituição negativa da nova anarquia das almas. Compilar um digesto dos meus sonhos pareceu-me sempre que seria útil à humanidade. Por isso mesmo me abstive de o tentar. A ideia de que o que eu fazia pudesse ser aproveitável magoou-me, secou-me para mim.
Tenho quintas nos arredores da vida. Passo ausências de cidade da minha ação entre as árvores e as flores do meu devaneio. Ao meu retiro verde nem chegam os ecos da vida dos meus gestos. Durmo a minha memória como procissões infinitas. Nos cálices da minha meditação só bebo o sorriso do vinho louro; só o bebo com os olhos, fechando-os, e a Vida passa como uma vela longínqua.
Os dias de sol sabem-me ao que eu não tenho. O céu azul, e as nuvens brancas, as árvores, a flauta que ali falta — éclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos… Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos.
A academia vegetal dos silêncios… teu nome soando como as papoulas… os tanques… o meu regresso… o padre louco que endoideceu na missa. Estas recordações são dos meus sonhos… Não fecho os olhos mas não vejo nada… Não estão aqui as coisas que vejo… Águas…
Numa confusão de emaranhamentos, o verdor das árvores é parte do meu sangue. Bate-me a vida no coração distante. Eu não fui destinado à realidade, e a vida quis vir ter comigo.
A tortura do destino! Quem sabe se morrerei amanhã! Quem sabe se não vai acontecer-me hoje qualquer coisa de terrível para a minha alma! … Às vezes, quando penso nestas coisas, apavora-me a tirania suprema que nos faz ter de olhar puros não sabendo de que acontecimento a incerteza de mim vai ao encontro.
[323]
… a chuva caía ainda triste, mas mais branda, como num cansaço universal; não havia relâmpagos, e apenas, de vez em quando, com o som de já longe, um trovão curto resmungava duro, e às vezes como que se interrompia, cansado também. Como que subitamente, a chuva abrandou mais ainda. Um dos empregados abriu as janelas para a Rua dos Douradores. Um ar fresco, com restos mortos de quente, insinuou-se na sala grande. A voz do patrão Vasques soou alta no telefone do gabinete: “Então, ainda está a falar? ” E houve um som de fala seca e à parte — comentário, obsceno (adivinha-se), à menina longínqua.
[324]
Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos.
Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os senti-los se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se entrepenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstratas, e as abstratas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde.
[325]
Ficções do interlúdio, cobrindo coloridamente o marasmo e a desídia da nossa íntima descrença.
[326]
de resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante ação, nunca desaparecem o do contato com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
O Universo, a Vida — seja isso real ou ilusão — é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo — ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.
[327]
Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver senão suavidade.
[328]
Junta as mãos, põe-as entre as minhas e escuta-me, ó meu amor.
Eu quero, falando numa voz suave e embaladora, como a dum confessor que aconselha, dizer-te o quanto a ânsia de atingir fica aquém do que atingimos.
Quero rezar contigo, a minha voz com a tua atenção, a litania da desesperança.
Não há obra de artista que não pudera ter sido mais perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos versos tem que não pudessem ser melhores, poucos episódios que não pudessem ser mais intensos, e nunca o seu conjunto é tão perfeito que o não pudesse ser muitíssimo mais.
Ai do artista que repara para isto! que um dia pensa nisto! Nunca mais o seu trabalho é alegria, nem o seu sono sossego. É moço sem mocidade e envelhece descontente.
E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito.
Se eu bem pudesse compenetrar-me realmente de quanto a renúncia é bela, que dolorosamente feliz para sempre que eu seria!
Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os ouvidos com que me ouço falar alto não me escutam do mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço pensar palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar, tantas vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros quanto me não entenderão!
De quão complexas ininteligências não é feita a compreensão dos outros de nós.
A delícia de se ver compreendido, não a pode ter quem se quer não compreendido, porque só aos complexos e incompreendidos isso acontece; e os outros, os simples, aqueles que os outros podem compreender — esses nunca têm o desejo de serem compreendidos.
[329]
Pensaste já, ó Outra, quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas uma voz que está dentro de si.
As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte, volúpias que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar sentido profundo.
A voz dos regatos que interpretas, pura explicadora, a voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio — ah, meu amor ignoto, quanto tudo isso é nós e fantasias tudo de cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!
[330]
Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir.
Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente — quem excederá, ó, o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se!
Não conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar coisas que não são precisas? Sabes o sabor aos caminhos que, se os tomássemos esquecidos, era por erro que os tomaríamos? Que ato humano tem uma cor tão bela como os atos espúrios — que mentem à sua própria natureza e desmentem o que lhes é a intenção?
A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!
Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas.
Que santificados de Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram coroá-la de nunca a fazer. (Se fora imperfeita, vá. )
Quão mais bela a Gioconda desde que a não pudéssemos ver! E se quem a roubasse a queimasse, quão artista seria, que maior artista que aquele que a pintou!
Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem desse a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficou, sublimemente, só o meio de uma estrada.
A beleza das ruínas? O não servirem já para nada.
A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser — o absurdo, meu amor, o absurdo.
E eu que digo isto — por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo, — eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.
E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.
E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer…
[331]
Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas, mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.
Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida — uma relação visual, direi — entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajeto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é menos.
Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espetáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.
O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anônima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer.
[332]
O pasmo que me causa a minha capacidade para a angústia. Não sendo, de natureza, um metafísico, tenho passado dias de angústia aguda, física mesmo, com a indecisão dos problemas metafísicos e religiosos… Vi depressa que o que eu tinha por a solução do problema religioso era resolver um problema emotivo em termos da razão.
[333]
Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.
Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.
Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.
[334]
Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.
Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.
Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer — tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo. Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório! ) pousada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anônimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!
Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demônios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que pousa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente, com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direção do teto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia.
[335]
“Sentir é uma maçada. ” Estas palavras casuais de não sei que conviva à conversa de uns minutos, ficou-me sempre brilhando no chão da memória. A própria forma plebeia da frase lhe dá sal e pimenta.
[336]
Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nela. Já este modo de dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efetivamente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreender isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível para quem não conheça mais que um burro.
As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e tipos da compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser entendidas.
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de fato a suporto. E um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim.
