Mas eu sofro em coisas tão reles, ferem-me coisas tão banais que não ouso
insultar
com essa hipótese a hipótese de que eu possa ter gênio.
Pessoa - Livro do Desassossego
Queixo-me, como uma criada doente.
Ralo-me como uma dona de casa.
A minha vida é inteiramente fútil e inteiramente triste.
[399]
Como Diógenes a Alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol. Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los. O que achei, mais valeria tê-lo realmente achado. O sonho
Tenho construído em passeio frases perfeitas de que depois me não lembro em casa. A poesia inefável dessas frases não sei se será parte do que foram, se parte de não terem nunca sido.
Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco, como linha reta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha reta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo ativamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejei sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tato; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.
Nunca soube se era demais a minha sensibilidade para a minha inteligência, ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma ou outra, ou foi a terceira que tardou.
Dos sonhadores de ideais [? ] — socialistas, altruístas, humanitários de toda espécie — tenho a náusea física, do estômago. São os idealistas sem ideal. São os pensadores sem pensamento. Querem a superfície da vida por uma fatalidade de lixo, que boia à tona de água e se julga belo, porque as conchas dispersas boiam à tona de água também.
[400]
Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.
Como quem visita um lugar onde passou a juventude consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar da minha vida em que era meu uso fumá-los. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.
Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso de recordações que os estremece. A infância! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre de soldados de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao meu sabor a minha felicidade passada, a minha infância ida, e pertenço voluptuosamente à suavidade da minha dor.
Nem por simples é menos solene este meu ritual do paladar.
Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstrói momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter paladar. Por isso mais em grupo e transferência me evoca as horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as corporizo. Um cigarro ao mentol, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que sutil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto outra vez as cores de um passado, tão século dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo irremediavelmente perdido.
[401]
Criei para mim, fausto de um opróbrio, uma pompa de dor e de apagamento. Não fiz da minha dor um poema, fiz dela, porém, um cortejo. E da janela para mim contemplo, espantado, os ocasos roxos, os crepúsculos vagos de dores sem razão, onde passam, nos cerimoniais do meu descaminho, os perigos, os fardos, os falhanços da minha incompetência nativa para existir. A criança, que nada matou em mim, assiste ainda, de febre e fitas, ao circo que me dou. Ri dos palhaços, sem haver cá fora do circo; põe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem vê ali toda a vida. E assim, sem alegria, mas contente, entre as quatro paredes do meu quarto dorme, por inocência, com o seu pobre papel feio e gasto, toda a angústia insuspeita de uma alma humana que transborda, todo o desespero sem remédio de um coração a quem Deus abandonou.
Caminho, não pelas ruas, mas através da minha dor. As casas alinhadas são os incompreendedores que me cercam na alma; os meus passos soam no passeio como um dobre ridículo a finados, um ruído de espanto na noite, final como um recibo ou uma jaula.
Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço.
Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio.
Se eu fosse músico escreveria a minha marcha fúnebre, e com que razão a escreveria!
[402]
Poder reencarnar numa pedra, num grão de pó — chora-me na alma este desejo.
Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a não achar sabor a nada.
[403]
Não me encontro um sentido… A vida pesa… Toda a emoção é demais para mim… O meu coração é um privilégio de Deus… A que cortejos pertenci, que um cansaço de não sei que pompas embala a minha saudade? E que pálios? que sequências de estrelas? que lírios? que flâmulas? que vitrais?
Por que mistério à sombra de árvores passaram as melhores fantasias, que neste mundo tanto se recordam das águas, dos ciprestes e dos buxos e não encontram pálios para os seus préstitos senão entre consequências de se abster?
Caleidoscópio
Não fales… Aconteces demasiado… Tenho pena de te estar vendo…
Quando serás tu apenas uma saudade minha? Até lá quantas tu não serás! E eu ter de julgar que te posso ver é uma ponte velha onde ninguém passa… A vida é isto. Os outros abandonaram os remos… Não há já disciplina nas coortes… Foram-se os cavaleiros com a manhã e o som das lanças… Teus castelos ficaram esperando estar desertos… Nenhum vento abandonou os renques das árvores ao cimo… Pórticos inúteis, baixelas guardadas, prenúncios de profecias — isso pertence aos crepúsculos prosternados nos templos e não agora, ao encontrarmo-nos, porque não há razões para tílias dando sombra senão teus dedos e o seu gesto tardio…
Razão de sobra para territórios remotos… Tratados feitos por vitrais de reis… Lírios de quadros religiosos… Por quem espera o séquito? …
Por onde se ergueu a águia perdida?
[404]
Enrolar o mundo à roda dos nossos dedos, como um fio ou uma fita com que brinque uma mulher que sonha à janela.
Resume-se tudo enfim em procurar sentir o tédio de modo que ele não doa.
Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas.
[405]
A vida, para a maioria dos homens, é uma maçada passada sem se dar por isso, uma coisa triste composta de intervalos alegres, qualquer coisa como os momentos de anedotas que contam os veladores de mortos, para passar o sossego da noite e a obrigação de velar. Achei sempre fútil considerar a vida como um vale de lágrimas: é um vale de lágrimas, sim, mas onde raras vezes se chora. Disse Heine que, depois das grandes tragédias, acabamos sempre por nos assoar. Como judeu, e portanto universal, viu com clareza a natureza universal da humanidade.
A vida seria insuportável se tomássemos consciência dela. Felizmente o não fazemos. Vivemos com a mesma inconsciência que os animais, do mesmo modo fútil e inútil, e se antecipamos a morte, que é de supor, sem que seja certo, que eles não antecipam, antecipamo-la através de tantos esquecimentos, de tantas distrações e desvios, que mal podemos dizer que pensamos nela.
Assim se vive, e é pouco para nos julgarmos superiores aos animais. A nossa diferença deles consiste no pormenor puramente externo de falarmos e escrevermos, de termos inteligência abstrata para nos distrairmos de a ter concreta, e de imaginar coisas impossíveis. Tudo isso, porém, são acidentes do nosso organismo fundamental. O falar e escrever nada fazem de novo no nosso instinto primordial de viver sem saber como. A nossa inteligência abstrata não serve senão para fazer sistemas, ou ideias meio-sistemas, do que nos animais é estar ao sol. A nossa imaginação do impossível não é porventura própria, pois já vi gatos olhar para a lua, e não sei se não a quereriam.
Todo o mundo, toda a vida, é um vasto sistema de inconsciências operando através de consciências individuais. Assim como com dois gases, passando por eles uma corrente elétrica, se faz um líquido, assim com duas consciências — a do nosso ser concreto e a do nosso ser abstrato — se faz, passando por elas a vida e o mundo, uma inconsciência superior.
Feliz, pois, o que não pensa, porque realiza por instinto e destino orgânico o que todos nós temos que realizar por desvio e destino inorgânico ou social. Feliz o que mais se assemelha aos brutos, porque é sem esforço o que todos nós somos com trabalho imposto; porque sabe o caminho de casa, que nós outros não encontramos senão por atalhos de ficção e regresso; porque, enraizado como uma árvore, é parte da paisagem e portanto da beleza, e não, como nós, mitos da passagem, figurantes de trajo vivo da inutilidade e do esquecimento.
[406]
Não creio alto na felicidade dos animais, senão quando me apetece falar nela para moldura de um sentimento que a sua suposição saliente. Para se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não há felicidade em dormir sem sonhos, senão somente em se despertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fora da felicidade. Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.
Só o absoluto de Hegel conseguiu, em páginas, ser duas coisas ao mesmo tempo. O não-ser e o ser não se fundem e confundem nas sensações e razões da vida: excluem-se, por uma síntese às avessas.
Que fazer? Isolar o momento como uma coisa e ser feliz agora, no momento em que se sente a felicidade, sem pensar senão no que se sente, excluindo o mais, excluindo tudo. Enjaular o pensamento na sensação, é esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã ele talvez já não tenha nunca existido.
[407]
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu coração.
[408]
Cantava, em uma voz muito suave, uma canção de país longínquo. A música tornava familiares as palavras incógnitas. Parecia o fado para a alma, mas não tinha com ele semelhança alguma.
A canção dizia, pelas palavras veladas e a melodia humana, coisas que estão na alma de todos e que ninguém conhece. Ele cantava numa espécie de sonolência, ignorando com o olhar os ouvintes, num pequeno êxtase de rua.
O povo reunido ouvia-o sem grande motejo visível. A canção era de toda a gente, e as palavras falavam às vezes conosco, segredo oriental de qualquer raça perdida. O ruído da cidade não se ouvia se o ouvíamos, e passavam as carroças tão perto que uma me roçou pelo solto do casaco. Mas senti-a e não a ouvi. Havia uma absorção no canto do desconhecido que fazia bem ao que em nós sonha ou não consegue. Era um caso de rua, e todos reparamos que o polícia virara a esquina lentamente. Aproximou-se com a mesma lentidão. Ficou parado um tempo por trás do rapaz dos guarda-chuvas, como quem vê qualquer coisa. Nesta altura o cantor parou.
Ninguém disse nada. Então o polícia interveio.
[409]
Não sei porquê — noto-o subitamente — estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.
É esta uma das mais curiosas sensações que nos pode ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia. Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de domínio fácil e largo, de amplitude — como disse de alívio e sossego.
Que bom estar só largamente! Poder falar alto conosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.
Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a um universo próximo mas independente. Somos, finalmente, reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de nós — quem sabe — com maior vigor que os demais ouro falso. Por um momento somos pensionistas do universo, e vivemos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preocupações.
Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo até mim não sei quem, o alguém que vai interromper a minha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o meu império implícito. Não é que o passo me diga quem é que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: “Sozinho, sr. Soares? ” E eu respondo: “Sim, já há tempo…” E ele então diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho, no cabide: “Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares, e de mais a mais…” “Grande maçada, não há dúvida”, respondo eu. “Até dá vontade de dormir”, diz ele, já de casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. “E dá”, confirmo, sorridente. Depois, estendendo a mão para a caneta esquecida, reentro, gráfico na saúde anônima da vida normal.
[410]
Sempre que podem, sentam-se defronte do espelho. Falam conosco e namoram-se de olhos a si mesmos. Por vezes, como nos namoros, distraem-se da conversa. Fui-lhes sempre simpático, porque a minha aversão adulta pelo meu aspecto me compeliu sempre a escolher o espelho como coisa para onde virasse as costas. Assim, e eles de instinto o reconheciam tratando-me sempre bem, eu era o rapaz escutador que lhes deixava sempre livres a vaidade e a tribuna.
Em conjunto não eram maus rapazes; particularmente eram melhores e piores. Tinham generosidades e ternuras insuspeitáveis a um tirador de médias, baixezas e sordidezes difíceis de adivinhar por qualquer ente humano normal. Miséria, inveja e ilusão — assim os resumo, e nisso resumiria aquela parte desse ambiente que se infiltra na obra dos homens de valor que alguma vez fizeram dessa estância de ressaca um pousio de enganados. (É, na obra de Fialho, a inveja flagrante, a grosseria reles, a deselegância nauseante…)
Uns têm graça, outros têm só graça, outros ainda não existem. A graça dos cafés divide-se em ditos de espírito sobre os ausentes e ditos de insolência aos presentes. A este gênero de espírito chama-se ordinariamente apenas grosseria. Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas.
Passei, vi e, ao contrário deles, venci. Porque a minha vitória consistiu em ver. Reconheci a identidade de todos os aglomerados inferiores: vim encontrar aqui, na casa onde tenho um quarto, a mesma alma sórdida que os cafés me revelaram, salvo, graças aos deuses todos, a noção de vencer em Paris. A dona desta casa ousa Avenidas Novas em alguns dos seus momentos de ilusão, mas do estrangeiro está salva, e o meu coração enternece-se.
Conservo dessa passagem pelo túmulo da vontade a memória de um tédio nauseado e de algumas anedotas com espírito.
Vão a enterrar, e parece que já no caminho do cemitério se esqueceu no café o passado, pois vai calado agora e a posteridade nunca saberá deles, escondidos dela para sempre sob a mole negra dos pendões ganhados nas suas vitórias de dizer.
[411]
O orgulho é a certeza emotiva da grandeza própria. A vaidade é a certeza emotiva de que os outros veem em nós, ou nos atribuem, tal grandeza. Os dois sentimentos nem necessariamente se conjugam, nem por natureza se opõem. São diferentes porém conjugáveis.