[337]
O que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gêmeo do cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho um receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo me parece antecipadamente frusto. O insuportável tédio de todas estas caras, alvares de inteligência ou de falta dela, grotescas até à náusea de felizes ou infelizes, horrorosas porque existem, maré separada de coisas vivas que me são alheias…
[338]
Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias ou por acaso.
Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como diretamente realidades físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós. Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que me veem, como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia. Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há espelho que nos tire de nós mesmos. Era precisa outra alma, outra colocação do olhar e do pensar. Se eu fosse ator prolongado de cinema, ou gravasse em discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da minha consciência de mim.
Não sei se os outros serão assim, se a ciência da vida não consistirá essencialmente em ser tão alheio a si mesmo que instintivamente se consegue um alheamento e se pode participar da vida como estranho à consciência; ou se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de todo a bruteza de não serem senão eles, vivendo exteriormente por aquele milagre pelo qual as abelhas formam sociedades mais organizadas que qualquer nação, e as formigas comunicam entre si com uma fala de antenas mínimas que excede nos resultados a nossa complexa ausência de nos entendermos.
A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito demais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exatidão inscrita num livro irônico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras.
Tudo é complexo para quem pensa, e sem dúvida o pensamento o torna mais complexo por volúpia própria. Mas quem pensa tem a necessidade de justificar a sua abdicação com um vasto programa de compreender, exposto, como as razões dos que mentem, com todos os pormenores excessivos que descobrem, com o espalhar da terra, a raiz da mentira.
Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de qualquer modo, não importa porque, de qualquer modo, nada importa. Tudo isto, todas estas considerações extraviadas da rua larga, vegeta nos quintais dos deuses exclusos como trepadeiras longe das paredes. E sorrio, na noite em que concluo sem fim estas considerações sem engrenagem, da ironia vital que as faz surgir de uma alma humana, órfã, de antes dos astros, das grandes razões do Destino.
[339]
Paira-me à superfície do cansaço qualquer coisa de áureo que há sobre as águas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique esta imagem, ou este símbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é que vejo, como se de fato visse, um sol por trás de montes, dando raios perdidos sobre o lago que os recebe a ouro escuro.
Um dos malefícios de pensar é ver quando se está pensando. Os que pensam com o raciocínio estão distraídos, os que pensam com a emoção estão dormindo, os que pensam com a vontade estão mortos. Eu, porém, penso com a imaginação, e tudo quanto deveria ser em mim ou razão, ou mágoa, ou impulso, se me reduz a qualquer coisa indiferente e distante, como este lago porto entre rochedos onde o último do sol paira desalongadamente.
Porque parei, estremeceram as águas. Porque refleti, o sol recolheu-se. Cerro os olhos lentos e cheios de sono, e não há dentro de mim senão uma região lacustre onde a noite começa a deixar de ser dia num reflexo castanho escuro de águas de onde as algas surgem.
Porque escrevi, nada disse. Minha impressão é que o que existe é sempre em outra região, além de montes, e que há grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos.
Cessei, como o sol na minha paisagem. Não fica, do que foi dito ou visto, senão uma noite já fechada, cheia de brilho morto de lagos, numa planície sem patos bravos, morta, fluida, úmida e sinistra.
[340]
Não acredito na paisagem. Sim. Não o digo porque creia no “a paisagem é um estado de alma” do Amiel, um dos bons momentos verbais da mais insuportável interiorice. Digo-o porque não creio.
[341]
Na minha alma ignóbil e profunda registro, dia a dia, as impressões que formam a substância externa da minha consciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me desertam desde que as escrevo, e erram, independentes de mim, por encostas e relvados de imagens, por áleas de conceitos, por azinhagas de confusões. Isto de nada me serve, pois nada me serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo, como quem respira melhor sem que a doença haja passado.
Há quem, estando distraído, escreva riscos e nomes absurdos no mata-borrão de cantos entalados. Estas páginas são os rabiscos da minha inconsciência intelectual de mim. Traço-as numa modorra de me sentir, como um gato ao sol, e releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.
Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra.
Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias [d]o meu palácio ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre os juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o resto desdentado das paredes recorra negro contra o céu de azul escuro esbranquiçado a amarelo de leite.
Distingo-me a esfinges. E do regaço da rainha que me falta cai, como um episódio do bordado inútil, o novelo esquecido da minha alma. Rola para debaixo do contador com embutidos, e há aquilo em mim que o segue como olhos até que se perde num grande horror de túmulo e de fim.
[342]
Nunca durmo: vivo e sonho, ou antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz, se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou desperto, se não estou a despertar quando durmo.
A vida é um novelo que alguém emaranhou. Há um sentido nela, se estiver desenrolada e posta ao comprido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, é um problema sem novelo próprio, um embrulhar-se sem onde.
Sinto isto, que depois escreverei, pois que vou já sonhando as frases a dizer, quando, através da noite de meio-dormir, sinto, junto com as paisagens de sonhos vagos, o ruído da chuva lá fora, a tornarmos mais vagos ainda. São adivinhas do vácuo, trêmulas de abismo, e através delas se escoa, inútil, a plangência externa da chuva constante, minúcia abundante da paisagem do ouvido. Esperança? Nada. Do céu invisível desce em som a mágoa água que vento alça. Continuo dormindo.
Era, sem dúvida, nas alamedas do parque que se passou a tragédia de que resultou a vida. Eram dois e belos e desejavam ser outra coisa; o amor tardava-lhes no tédio do futuro, e a saudade do que haveria de ser vinha já sendo filha do amor que não tinham tido. Assim, ao luar dos bosques próximos, pois através deles se coava a lua, passeavam, mãos dadas, sem desejos nem esperanças, através do deserto próprio das áleas abandonadas. Eram crianças inteiramente, pois que o não eram em verdade. De álea em álea, silhuetas entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele cenário de ninguém. E assim se sumiram para o lado dos tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruído da vaga chuva que cessa é o dos repuxos de para onde iam. Sou o amor que eles tiveram e por isso os sei ouvir na noite em que não durmo, e também sei viver infeliz.
[343]
Um dia (zig-zag)
Não ter sido Madame de harém! Que pena tenho de mim por me não ter acontecido isso!