O orgulho, quando existe só, sem acrescentamento de vaidade, manifesta-se, no seu resultado, como timidez: quem se sente grande, porém não confia em que os outros o reconheçam por tal, receia confrontar a opinião que tem de si mesmo com a opinião que os outros possam ter dele.
A vaidade, quando existe só, sem acrescentamento de orgulho, o que é possível porém raro, manifesta-se, no seu resultado, pela audácia. Quem tem a certeza de que os outros veem nele valor nada receia deles. Pode haver coragem física sem vaidade; pode haver coragem moral sem vaidade; não pode haver audácia sem vaidade. E por audácia se entende a confiança na iniciativa. A audácia pode ser desacompanhada de coragem, física ou moral, pois estas disposições da índole são de ordem diferente, e com ela incomensuráveis.
[412]
Intervalo doloroso
Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-me se não sou o criador de mim próprio. E mesmo que haja em mim de que envaidecer-me, quanto para me não envaidecer.
Jazo a minha vida. E nem sei fazer com o sonho o gesto de me erguer, tão até à alma estou despido de saber ter um esforço.
Os fazedores de sistemas metafísicos, os de explicações psicológicas são ainda piores no sofrimento. Sistematizar, explicar, o que é senão [. . . ] e construir?
E tudo isso — arranjar, dispor, organizar — o que é senão esforço realizado — e quão desoladoramente isso é vida!
Pessimista — eu não o sou. Ditosos os que conseguem traduzir para universal o seu sofrimento. Eu não sei se o mundo é triste ou mau nem isso me importa, porque o que os outros sofrem me é aborrecido e indiferente. Logo que não chorem ou gemam, o que me irrita e incomoda, nem um encolher de ombros tenho — tão fundo me pesa o meu desdém por eles — para o seu sofrimento.
Mas nem quem crê que a vida seja meio luz meio sombras. Eu não sou pessimista. Não me queixo do horror da vida. Queixo-me do horror da minha. O único fato importante para mim é o fato de eu existir e de eu sofrer e de não poder sequer sonhar-me de todo para fora de me sentir sofrendo. Sonhadores felizes são os pessimistas. Formam o mundo à sua imagem e assim sempre conseguem estar em casa. A mim o que me dói mais é a diferença entre o ruído e a alegria do mundo e a minha tristeza e o meu silêncio aborrecido.
A vida com todas as suas dores e receios e solavancos deve ser boa e alegre, como uma viagem em velha diligência para quem vai acompanhado (e a pode ver).
Nem ao menos posso sentir o meu sofrimento como sinal de Grandeza. Não sei se o é.
Mas eu sofro em coisas tão reles, ferem-me coisas tão banais que não ouso insultar com essa hipótese a hipótese de que eu possa ter gênio.
A glória de um poente belo, com a sua beleza entristece-me. Ante ele eu digo sempre: como quem é feliz se deve sentir contente ao ver isto!
E este livro é um gemido. Escrito ele já o Só não é o livro mais triste que há em Portugal.
Ao pé da minha dor todas as outras dores me parecem falsas ou mínimas. São dores de gente feliz ou dores de gente que vive e se queixa. As minhas são de quem se encontra encarcerado da vida, à parte…
Entre mim e a vida…
De modo que tudo o que angustia vejo. E tudo o que alegra não sinto. E reparei que o mal mais se vê que se sente, a alegria mais se sente do que se vê. Porque não pensando, não vendo, certo contentamento adquire-se, como o dos místicos e dos boêmios e dos canalhas. Mas tudo afinal entra [em] casa pela janela da observação e pela porta do pensamento.
[413]
Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o, distraidamente confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente, muito conscientemente, da inutilidade e de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar, futilissimamente.
Tecer grinaldas para, logo que acabadas, as desmanchar totalmente e minuciosamente.
Pegar em tintas e misturá-las na paleta sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar sem ter buril nem ser escultor. Fazer de tudo um absurdo e requintar para fúteis todas as nossas estéreis horas. Jogar às escondidas com a nossa consciência de viver.
Ouvir as horas dizer-nos que existimos com um sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não só falso mas vão.
Pensar em frases que se contradigam, falando alto em sons que não são sons e cores que não são cores. Dizer — e compreendê-lo, o que é aliás impossível — que temos consciência de não ter consciência, e que não somos o que somos. Explicar isto tudo por um sentido oculto e paradoxo que as coisas tenham no seu aspecto outro-lado e divino, e não acreditar demasiado na explicação para que não hajamos de a abandonar.
Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar. Estagnar em torpor todos os nossos pensamentos de ação.
E sobre tudo isto, como um céu uno e azul, o horror de viver paira alheadamente.
[414]
Mas as paisagens sonhadas são apenas fumos de paisagens conhecidas e o tédio de as sonhar também é quase tão grande como o tédio de olharmos para o mundo.
[415]
As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.
O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve, de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei. Que leais! Tenho saudades deles porque, como os outros, passam…
[416]
Às vezes, nos meus diálogos comigo, nas tardes requintadas da Imaginação, em colóquios cansados em crepúsculos de salões supostos, pergunto-me, naqueles intervalos da conversa em que fico a sós com um interlocutor mais eu do que os outros, por que razão verdadeira não haverá a nossa época científica estendido a sua vontade de compreender até aos assuntos que são artificiais. E uma das perguntas em que com mais languidez me demoro é a por que se não faz, a par da psicologia usual das criaturas humanas e sub-humanas, uma psicologia também — que a deve haver — das figuras artificiais e das criaturas cuja existência se passa apenas nos tapetes e nos quadros. Triste noção tem da realidade quem a limita ao orgânico, e não põe a ideia de uma alma dentro das estatuetas e dos lavores. Onde há forma há alma.
Não são uma ociosidade estas minhas considerações comigo, mas uma elucubração científica como qualquer outra que o seja. Por isso, antes de e sem ter uma resposta, suponho o possível atual e entrego-me, em análises interiores, à visão imaginada de aspectos possíveis deste clesia eratum realizado. Mal nisso penso, logo dentro da visão do meu espírito surgem cientistas curvados sobre estampas, sabendo bem que elas são vidas; microscopistas da tessitura surgem dos tapetes; fisicistas do seu desenho largo e bruxuleante nos contornos; químicos, sim, da ideia das formas e das cores nos quadros; geologistas das camadas estráticas dos camafeus; psicólogos, enfim — e isto mais importa — que uma a uma notam e congregam as sensações que deve sentir uma estatueta, as ideias que devem passar pelo psiquismo estreito de uma figura de quadro ou de vitral, os impulsos loucos, as paixões sem freio, as compaixões e ódios ocasionais e que têm nesses universos especiais de fixidezas e morte nos gestos eternos dos baixos-relevos, nos universos mortos dos figurantes das telas.
Mais do que outras artes, são a literatura e a música propícias às sutilezas de um psicólogo. As figuras de romance são — como todos sabem — tão reais como qualquer de nós. Certos aspectos de sons têm uma alma alada e rápida, mas susceptíveis de psicologia e sociologia. Porque — bom é que os ignorantes o saibam — as sociedades existem dentro das cores, dos sons, das frases, e há regimes e revoluções, reinados, políticas e — há-os em absoluto e sem metafísica — no conjunto instrumental das sinfonias, no todo organizado das novelas, nos metros quadrados de um quadro complexo, onde gozam, sofrem, e misturam as atitudes coloridas de guerreiros, de amorosos ou de simbólicos.
Quando se quebra uma chávena da minha coleção japonesa, eu sonho que mais do que um descuido das mãos de uma criada tenha sido a causa, ou tenham estado os anseios das figuras que habitam as curvas daquela de louça; a resolução tenebrosa de suicídio que as tomou não me causa espanto: serviram-se da criada, como um de nós de um revólver. Saber isto é estar além da ciência moderna, e com que precisão eu sei isto!
[417]
Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia — era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.
As minhas leituras prediletas são a repetição de livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam nunca — A Retórica do Padre Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa, do Padre Freire. Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os li todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li em sequência. Devo a esses livros uma disciplina que quase creio impossível em mim — uma regra de escrever objetivado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.
O estilo afetado, claustral, frusto, do Padre Figueiredo é uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A difusão, quase sempre sem disciplina, do Padre Freire, entretém o meu espírito sem o cansar, e educa-me sem me dar preocupação. São espíritos de eruditos e de sossegados que fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles, ou como qualquer outra pessoa.
Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim. Leio e adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das figuras de retórica do Padre Figueiredo, e por bosques de maravilha que ouço o Padre Freire ensinar que se deve dizer Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.
[418]
Detesto a leitura. Tenho um tédio antecipado das páginas desconhecidas. Sou capaz de ler só o que já conheço. O meu livro de cabeceira é A Retórica do Padre Figueiredo, onde leio todas as noites pela cada vez mais milésima vez a descrição, em estilo de um português conventual e certo, as figuras de retórica, cujos nomes, mil vezes lidos, não fixei ainda. Mas embala-me a linguagem, e se me faltassem as palavras jesuítas escritas com C dormiria irrequieto.
Devo contudo ao livro do Padre Figueiredo, com o seu exagero de purismo, o relativo escrúpulo que tenho — todo o que posso ter — de escrever a língua em que me registro com a propriedade que [. . . ]
E leio:
(um trecho do P. Figueiredo)
— pomposo, v[azio? ], e frio, e isto consola-me de viver.
Ou então
(um trecho sobre figuras) que volta no prefácio.
Não exagero uma polegada verbal: sinto tudo isto.
Como outros podem ler trechos da Bíblia, leio-os desta Retórica. Tenho a vantagem do repouso e da falta de devoção.
[419]
Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do usual e do reles, poeira que sublinha com um traço apagado e grotesco a sordidez e a vileza da minha vida humana — o Caixa aberto diante dos olhos cuja vida sonha com todos os orientes; a piada inofensiva do chefe do escritório que ofende todo o universo; o avisar o patrão que telefone, que é a amiga, por nome e dona, no meio da meditação do período mais insexual de uma tese estética e mental.
Depois os amigos, bons rapazes, bons rapazes, tão agradável estar falando com eles, almoçar com eles, jantar com eles, e tudo, não sei como, tão sórdido, tão reles, tão pequeno, sempre no armazém de fazendas ainda que na rua, sempre diante do livro caixa ainda que no estrangeiro, sempre com o patrão ainda que no infinito.
Todos têm um chefe de escritório com a piada sempre inoportuna e a alma fora do universo em seu conjunto. Todos têm o patrão e a amiga do patrão, e a chamada ao telefone no momento sempre impróprio em que a tarde admirável desce e as amantes inventam desculpas [? ] ou antes arriscam falar contra o amigo que está tomando chá chic, como os outros sabemos.
Mas todos os que sonham, ainda que não sonhem em escritórios da Baixa, nem diante de uma escrita do armazém de fazendas — todos têm um Caixa diante de si — seja a mulher com quem casaram, seja a administração dum futuro que lhes vem por herança, seja o que for, logo que positivamente seja.
Todos nós, que sonhamos e pensamos, somos ajudantes de guarda-livros num Armazém de fazendas, ou de outra qualquer fazenda, em uma Baixa qualquer. Escrituramos e perdemos; somamos e passamos; fechamos o balanço e o saldo invisível é sempre contra nós.
Escrevo sorrindo com as palavras, mas o meu coração está como se se pudesse partir, partir como as coisas que se quebram, em fragmentos, em cacos, em lixo, que o caixote leva num gesto de por cima dos ombros para o carro eterno de todas as Câmaras Municipais.
E tudo espera, aberto e decorado, o Rei que virá, e já chega, que a poeira do cortejo é uma nova névoa no oriente lento, e as lanças luzem já na distância com uma madrugada sua.
[420]
Marcha fúnebre
Figuras hieráticas, de hierarquias ignoras, se alinham nos corredores a esperar-te — pajens de doçura loura, jovens de em cintilares dispersos de lâminas nuas, em reflexos irregulares de capacetes e adornos altos, em vislumbres sombrios de ouro fosco e sedas.
Tudo quanto a imaginação adoece, o que de fúnebre dói nas pompas e cansa nas vitórias, o misticismo do nada, a ascese da absoluta negação.
Não os sete palmos de terra fria que se fecham sobre os olhos fechados sob o sol quente e ao lado da erva verde, mas a morte que excede a nossa vida e é uma vida ela mesma — uma morta presença em algum deus, o ignoto deus da religião dos meus Deuses.