Afinal deste dia fica o que de ontem ficou e ficará de amanhã: a ânsia insaciável e inúmera de ser sempre o mesmo e outro.
Por degraus de sonhos e cansaços meus desce da tua irrealidade, desce e vem substituir o mundo.
[344]
Glorificação dos estéreis
Se dentre as mulheres da terra eu vier um dia a colher uma esposa, que a tua prece por mim seja esta — que de qualquer modo ela seja estéril. Mas pede também, se por mim rezares, que eu não venha nunca a tirar para mim essa esposa suposta.
Só a esterilidade é nobre e digna. Só o matar o que nunca foi é alto e perverso e absurdo.
[345]
Eu não sonho possuir-te. Para quê? Era traduzir para plebeu o meu sonho. Possuir um corpo é ser banal. Sonhar possuir um corpo é talvez pior, ainda que seja difícil sê-lo: é sonhar-se banal — horror supremo.
E já que queremos ser estéreis, sejamos também castos, porque nada pode haver de mais ignóbil e baixo do que, renegando da Natureza o que nela é fecundado, guardar vilãmente dela o que nos praz no que renegamos. Não há nobrezas aos bocados.
Sejamos castos como eremitas, puros como corpos sonhados, resignados a ser tudo isto, como freirinhas doidas…
Que o nosso amor seja uma oração… Unge-me de ver-te que eu farei dos meus momentos de te sonhar um rosário onde os meus tédios serão padre-nossos e as minhas angústias ave-marias…
Fiquemos assim eternamente como uma figura de homem em vitral defronte de uma figura de mulher noutro vitral… Entre nós, sombras cujos passos soam frios, a humanidade passando… Murmúrios de rezas, segredos de passarão entre nós… Umas vezes enche-se bem o ar de [. . . ] de incensos. Outras vezes, para este lado e para aquele uma figura de estátua rezará aspersões…
E nós sempre os mesmos vitrais, nas cores quando o Sol nos bata, nas linhas quando a noite caia… Os séculos não tocarão no nosso silêncio vítreo… Lá fora passarão civilizações, escacharão revoltas, turbilhonarão festas, correrão mansos quotidianos povos… E nós, ó meu amor irreal, teremos sempre o mesmo gesto inútil, a mesma existência falsa, e a mesma
Até [que] um dia, no fim de vários séculos de impérios, a Igreja finalmente rua e tudo acabe… Mas nós que não sabemos dela ficaremos ainda, não sei como, não sei em que espaço, não sei por que tempo, vitrais eternos, horas de ingênuo desenho pintado por um qualquer artista que dorme há muito sob um túmulo godo onde dois anjos de mãos postas gelam em mármore a ideia de morte.
[346]
As coisas sonhadas só têm o lado de cá… Não se lhes pode ver o outro lado… Não se pode andar à roda delas… O mal das coisas da vida é que as podemos ir olhando por todos os lados… As coisas de sonho só têm o lado que vemos… Têm amores só puros, como as nossas almas.
[347]
Carta para não mandar
Dispenso-a de comparecer na minha ideia de si.
A sua vida Isso não é o meu amor; é apenas a sua vida.
Amo-a como ao poente ou ao luar, com o desejo de que o momento fique, mas sem que seja meu nele mais que a sensação de tê-lo.
[348]
Nada pesa tanto como o afeto alheio — nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afeto; sendo uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprime; ambos nos buscam e procuram, nos não deixam sós.
O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando na vida ler as minhas emoções, viver o meu desprezo delas. Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria bastante, e mais, pois que são dele e nossas. Não há grande aventura como ter amado Lady Macbeth, com amor verdadeiro e direto; que tem que fazer que[m] assim amou senão, por descanso, não amar nesta vida ninguém?
Não sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a fazer, entre uma noite e outra noite, na companhia do universo inteiro. Sei que posso ler para me distrair. Considero a leitura como o modo mais simples de entreter esta, como outra, viagem; e, de vez em quando, ergo os olhos do livro onde estou sentindo verdadeiramente, e vejo, como estrangeiro, a paisagem que foge campos, cidades, homens e mulheres, afeições e saudades —, e tudo isso não é mais para mim do que um episódio do meu repouso, uma distração inerte em que descanso os olhos das páginas demasiado lidas.
Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente. Se realizasse algum sonho, teria ciúmes dele, pois me haveria traído com o ter-se deixado realizar. Realizei tudo quanto quis, diz o débil, e é mentira; a verdade é que sonhou profeticamente tudo quanto a vida realizou dele. Nada realizamos. A vida atira-nos como uma pedra, e nós vamos dizendo no ar, “Aqui me vou mexendo”.
Seja o que for este interlúdio mimado sob o projetor do sol e as lantejoulas das estrelas, não faz mal decerto saber que ele é um interlúdio; se o que está para além das portas do teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos, e a peça nada tem com isso.
Por isso nunca me sinto tão próximo da verdade, tão sensivelmente iniciado, como quando nas raras vezes que vou ao teatro ou ao circo: sei então que enfim estou assistindo à perfeita figuração da vida. E os atores e as atrizes, os palhaços e os prestidigitadores são coisas importantes e fúteis, como o sol e a lua, o amor e a morte, a peste, a fome, a guerra na humanidade. Tudo é teatro. Ah, quero a verdade? Vou continuar o romance…
[349]
Amais vil de todas as necessidades — a da confidência, a da confissão. E a necessidade da alma de ser exterior.
Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos seus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos que digas, nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.
[350]
Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.
Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro da infância sentada entre brinquedos.
Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.
Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrônicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.
De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que há sempre uma que estará mais adiante, ainda que seja frações de milímetro. Um microscópio exageraria este deslocamento até o tornar quase inacreditável, impossível se não fosse real. E por que não há o microscópio de ter razão contra a má vista? São considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir.
[351]
Paciências
As tias velhas dos que as tiveram, nos serões a petróleo das casas vagas na província, entretinham a hora em que a criada dorme ao som crescente da chaleira [. . . ] a fazer paciências com cartas. Tem saudades em mim desse sossego inútil alguém que se coloca no meu lugar. Vem o chá e o baralho velho amontoa-se regular ao canto da mesa. O guarda-louça enorme escurece a sombra, na sala de jantar apenumbrada. Sua de sono a cara da criada apressada lentamente por acabar. Vejo isso tudo em mim com uma angústia e uma saudade independentes de ter relação com qualquer coisa. E, sem querer, ponho-me a considerar qual é o estado de espírito de quem faz paciências com cartas.