O Ganges passa também pela Rua dos Douradores. Todas as épocas estão neste quarto estreito — a mistura a sucessão multicolor das maneiras, as distâncias dos povos, e a vasta variedade das nações.
E ali, em êxtase, numa só rua, sei esperar a Morte entre gládios e ameias.
[421]
A viagem na cabeça
Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com a distância exposta para as viagens aos países incógnitos, ou supostos, ou somente impossíveis.
[422]
Surge dos lados do oriente a luz loura do luar de ouro. O rastro que faz no rio largo abre serpentes no mar.
[423]
São cetins prolixos, púrpuras perplexas e os impérios seguiram o seu rumo de morte entre embandeiramentos exóticos de ruas largas e luxúrias de dosséis sobre paragens. Pálios passaram. Havia ruas foscas ou limpas nos decursos das procissões. Faiscavam frio as armas levadas nas dolorosas lentidões das inúteis marchas. Esquecidos os jardins nos subúrbios e as águas nos repuxos mera continuação do deixado, caindo risos longínquos entre lembranças de luzes, não que as estátuas nas áleas falassem, nem que se perdessem, entre amarelos em sequência, os tons do outono orlando túmulos. As alabardas esquinas para épocas pomposas, verde-negro, roxo-velho e granada o tom das roupagens; praças desertas no meio das esquivanças; e nunca mais por entre canteiros onde se passa passearão as sombras que deixaram os contornos dos aquedutos.
Tanto os tambores, os tambores atroaram a trêmula hora.
[424]
Todos os dias acontecem no mundo coisas que não são explicáveis pelas leis que conhecemos das coisas. Todos os dias, faladas nos momentos, esquecem, e o mesmo mistério que as trouxe as leva, convertendo-se o segredo em esquecimento. Tal é a lei do que tem que ser esquecido porque não pode ser explicado. À luz do sol continua regular o mundo visível. O alheio espreita-nos da sombra.
[425]
O próprio sonho me castiga. Adquiri nele tal lucidez que vejo como real cada coisa que sonho. Era perda, portanto, tudo quanto a valorizava como sonhada.
Sonho-me famoso? Sinto todo o despimento que há na glória, toda a perda da intimidade e do anonimato com que ela é dolorosa para conosco.
[426]
Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na vida do universo, mas na da nossa mesma alma, é o princípio da sabedoria. Considerar isto em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira. No momento em que sofremos, parece que a dor humana é infinita. Mas nem a dor humana é infinita, pois nada há humano de infinito, nem a nossa dor vale mais que ser uma dor que nós temos.
Quantas vezes, sob o peso de um tédio que parece ser loucura, ou de uma angústia que parece passar além dela, paro, hesitante, antes que me revolte, hesito, parando, antes que me divinize. Dor de não saber o que é o mistério do mundo, dor de nos não amarem, dor de serem injustos conosco, dor de pesar a vida sobre nós, sufocando e prendendo, dor de dentes, dor de sapatos apertados — quem pode dizer qual é maior em si mesmo, quanto mais nos outros, ou na generalidade dos que existem?
Para alguns que me falam e me ouvem, sou um insensível. Sou, porém, mais sensível — creio — que a vasta maioria dos homens. O que sou, contudo, é um sensível que se conhece, e que, portanto, conhece a sensibilidade.
Ah, não é verdade que a vida seja dolorosa, ou que seja doloroso pensar na vida. O que é verdade é que a nossa dor só é séria e grave quando a fingimos tal. Se formos naturais, ela passará assim como veio, esbater-se-á assim como cresceu. Tudo é nada, e a nossa dor nele.
Escrevo isto sob a opressão de um tédio que parece não caber em mim, ou precisar de mais que da minha alma para ter onde estar; de uma opressão de todos e de tudo que me estrangula e desvaira; de um sentimento físico da incompreensão alheia que me perturba e esmaga. Mas ergo a cabeça para o céu azul alheio, exponho a face ao vento inconscientemente fresco, baixo as pálpebras depois de ter visto, esqueço a face depois de ter sentido. Não fico melhor, mas fico diferente. Ver-me liberta-me de mim. Quase sorrio, não porque me compreenda, mas porque, tendo-me tornado outro, me deixei de poder compreender. No alto do céu, como um nada visível, uma nuvem pequeníssima é um esquecimento branco do universo inteiro.
[427]
Meus sonhos: como me crio amigos ao sonhar ando com eles. A sua imperfeição outra.
Ser puro, não para ser nobre, ou para ser forte, mas para ser si próprio. Quem dá amor, perde amor.
Abdicar da vida para não abdicar de si próprio.
A mulher — uma boa fonte de sonhos. Nunca lhe toques.
Aprende a desligar as ideias de voluptuosidade e de prazer. Aprende a gozar em tudo, não o que ele é, mas as ideias e os sonhos que provoca. (Porque nada é o que é, e os sonhos sempre são os sonhos. ) Para isso precisas não tocar em nada. Se tocares, o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a tua sensação.
Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais. A única aristocracia é nunca tocar. Não se aproximar — eis o que é fidalgo.
Deus é bom mas o diabo também não é mau.
Apesar de tudo, o equilíbrio romântico é mais perfeito que o do século XVII em França.
[428]
Estética da indiferença
Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa.
Saber, com um imediato instinto, abstrair de cada objeto ou acontecimento o que ele pode ter de sonhável, deixando morto no Mundo Exterior tudo quanto ele tem de real — eis o que o sábio deve procurar realizar em si próprio.
Nunca sentir sinceramente os seus próprios sentimentos, e elevar o seu pálido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para as suas próprias ambições, ânsias e desejos; passar pelas suas alegrias e angústias como quem passa por quem não lhe interessa.
O maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio, tendo-se, alma e corpo, por a casa e a quinta onde o Destino quis que passássemos a nossa vida.
Tratar os seus próprios sonhos e íntimos desejos altivamente, en grand seigneue, pondo uma íntima delicadeza em não reparar neles. Ter o pudor de si próprio; perceber que na nossa presença não estamos sós, que somos testemunhas de nós mesmos, e que por isso importa agir perante nós mesmos como perante um estranho, com uma estudada e serena linha exterior, indiferente porque fidalga, e fria porque indiferente.