[352]
Não é nos largos campos ou nos jardins grandes que vejo chegar a primavera. É nas poucas árvores pobres de um largo pequeno da cidade. Ali a verdura destaca como uma dádiva e é alegre como uma boa tristeza.
Amo esses largos solitários, intercalados entre ruas de pouco trânsito, e eles mesmos sem mais trânsito que as ruas. São clareiras inúteis, coisas que esperam, entre tumultos longínquos. São de aldeia na cidade.
Passo por eles, subo qualquer das ruas suas afluentes, depois desço de novo essa rua, para a eles regressar. Visto do outro lado é diferente, mas a mesma paz deixa dourar de saudade súbita — sol no ocaso — o lado que não vira na ida.
Tudo é inútil, e eu o sinto como tal. Quanto vivi se me esqueceu como se o ouvira distraído. Quanto serei me não lembra como se o tivera vivido e esquecido.
Um ocaso de mágoa leve paira vago em meu torno. Tudo esfria, não porque esfrie, mas porque entrei numa rua estreita e o largo cessou.
[353]
A manhã, meio fria, meio morna, alava-se pelas casas raras das encostas no extremo da cidade. Uma névoa ligeira, cheia de despertar, esfarrapava-se, sem contornos, no adormecimento das encostas. (Não fazia frio, salvo em ter que recomeçar a vida. ) E tudo aquilo — toda esta frescura lenta da manhã leve, era análogo a uma alegria que ele nunca pudera ter.
O carro descia lentamente, a caminho das avenidas. À medida que se aproximava do maior aglomeramento das casas, uma sensação de perda tomava-lhe o espírito vagamente. A realidade humana começava a despontar.
Nestas horas matinais, em que a sombra já desapareceu, mas não ainda o seu peso leve, o espírito que se deixa levar pelos incitamentos da hora apetece a chegada e o porto antigo ao sol. Alegraria, não que o instante se fixasse, como nos momentos solenes da paisagem, ou no luar calmo sobre o rio, mas que a vida tivesse sido outra, de modo que este momento pudesse ter um outro sabor que se lhe reconhece mais próprio.
Adelgaçava-se mais a névoa incerta. O sol invadia mais as coisas. Os sons da vida acentuavam-se no arredor.
Seria certo, por uma hora como estas, não chegar nunca à realidade humana para que a nossa vida se destina. Ficar suspenso, entre a névoa e a manhã, imponderavelmente, não em espírito, mas em corpo espiritualizado, em vida real alada, aprazia, mais do que outra coisa, ao nosso desejo de buscar um refúgio, mesmo sem razão para o buscar.
Sentir tudo sutilmente torna-nos indiferentes, salvo para o que se não pode obter — sensações por chegar a uma alma ainda em embrião para elas, atividades humanas congruentes com sentir profundamente, paixões e emoções perdidas entre conseguimentos de outras espécies.
As árvores, no seu alinhamento pelas avenidas, eram independentes de tudo isto.
A hora acabou na cidade, como a encosta do outro lado do rio quando o barco toca no cais. Ele trouxe consigo, enquanto não tocou na margem, a paisagem da outra banda pegada à amurada; ela despegou-se quando se deu o som da amurada a tocar nas pedras. O homem de calças arregaçadas sobre o joelho deitou um grampo ao cabo, e foi definitivo e concludente o seu gesto natural. Terminou metafisicamente na impossibilidade na nossa alma de continuarmos a ter a alegria de uma angústia duvidosa. Os garotos no cais olhavam para nós como para qualquer outra pessoa, que não tivesse aquela emoção imprópria para a parte útil dos embarques.
[354]
O calor, como uma roupa invisível, dá vontade de o tirar.
[355]
Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar.
Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.
[356]
Depois que o calor cessou, e o princípio leve da chuva cresceu para ouvir-se, ficou no ar uma tranquilidade que o ar do calor não tinha, uma nova paz em que a água punha uma brisa sua. Tão clara era a alegria desta chuva branda, sem tempestade nem escuridão, que aqueles mesmos, que eram quase todos, que não tinham guarda-chuva ou roupa de defesa, estavam rindo a falar no seu passo rápido pela rua lustrosa.
Num intervalo de indolência cheguei à janela aberta do escritório — o calor a fizera abrir, a chuva não a fizera fechar — e contemplei com a atenção intensa e indiferente, que é o meu modo, aquilo mesmo que acabo de descrever com justeza antes de o ter visto. Sim, lá ia a alegria aos dois banais, falando a sorrir pela chuva miúda, com passos mais rápidos que apressados, na claridade limpa do dia que se velara.
Mas, de repente, da surpresa de uma esquina que já lá estava, rodou para a minha vista um homem velho e mesquinho, pobre e não humilde, que seguia impaciente sob a chuva que havia abrandado. Esse, que por certo não tinha fito, tinha ao menos impaciência. Olhei-o com a atenção, não já desatenta, que se dá às coisas, mas definidora, que se dá aos símbolos. Era o símbolo de ninguém; por isso tinha pressa.
Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, é porque o lembro. O outono que tenho é o que perdi.
[321]
A oportunidade é como o dinheiro, que, aliás, não é mais que uma oportunidade. Para quem age, a oportunidade é um episódio da vontade, e a vontade não me interessa. Para quem, como eu, não age, a oportunidade é o canto da falta de sereias. Tem que ser desprezado com volúpia, arrumado alto para nenhum uso.
Ter ocasião de… Nesse campo se disporá a estátua da renúncia.
Ó largos campos ao sol, o espectador, por quem só sois vivos, contempla-vos da sombra.
O álcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a respiração do seu ritmo e se desfazem sorrindo, na ironia das cobras da espuma, na magnificência triste das penumbras.
[322]
Por fácil que seja, todo o gesto representa a violação de um segredo espiritual. Todo o gesto é um ato revolucionário; um exílio, talvez, da verdadeira dos nossos propósitos.
A ação é uma doença do pensamento, um cancro da imaginação. Agir é exilar-se. Toda a ação é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizá-lo. No mito de Jesus está escrito isto; Deus, ao tornar-se homem, não pode acabar senão pelo martírio. O supremo sonhador tem por filho o martírio supremo.
As sombras rotas das folhagens, o canto trêmulo das aves, os braços estendidos dos rios, trepidando ao sol o seu luzir fresco, as verduras, as papoulas, e a simplicidade das sensações — ao sentir isto, sinto dele saudades, como se ao senti-lo o não sentisse.
As horas, como um carro ao entardecer, regressam chiando pelas sombras dos meus pensamentos. Se ergo os olhos de sobre o meu pensamento, elas ardem-me do espetáculo do mundo.
Para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. Por isso realizar é não realizar. A vida está cheia de paradoxos como as rosas de espinhos.
Eu desejaria fazer a apoteose de uma incoerência nova, que ficasse sendo como que a constituição negativa da nova anarquia das almas. Compilar um digesto dos meus sonhos pareceu-me sempre que seria útil à humanidade. Por isso mesmo me abstive de o tentar. A ideia de que o que eu fazia pudesse ser aproveitável magoou-me, secou-me para mim.
Tenho quintas nos arredores da vida. Passo ausências de cidade da minha ação entre as árvores e as flores do meu devaneio. Ao meu retiro verde nem chegam os ecos da vida dos meus gestos. Durmo a minha memória como procissões infinitas. Nos cálices da minha meditação só bebo o sorriso do vinho louro; só o bebo com os olhos, fechando-os, e a Vida passa como uma vela longínqua.
Os dias de sol sabem-me ao que eu não tenho. O céu azul, e as nuvens brancas, as árvores, a flauta que ali falta — éclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos… Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos.
A academia vegetal dos silêncios… teu nome soando como as papoulas… os tanques… o meu regresso… o padre louco que endoideceu na missa. Estas recordações são dos meus sonhos… Não fecho os olhos mas não vejo nada… Não estão aqui as coisas que vejo… Águas…
Numa confusão de emaranhamentos, o verdor das árvores é parte do meu sangue. Bate-me a vida no coração distante. Eu não fui destinado à realidade, e a vida quis vir ter comigo.
A tortura do destino! Quem sabe se morrerei amanhã! Quem sabe se não vai acontecer-me hoje qualquer coisa de terrível para a minha alma! … Às vezes, quando penso nestas coisas, apavora-me a tirania suprema que nos faz ter de olhar puros não sabendo de que acontecimento a incerteza de mim vai ao encontro.
[323]
… a chuva caía ainda triste, mas mais branda, como num cansaço universal; não havia relâmpagos, e apenas, de vez em quando, com o som de já longe, um trovão curto resmungava duro, e às vezes como que se interrompia, cansado também. Como que subitamente, a chuva abrandou mais ainda. Um dos empregados abriu as janelas para a Rua dos Douradores. Um ar fresco, com restos mortos de quente, insinuou-se na sala grande. A voz do patrão Vasques soou alta no telefone do gabinete: “Então, ainda está a falar? ” E houve um som de fala seca e à parte — comentário, obsceno (adivinha-se), à menina longínqua.
[324]
Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos.
Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os senti-los se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se entrepenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstratas, e as abstratas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde.
[325]
Ficções do interlúdio, cobrindo coloridamente o marasmo e a desídia da nossa íntima descrença.
[326]
de resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante ação, nunca desaparecem o do contato com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
O Universo, a Vida — seja isso real ou ilusão — é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo — ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.
[327]
Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver senão suavidade.
[328]
Junta as mãos, põe-as entre as minhas e escuta-me, ó meu amor.
Eu quero, falando numa voz suave e embaladora, como a dum confessor que aconselha, dizer-te o quanto a ânsia de atingir fica aquém do que atingimos.
Quero rezar contigo, a minha voz com a tua atenção, a litania da desesperança.
Não há obra de artista que não pudera ter sido mais perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos versos tem que não pudessem ser melhores, poucos episódios que não pudessem ser mais intensos, e nunca o seu conjunto é tão perfeito que o não pudesse ser muitíssimo mais.
Ai do artista que repara para isto! que um dia pensa nisto! Nunca mais o seu trabalho é alegria, nem o seu sono sossego. É moço sem mocidade e envelhece descontente.
E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito.
Se eu bem pudesse compenetrar-me realmente de quanto a renúncia é bela, que dolorosamente feliz para sempre que eu seria!
Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os ouvidos com que me ouço falar alto não me escutam do mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço pensar palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar, tantas vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros quanto me não entenderão!
De quão complexas ininteligências não é feita a compreensão dos outros de nós.
A delícia de se ver compreendido, não a pode ter quem se quer não compreendido, porque só aos complexos e incompreendidos isso acontece; e os outros, os simples, aqueles que os outros podem compreender — esses nunca têm o desejo de serem compreendidos.
[329]
Pensaste já, ó Outra, quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas uma voz que está dentro de si.
As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte, volúpias que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar sentido profundo.
A voz dos regatos que interpretas, pura explicadora, a voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio — ah, meu amor ignoto, quanto tudo isso é nós e fantasias tudo de cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!
[330]
Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir.
Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente — quem excederá, ó, o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se!
Não conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar coisas que não são precisas? Sabes o sabor aos caminhos que, se os tomássemos esquecidos, era por erro que os tomaríamos? Que ato humano tem uma cor tão bela como os atos espúrios — que mentem à sua própria natureza e desmentem o que lhes é a intenção?
A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!
Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas.
Que santificados de Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram coroá-la de nunca a fazer. (Se fora imperfeita, vá. )
Quão mais bela a Gioconda desde que a não pudéssemos ver! E se quem a roubasse a queimasse, quão artista seria, que maior artista que aquele que a pintou!
Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem desse a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficou, sublimemente, só o meio de uma estrada.
A beleza das ruínas? O não servirem já para nada.
A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser — o absurdo, meu amor, o absurdo.
E eu que digo isto — por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo, — eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.
E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.
E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer…
[331]
Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas, mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.
Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida — uma relação visual, direi — entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajeto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é menos.
Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espetáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.
O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anônima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer.