Para não descermos aos nossos próprios olhos, basta que nos habituemos a não ter nem ambições nem paixões, nem desejos nem esperanças, nem impulsos nem desassossegos. Para conseguir isto lembremo-nos sempre que estamos sempre em presença nossa, que nunca estamos sós, para que possamos estar à vontade. E assim dominaremos o ter paixões e ambições, porque paixões e ambições são desescudarmo-nos; não teremos desejos nem esperanças, porque desejos e esperanças são gestos baixos e deselegantes; nem teremos impulsos e desassossegos porque a precipitação é uma indelicadeza para com os olhos dos outros, e a impaciência é sempre uma grosseria.
O aristocrata é aquele que nunca esquece que nunca está só; por isso as praxes e os protocolos são apanágio das aristocracias. Interiorizemos o aristocrata. Arranquemo-lo aos salões e aos jardins passando-o para a nossa alma e para a nossa consciência de existirmos. Estejamos sempre diante de nós em protocolos e praxes, em gestos estudados e para-os-outros.
Cada um de nós é uma sociedade inteira, um bairro todos do Mistério, convém que ao menos tornemos elegante e distinta a vida desse bairro, que nas festas das nossas sensações haja requinte e recato, e porque sóbria a cortesia nos banquetes dos nossos pensamentos. Em torno a nós poderão as outras almas erguerem-se os seus bairros sujos e pobres; marquemos nitidamente onde o nosso acaba e começa, e que desde a frontaria dos nossos prédios até às alcovas das nossas timidezas, tudo seja fidalgo e sereno, esculpido numa sobriedade ou surdina de exibição.
Saber encontrar a cada sensação o modo sereno de ela se realizar. Fazer o amor resumir-se apenas a uma sombra de ser sonho de amor, pálido e trêmulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate. Tornar o desejo uma coisa inútil e inofensiva, no como que sorriso delicado da alma a sós consigo própria; fazer dela uma coisa que nunca pense em realizar-se nem em dizer-se. Ao ódio adormecê-lo como a uma serpente prisioneira, e dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar da nossa alma, única atitude compatível com ser estética.
[429]
Em todos os lugares da vida, em todas as situações e convivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora. Não digo que o fui, uma só vez sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios.
Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a falta de afeição merecida pelo intruso.
Não duvido que tudo isto, da atitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa intrínseca ao meu próprio temperamento. Sou porventura de uma frieza comunicativa, que involuntariamente obriga os outros a refletirem o meu modo de pouco sentir.
Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.
Não sei se sofra com isto, se o aceito como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fossem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objeto da afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.
Com isto ou sem isto a vida dói-me.
Os outros têm quem se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequer pensasse em se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.
Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição. Infelizmente não tenho feito nada com que justifique a si próprio esse respeito começado quem o sinta; de modo que nunca chegam a respeitar-me deveras.
Julgo às vezes que gozo sofrer. Mas na verdade eu preferiria outra coisa.
Não tenho qualidades de Chefe, nem de sequaz. Nem sequer as tenho de satisfeito, que são as que valem quando essas outras faltem.
Outros, menos inteligentes que eu, são mais fortes.
Talham melhor a sua vida entre gente; administram mais habilmente a sua inteligência.
[399]
Como Diógenes a Alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol. Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los. O que achei, mais valeria tê-lo realmente achado. O sonho
Tenho construído em passeio frases perfeitas de que depois me não lembro em casa. A poesia inefável dessas frases não sei se será parte do que foram, se parte de não terem nunca sido.
Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco, como linha reta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha reta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo ativamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejei sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tato; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.
Nunca soube se era demais a minha sensibilidade para a minha inteligência, ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma ou outra, ou foi a terceira que tardou.
Dos sonhadores de ideais [? ] — socialistas, altruístas, humanitários de toda espécie — tenho a náusea física, do estômago. São os idealistas sem ideal. São os pensadores sem pensamento. Querem a superfície da vida por uma fatalidade de lixo, que boia à tona de água e se julga belo, porque as conchas dispersas boiam à tona de água também.
[400]
Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.
Como quem visita um lugar onde passou a juventude consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar da minha vida em que era meu uso fumá-los. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.
Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso de recordações que os estremece. A infância! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre de soldados de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao meu sabor a minha felicidade passada, a minha infância ida, e pertenço voluptuosamente à suavidade da minha dor.
Nem por simples é menos solene este meu ritual do paladar.
Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstrói momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter paladar. Por isso mais em grupo e transferência me evoca as horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as corporizo. Um cigarro ao mentol, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que sutil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto outra vez as cores de um passado, tão século dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo irremediavelmente perdido.
[401]
Criei para mim, fausto de um opróbrio, uma pompa de dor e de apagamento. Não fiz da minha dor um poema, fiz dela, porém, um cortejo. E da janela para mim contemplo, espantado, os ocasos roxos, os crepúsculos vagos de dores sem razão, onde passam, nos cerimoniais do meu descaminho, os perigos, os fardos, os falhanços da minha incompetência nativa para existir. A criança, que nada matou em mim, assiste ainda, de febre e fitas, ao circo que me dou. Ri dos palhaços, sem haver cá fora do circo; põe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem vê ali toda a vida. E assim, sem alegria, mas contente, entre as quatro paredes do meu quarto dorme, por inocência, com o seu pobre papel feio e gasto, toda a angústia insuspeita de uma alma humana que transborda, todo o desespero sem remédio de um coração a quem Deus abandonou.
Caminho, não pelas ruas, mas através da minha dor. As casas alinhadas são os incompreendedores que me cercam na alma; os meus passos soam no passeio como um dobre ridículo a finados, um ruído de espanto na noite, final como um recibo ou uma jaula.
Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço.
Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio.
Se eu fosse músico escreveria a minha marcha fúnebre, e com que razão a escreveria!
[402]
Poder reencarnar numa pedra, num grão de pó — chora-me na alma este desejo.
Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a não achar sabor a nada.
[403]
Não me encontro um sentido… A vida pesa… Toda a emoção é demais para mim… O meu coração é um privilégio de Deus… A que cortejos pertenci, que um cansaço de não sei que pompas embala a minha saudade? E que pálios? que sequências de estrelas? que lírios? que flâmulas? que vitrais?
Por que mistério à sombra de árvores passaram as melhores fantasias, que neste mundo tanto se recordam das águas, dos ciprestes e dos buxos e não encontram pálios para os seus préstitos senão entre consequências de se abster?