[332]
O pasmo que me causa a minha capacidade para a angústia. Não sendo, de natureza, um metafísico, tenho passado dias de angústia aguda, física mesmo, com a indecisão dos problemas metafísicos e religiosos… Vi depressa que o que eu tinha por a solução do problema religioso era resolver um problema emotivo em termos da razão.
[333]
Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.
Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.
Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.
[334]
Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.
Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.
Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer — tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo. Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório! ) pousada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anônimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!
Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demônios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que pousa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente, com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direção do teto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia.
[335]
“Sentir é uma maçada. ” Estas palavras casuais de não sei que conviva à conversa de uns minutos, ficou-me sempre brilhando no chão da memória. A própria forma plebeia da frase lhe dá sal e pimenta.
[336]
Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nela. Já este modo de dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efetivamente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreender isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível para quem não conheça mais que um burro.
As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e tipos da compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser entendidas.
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de fato a suporto. E um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim.
[337]
O que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gêmeo do cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho um receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo me parece antecipadamente frusto. O insuportável tédio de todas estas caras, alvares de inteligência ou de falta dela, grotescas até à náusea de felizes ou infelizes, horrorosas porque existem, maré separada de coisas vivas que me são alheias…
[338]
Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias ou por acaso.
Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como diretamente realidades físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós. Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que me veem, como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia. Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há espelho que nos tire de nós mesmos. Era precisa outra alma, outra colocação do olhar e do pensar. Se eu fosse ator prolongado de cinema, ou gravasse em discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da minha consciência de mim.
Não sei se os outros serão assim, se a ciência da vida não consistirá essencialmente em ser tão alheio a si mesmo que instintivamente se consegue um alheamento e se pode participar da vida como estranho à consciência; ou se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de todo a bruteza de não serem senão eles, vivendo exteriormente por aquele milagre pelo qual as abelhas formam sociedades mais organizadas que qualquer nação, e as formigas comunicam entre si com uma fala de antenas mínimas que excede nos resultados a nossa complexa ausência de nos entendermos.
A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito demais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exatidão inscrita num livro irônico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras.
Tudo é complexo para quem pensa, e sem dúvida o pensamento o torna mais complexo por volúpia própria. Mas quem pensa tem a necessidade de justificar a sua abdicação com um vasto programa de compreender, exposto, como as razões dos que mentem, com todos os pormenores excessivos que descobrem, com o espalhar da terra, a raiz da mentira.
Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de qualquer modo, não importa porque, de qualquer modo, nada importa. Tudo isto, todas estas considerações extraviadas da rua larga, vegeta nos quintais dos deuses exclusos como trepadeiras longe das paredes. E sorrio, na noite em que concluo sem fim estas considerações sem engrenagem, da ironia vital que as faz surgir de uma alma humana, órfã, de antes dos astros, das grandes razões do Destino.
[339]
Paira-me à superfície do cansaço qualquer coisa de áureo que há sobre as águas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique esta imagem, ou este símbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é que vejo, como se de fato visse, um sol por trás de montes, dando raios perdidos sobre o lago que os recebe a ouro escuro.
Um dos malefícios de pensar é ver quando se está pensando. Os que pensam com o raciocínio estão distraídos, os que pensam com a emoção estão dormindo, os que pensam com a vontade estão mortos. Eu, porém, penso com a imaginação, e tudo quanto deveria ser em mim ou razão, ou mágoa, ou impulso, se me reduz a qualquer coisa indiferente e distante, como este lago porto entre rochedos onde o último do sol paira desalongadamente.
Porque parei, estremeceram as águas. Porque refleti, o sol recolheu-se. Cerro os olhos lentos e cheios de sono, e não há dentro de mim senão uma região lacustre onde a noite começa a deixar de ser dia num reflexo castanho escuro de águas de onde as algas surgem.
Porque escrevi, nada disse. Minha impressão é que o que existe é sempre em outra região, além de montes, e que há grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos.
Cessei, como o sol na minha paisagem. Não fica, do que foi dito ou visto, senão uma noite já fechada, cheia de brilho morto de lagos, numa planície sem patos bravos, morta, fluida, úmida e sinistra.
[340]
Não acredito na paisagem. Sim. Não o digo porque creia no “a paisagem é um estado de alma” do Amiel, um dos bons momentos verbais da mais insuportável interiorice. Digo-o porque não creio.
[341]
Na minha alma ignóbil e profunda registro, dia a dia, as impressões que formam a substância externa da minha consciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me desertam desde que as escrevo, e erram, independentes de mim, por encostas e relvados de imagens, por áleas de conceitos, por azinhagas de confusões. Isto de nada me serve, pois nada me serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo, como quem respira melhor sem que a doença haja passado.
Há quem, estando distraído, escreva riscos e nomes absurdos no mata-borrão de cantos entalados. Estas páginas são os rabiscos da minha inconsciência intelectual de mim. Traço-as numa modorra de me sentir, como um gato ao sol, e releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.
Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra.
Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias [d]o meu palácio ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre os juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o resto desdentado das paredes recorra negro contra o céu de azul escuro esbranquiçado a amarelo de leite.
Distingo-me a esfinges. E do regaço da rainha que me falta cai, como um episódio do bordado inútil, o novelo esquecido da minha alma. Rola para debaixo do contador com embutidos, e há aquilo em mim que o segue como olhos até que se perde num grande horror de túmulo e de fim.
[342]
Nunca durmo: vivo e sonho, ou antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz, se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou desperto, se não estou a despertar quando durmo.
A vida é um novelo que alguém emaranhou. Há um sentido nela, se estiver desenrolada e posta ao comprido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, é um problema sem novelo próprio, um embrulhar-se sem onde.
Sinto isto, que depois escreverei, pois que vou já sonhando as frases a dizer, quando, através da noite de meio-dormir, sinto, junto com as paisagens de sonhos vagos, o ruído da chuva lá fora, a tornarmos mais vagos ainda. São adivinhas do vácuo, trêmulas de abismo, e através delas se escoa, inútil, a plangência externa da chuva constante, minúcia abundante da paisagem do ouvido. Esperança? Nada. Do céu invisível desce em som a mágoa água que vento alça. Continuo dormindo.
Era, sem dúvida, nas alamedas do parque que se passou a tragédia de que resultou a vida. Eram dois e belos e desejavam ser outra coisa; o amor tardava-lhes no tédio do futuro, e a saudade do que haveria de ser vinha já sendo filha do amor que não tinham tido. Assim, ao luar dos bosques próximos, pois através deles se coava a lua, passeavam, mãos dadas, sem desejos nem esperanças, através do deserto próprio das áleas abandonadas. Eram crianças inteiramente, pois que o não eram em verdade. De álea em álea, silhuetas entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele cenário de ninguém. E assim se sumiram para o lado dos tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruído da vaga chuva que cessa é o dos repuxos de para onde iam. Sou o amor que eles tiveram e por isso os sei ouvir na noite em que não durmo, e também sei viver infeliz.
[343]
Um dia (zig-zag)
Não ter sido Madame de harém! Que pena tenho de mim por me não ter acontecido isso!
Afinal deste dia fica o que de ontem ficou e ficará de amanhã: a ânsia insaciável e inúmera de ser sempre o mesmo e outro.
Por degraus de sonhos e cansaços meus desce da tua irrealidade, desce e vem substituir o mundo.
[344]
Glorificação dos estéreis
Se dentre as mulheres da terra eu vier um dia a colher uma esposa, que a tua prece por mim seja esta — que de qualquer modo ela seja estéril. Mas pede também, se por mim rezares, que eu não venha nunca a tirar para mim essa esposa suposta.
Só a esterilidade é nobre e digna. Só o matar o que nunca foi é alto e perverso e absurdo.
[345]
Eu não sonho possuir-te. Para quê? Era traduzir para plebeu o meu sonho. Possuir um corpo é ser banal. Sonhar possuir um corpo é talvez pior, ainda que seja difícil sê-lo: é sonhar-se banal — horror supremo.
E já que queremos ser estéreis, sejamos também castos, porque nada pode haver de mais ignóbil e baixo do que, renegando da Natureza o que nela é fecundado, guardar vilãmente dela o que nos praz no que renegamos. Não há nobrezas aos bocados.
Sejamos castos como eremitas, puros como corpos sonhados, resignados a ser tudo isto, como freirinhas doidas…
Que o nosso amor seja uma oração… Unge-me de ver-te que eu farei dos meus momentos de te sonhar um rosário onde os meus tédios serão padre-nossos e as minhas angústias ave-marias…
Fiquemos assim eternamente como uma figura de homem em vitral defronte de uma figura de mulher noutro vitral… Entre nós, sombras cujos passos soam frios, a humanidade passando… Murmúrios de rezas, segredos de passarão entre nós… Umas vezes enche-se bem o ar de [. . . ] de incensos. Outras vezes, para este lado e para aquele uma figura de estátua rezará aspersões…
E nós sempre os mesmos vitrais, nas cores quando o Sol nos bata, nas linhas quando a noite caia… Os séculos não tocarão no nosso silêncio vítreo… Lá fora passarão civilizações, escacharão revoltas, turbilhonarão festas, correrão mansos quotidianos povos… E nós, ó meu amor irreal, teremos sempre o mesmo gesto inútil, a mesma existência falsa, e a mesma
Até [que] um dia, no fim de vários séculos de impérios, a Igreja finalmente rua e tudo acabe… Mas nós que não sabemos dela ficaremos ainda, não sei como, não sei em que espaço, não sei por que tempo, vitrais eternos, horas de ingênuo desenho pintado por um qualquer artista que dorme há muito sob um túmulo godo onde dois anjos de mãos postas gelam em mármore a ideia de morte.
[346]
As coisas sonhadas só têm o lado de cá… Não se lhes pode ver o outro lado… Não se pode andar à roda delas… O mal das coisas da vida é que as podemos ir olhando por todos os lados… As coisas de sonho só têm o lado que vemos… Têm amores só puros, como as nossas almas.
[347]
Carta para não mandar
Dispenso-a de comparecer na minha ideia de si.
A sua vida Isso não é o meu amor; é apenas a sua vida.
Amo-a como ao poente ou ao luar, com o desejo de que o momento fique, mas sem que seja meu nele mais que a sensação de tê-lo.
[348]
Nada pesa tanto como o afeto alheio — nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afeto; sendo uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprime; ambos nos buscam e procuram, nos não deixam sós.
O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando na vida ler as minhas emoções, viver o meu desprezo delas. Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria bastante, e mais, pois que são dele e nossas. Não há grande aventura como ter amado Lady Macbeth, com amor verdadeiro e direto; que tem que fazer que[m] assim amou senão, por descanso, não amar nesta vida ninguém?
Não sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a fazer, entre uma noite e outra noite, na companhia do universo inteiro. Sei que posso ler para me distrair. Considero a leitura como o modo mais simples de entreter esta, como outra, viagem; e, de vez em quando, ergo os olhos do livro onde estou sentindo verdadeiramente, e vejo, como estrangeiro, a paisagem que foge campos, cidades, homens e mulheres, afeições e saudades —, e tudo isso não é mais para mim do que um episódio do meu repouso, uma distração inerte em que descanso os olhos das páginas demasiado lidas.
Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente. Se realizasse algum sonho, teria ciúmes dele, pois me haveria traído com o ter-se deixado realizar. Realizei tudo quanto quis, diz o débil, e é mentira; a verdade é que sonhou profeticamente tudo quanto a vida realizou dele. Nada realizamos. A vida atira-nos como uma pedra, e nós vamos dizendo no ar, “Aqui me vou mexendo”.
Seja o que for este interlúdio mimado sob o projetor do sol e as lantejoulas das estrelas, não faz mal decerto saber que ele é um interlúdio; se o que está para além das portas do teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos, e a peça nada tem com isso.
Por isso nunca me sinto tão próximo da verdade, tão sensivelmente iniciado, como quando nas raras vezes que vou ao teatro ou ao circo: sei então que enfim estou assistindo à perfeita figuração da vida. E os atores e as atrizes, os palhaços e os prestidigitadores são coisas importantes e fúteis, como o sol e a lua, o amor e a morte, a peste, a fome, a guerra na humanidade. Tudo é teatro. Ah, quero a verdade? Vou continuar o romance…
[349]
Amais vil de todas as necessidades — a da confidência, a da confissão. E a necessidade da alma de ser exterior.
Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos seus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos que digas, nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.
[350]
Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.
Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro da infância sentada entre brinquedos.
Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.
Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrônicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.
De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que há sempre uma que estará mais adiante, ainda que seja frações de milímetro. Um microscópio exageraria este deslocamento até o tornar quase inacreditável, impossível se não fosse real. E por que não há o microscópio de ter razão contra a má vista? São considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir.
[351]
Paciências
As tias velhas dos que as tiveram, nos serões a petróleo das casas vagas na província, entretinham a hora em que a criada dorme ao som crescente da chaleira [. . . ] a fazer paciências com cartas. Tem saudades em mim desse sossego inútil alguém que se coloca no meu lugar. Vem o chá e o baralho velho amontoa-se regular ao canto da mesa. O guarda-louça enorme escurece a sombra, na sala de jantar apenumbrada. Sua de sono a cara da criada apressada lentamente por acabar. Vejo isso tudo em mim com uma angústia e uma saudade independentes de ter relação com qualquer coisa. E, sem querer, ponho-me a considerar qual é o estado de espírito de quem faz paciências com cartas.
[352]
Não é nos largos campos ou nos jardins grandes que vejo chegar a primavera. É nas poucas árvores pobres de um largo pequeno da cidade. Ali a verdura destaca como uma dádiva e é alegre como uma boa tristeza.
Amo esses largos solitários, intercalados entre ruas de pouco trânsito, e eles mesmos sem mais trânsito que as ruas. São clareiras inúteis, coisas que esperam, entre tumultos longínquos. São de aldeia na cidade.
Passo por eles, subo qualquer das ruas suas afluentes, depois desço de novo essa rua, para a eles regressar. Visto do outro lado é diferente, mas a mesma paz deixa dourar de saudade súbita — sol no ocaso — o lado que não vira na ida.
Tudo é inútil, e eu o sinto como tal. Quanto vivi se me esqueceu como se o ouvira distraído. Quanto serei me não lembra como se o tivera vivido e esquecido.
Um ocaso de mágoa leve paira vago em meu torno. Tudo esfria, não porque esfrie, mas porque entrei numa rua estreita e o largo cessou.
[353]
A manhã, meio fria, meio morna, alava-se pelas casas raras das encostas no extremo da cidade. Uma névoa ligeira, cheia de despertar, esfarrapava-se, sem contornos, no adormecimento das encostas. (Não fazia frio, salvo em ter que recomeçar a vida. ) E tudo aquilo — toda esta frescura lenta da manhã leve, era análogo a uma alegria que ele nunca pudera ter.
O carro descia lentamente, a caminho das avenidas. À medida que se aproximava do maior aglomeramento das casas, uma sensação de perda tomava-lhe o espírito vagamente. A realidade humana começava a despontar.
Nestas horas matinais, em que a sombra já desapareceu, mas não ainda o seu peso leve, o espírito que se deixa levar pelos incitamentos da hora apetece a chegada e o porto antigo ao sol. Alegraria, não que o instante se fixasse, como nos momentos solenes da paisagem, ou no luar calmo sobre o rio, mas que a vida tivesse sido outra, de modo que este momento pudesse ter um outro sabor que se lhe reconhece mais próprio.
Adelgaçava-se mais a névoa incerta. O sol invadia mais as coisas. Os sons da vida acentuavam-se no arredor.
Seria certo, por uma hora como estas, não chegar nunca à realidade humana para que a nossa vida se destina. Ficar suspenso, entre a névoa e a manhã, imponderavelmente, não em espírito, mas em corpo espiritualizado, em vida real alada, aprazia, mais do que outra coisa, ao nosso desejo de buscar um refúgio, mesmo sem razão para o buscar.
Sentir tudo sutilmente torna-nos indiferentes, salvo para o que se não pode obter — sensações por chegar a uma alma ainda em embrião para elas, atividades humanas congruentes com sentir profundamente, paixões e emoções perdidas entre conseguimentos de outras espécies.
As árvores, no seu alinhamento pelas avenidas, eram independentes de tudo isto.
A hora acabou na cidade, como a encosta do outro lado do rio quando o barco toca no cais. Ele trouxe consigo, enquanto não tocou na margem, a paisagem da outra banda pegada à amurada; ela despegou-se quando se deu o som da amurada a tocar nas pedras. O homem de calças arregaçadas sobre o joelho deitou um grampo ao cabo, e foi definitivo e concludente o seu gesto natural. Terminou metafisicamente na impossibilidade na nossa alma de continuarmos a ter a alegria de uma angústia duvidosa. Os garotos no cais olhavam para nós como para qualquer outra pessoa, que não tivesse aquela emoção imprópria para a parte útil dos embarques.
[354]
O calor, como uma roupa invisível, dá vontade de o tirar.
[355]
Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar.
Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.
[356]
Depois que o calor cessou, e o princípio leve da chuva cresceu para ouvir-se, ficou no ar uma tranquilidade que o ar do calor não tinha, uma nova paz em que a água punha uma brisa sua. Tão clara era a alegria desta chuva branda, sem tempestade nem escuridão, que aqueles mesmos, que eram quase todos, que não tinham guarda-chuva ou roupa de defesa, estavam rindo a falar no seu passo rápido pela rua lustrosa.
Num intervalo de indolência cheguei à janela aberta do escritório — o calor a fizera abrir, a chuva não a fizera fechar — e contemplei com a atenção intensa e indiferente, que é o meu modo, aquilo mesmo que acabo de descrever com justeza antes de o ter visto. Sim, lá ia a alegria aos dois banais, falando a sorrir pela chuva miúda, com passos mais rápidos que apressados, na claridade limpa do dia que se velara.
Mas, de repente, da surpresa de uma esquina que já lá estava, rodou para a minha vista um homem velho e mesquinho, pobre e não humilde, que seguia impaciente sob a chuva que havia abrandado. Esse, que por certo não tinha fito, tinha ao menos impaciência. Olhei-o com a atenção, não já desatenta, que se dá às coisas, mas definidora, que se dá aos símbolos. Era o símbolo de ninguém; por isso tinha pressa.