Caleidoscópio
Não fales… Aconteces demasiado… Tenho pena de te estar vendo…
Quando serás tu apenas uma saudade minha? Até lá quantas tu não serás! E eu ter de julgar que te posso ver é uma ponte velha onde ninguém passa… A vida é isto. Os outros abandonaram os remos… Não há já disciplina nas coortes… Foram-se os cavaleiros com a manhã e o som das lanças… Teus castelos ficaram esperando estar desertos… Nenhum vento abandonou os renques das árvores ao cimo… Pórticos inúteis, baixelas guardadas, prenúncios de profecias — isso pertence aos crepúsculos prosternados nos templos e não agora, ao encontrarmo-nos, porque não há razões para tílias dando sombra senão teus dedos e o seu gesto tardio…
Razão de sobra para territórios remotos… Tratados feitos por vitrais de reis… Lírios de quadros religiosos… Por quem espera o séquito? …
Por onde se ergueu a águia perdida?
[404]
Enrolar o mundo à roda dos nossos dedos, como um fio ou uma fita com que brinque uma mulher que sonha à janela.
Resume-se tudo enfim em procurar sentir o tédio de modo que ele não doa.
Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas.
[405]
A vida, para a maioria dos homens, é uma maçada passada sem se dar por isso, uma coisa triste composta de intervalos alegres, qualquer coisa como os momentos de anedotas que contam os veladores de mortos, para passar o sossego da noite e a obrigação de velar. Achei sempre fútil considerar a vida como um vale de lágrimas: é um vale de lágrimas, sim, mas onde raras vezes se chora. Disse Heine que, depois das grandes tragédias, acabamos sempre por nos assoar. Como judeu, e portanto universal, viu com clareza a natureza universal da humanidade.
A vida seria insuportável se tomássemos consciência dela. Felizmente o não fazemos. Vivemos com a mesma inconsciência que os animais, do mesmo modo fútil e inútil, e se antecipamos a morte, que é de supor, sem que seja certo, que eles não antecipam, antecipamo-la através de tantos esquecimentos, de tantas distrações e desvios, que mal podemos dizer que pensamos nela.
Assim se vive, e é pouco para nos julgarmos superiores aos animais. A nossa diferença deles consiste no pormenor puramente externo de falarmos e escrevermos, de termos inteligência abstrata para nos distrairmos de a ter concreta, e de imaginar coisas impossíveis. Tudo isso, porém, são acidentes do nosso organismo fundamental. O falar e escrever nada fazem de novo no nosso instinto primordial de viver sem saber como. A nossa inteligência abstrata não serve senão para fazer sistemas, ou ideias meio-sistemas, do que nos animais é estar ao sol. A nossa imaginação do impossível não é porventura própria, pois já vi gatos olhar para a lua, e não sei se não a quereriam.
Todo o mundo, toda a vida, é um vasto sistema de inconsciências operando através de consciências individuais. Assim como com dois gases, passando por eles uma corrente elétrica, se faz um líquido, assim com duas consciências — a do nosso ser concreto e a do nosso ser abstrato — se faz, passando por elas a vida e o mundo, uma inconsciência superior.
Feliz, pois, o que não pensa, porque realiza por instinto e destino orgânico o que todos nós temos que realizar por desvio e destino inorgânico ou social. Feliz o que mais se assemelha aos brutos, porque é sem esforço o que todos nós somos com trabalho imposto; porque sabe o caminho de casa, que nós outros não encontramos senão por atalhos de ficção e regresso; porque, enraizado como uma árvore, é parte da paisagem e portanto da beleza, e não, como nós, mitos da passagem, figurantes de trajo vivo da inutilidade e do esquecimento.
[406]
Não creio alto na felicidade dos animais, senão quando me apetece falar nela para moldura de um sentimento que a sua suposição saliente. Para se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não há felicidade em dormir sem sonhos, senão somente em se despertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fora da felicidade. Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.
Só o absoluto de Hegel conseguiu, em páginas, ser duas coisas ao mesmo tempo. O não-ser e o ser não se fundem e confundem nas sensações e razões da vida: excluem-se, por uma síntese às avessas.
Que fazer? Isolar o momento como uma coisa e ser feliz agora, no momento em que se sente a felicidade, sem pensar senão no que se sente, excluindo o mais, excluindo tudo. Enjaular o pensamento na sensação, é esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã ele talvez já não tenha nunca existido.
[407]
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu coração.
[408]
Cantava, em uma voz muito suave, uma canção de país longínquo. A música tornava familiares as palavras incógnitas. Parecia o fado para a alma, mas não tinha com ele semelhança alguma.
A canção dizia, pelas palavras veladas e a melodia humana, coisas que estão na alma de todos e que ninguém conhece. Ele cantava numa espécie de sonolência, ignorando com o olhar os ouvintes, num pequeno êxtase de rua.
O povo reunido ouvia-o sem grande motejo visível. A canção era de toda a gente, e as palavras falavam às vezes conosco, segredo oriental de qualquer raça perdida. O ruído da cidade não se ouvia se o ouvíamos, e passavam as carroças tão perto que uma me roçou pelo solto do casaco. Mas senti-a e não a ouvi. Havia uma absorção no canto do desconhecido que fazia bem ao que em nós sonha ou não consegue. Era um caso de rua, e todos reparamos que o polícia virara a esquina lentamente. Aproximou-se com a mesma lentidão. Ficou parado um tempo por trás do rapaz dos guarda-chuvas, como quem vê qualquer coisa. Nesta altura o cantor parou.
Ninguém disse nada. Então o polícia interveio.
[409]
Não sei porquê — noto-o subitamente — estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.
É esta uma das mais curiosas sensações que nos pode ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia. Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de domínio fácil e largo, de amplitude — como disse de alívio e sossego.
Que bom estar só largamente! Poder falar alto conosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.
Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a um universo próximo mas independente. Somos, finalmente, reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de nós — quem sabe — com maior vigor que os demais ouro falso. Por um momento somos pensionistas do universo, e vivemos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preocupações.
Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo até mim não sei quem, o alguém que vai interromper a minha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o meu império implícito. Não é que o passo me diga quem é que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: “Sozinho, sr. Soares? ” E eu respondo: “Sim, já há tempo…” E ele então diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho, no cabide: “Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares, e de mais a mais…” “Grande maçada, não há dúvida”, respondo eu. “Até dá vontade de dormir”, diz ele, já de casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. “E dá”, confirmo, sorridente. Depois, estendendo a mão para a caneta esquecida, reentro, gráfico na saúde anônima da vida normal.
[410]
Sempre que podem, sentam-se defronte do espelho. Falam conosco e namoram-se de olhos a si mesmos. Por vezes, como nos namoros, distraem-se da conversa. Fui-lhes sempre simpático, porque a minha aversão adulta pelo meu aspecto me compeliu sempre a escolher o espelho como coisa para onde virasse as costas. Assim, e eles de instinto o reconheciam tratando-me sempre bem, eu era o rapaz escutador que lhes deixava sempre livres a vaidade e a tribuna.
Em conjunto não eram maus rapazes; particularmente eram melhores e piores. Tinham generosidades e ternuras insuspeitáveis a um tirador de médias, baixezas e sordidezes difíceis de adivinhar por qualquer ente humano normal. Miséria, inveja e ilusão — assim os resumo, e nisso resumiria aquela parte desse ambiente que se infiltra na obra dos homens de valor que alguma vez fizeram dessa estância de ressaca um pousio de enganados. (É, na obra de Fialho, a inveja flagrante, a grosseria reles, a deselegância nauseante…)
Uns têm graça, outros têm só graça, outros ainda não existem. A graça dos cafés divide-se em ditos de espírito sobre os ausentes e ditos de insolência aos presentes. A este gênero de espírito chama-se ordinariamente apenas grosseria. Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas.
Passei, vi e, ao contrário deles, venci. Porque a minha vitória consistiu em ver. Reconheci a identidade de todos os aglomerados inferiores: vim encontrar aqui, na casa onde tenho um quarto, a mesma alma sórdida que os cafés me revelaram, salvo, graças aos deuses todos, a noção de vencer em Paris. A dona desta casa ousa Avenidas Novas em alguns dos seus momentos de ilusão, mas do estrangeiro está salva, e o meu coração enternece-se.
Conservo dessa passagem pelo túmulo da vontade a memória de um tédio nauseado e de algumas anedotas com espírito.
Vão a enterrar, e parece que já no caminho do cemitério se esqueceu no café o passado, pois vai calado agora e a posteridade nunca saberá deles, escondidos dela para sempre sob a mole negra dos pendões ganhados nas suas vitórias de dizer.
[411]
O orgulho é a certeza emotiva da grandeza própria. A vaidade é a certeza emotiva de que os outros veem em nós, ou nos atribuem, tal grandeza. Os dois sentimentos nem necessariamente se conjugam, nem por natureza se opõem. São diferentes porém conjugáveis.
O orgulho, quando existe só, sem acrescentamento de vaidade, manifesta-se, no seu resultado, como timidez: quem se sente grande, porém não confia em que os outros o reconheçam por tal, receia confrontar a opinião que tem de si mesmo com a opinião que os outros possam ter dele.
A vaidade, quando existe só, sem acrescentamento de orgulho, o que é possível porém raro, manifesta-se, no seu resultado, pela audácia. Quem tem a certeza de que os outros veem nele valor nada receia deles. Pode haver coragem física sem vaidade; pode haver coragem moral sem vaidade; não pode haver audácia sem vaidade. E por audácia se entende a confiança na iniciativa. A audácia pode ser desacompanhada de coragem, física ou moral, pois estas disposições da índole são de ordem diferente, e com ela incomensuráveis.
[412]
Intervalo doloroso
Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-me se não sou o criador de mim próprio. E mesmo que haja em mim de que envaidecer-me, quanto para me não envaidecer.
Jazo a minha vida. E nem sei fazer com o sonho o gesto de me erguer, tão até à alma estou despido de saber ter um esforço.
Os fazedores de sistemas metafísicos, os de explicações psicológicas são ainda piores no sofrimento. Sistematizar, explicar, o que é senão [. . . ] e construir?
E tudo isso — arranjar, dispor, organizar — o que é senão esforço realizado — e quão desoladoramente isso é vida!
Pessimista — eu não o sou. Ditosos os que conseguem traduzir para universal o seu sofrimento. Eu não sei se o mundo é triste ou mau nem isso me importa, porque o que os outros sofrem me é aborrecido e indiferente. Logo que não chorem ou gemam, o que me irrita e incomoda, nem um encolher de ombros tenho — tão fundo me pesa o meu desdém por eles — para o seu sofrimento.
Mas nem quem crê que a vida seja meio luz meio sombras. Eu não sou pessimista. Não me queixo do horror da vida. Queixo-me do horror da minha. O único fato importante para mim é o fato de eu existir e de eu sofrer e de não poder sequer sonhar-me de todo para fora de me sentir sofrendo. Sonhadores felizes são os pessimistas. Formam o mundo à sua imagem e assim sempre conseguem estar em casa. A mim o que me dói mais é a diferença entre o ruído e a alegria do mundo e a minha tristeza e o meu silêncio aborrecido.
A vida com todas as suas dores e receios e solavancos deve ser boa e alegre, como uma viagem em velha diligência para quem vai acompanhado (e a pode ver).
Nem ao menos posso sentir o meu sofrimento como sinal de Grandeza. Não sei se o é.
Mas eu sofro em coisas tão reles, ferem-me coisas tão banais que não ouso insultar com essa hipótese a hipótese de que eu possa ter gênio.
A glória de um poente belo, com a sua beleza entristece-me. Ante ele eu digo sempre: como quem é feliz se deve sentir contente ao ver isto!
E este livro é um gemido. Escrito ele já o Só não é o livro mais triste que há em Portugal.
Ao pé da minha dor todas as outras dores me parecem falsas ou mínimas. São dores de gente feliz ou dores de gente que vive e se queixa. As minhas são de quem se encontra encarcerado da vida, à parte…
Entre mim e a vida…
De modo que tudo o que angustia vejo. E tudo o que alegra não sinto. E reparei que o mal mais se vê que se sente, a alegria mais se sente do que se vê. Porque não pensando, não vendo, certo contentamento adquire-se, como o dos místicos e dos boêmios e dos canalhas. Mas tudo afinal entra [em] casa pela janela da observação e pela porta do pensamento.
[413]
Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o, distraidamente confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente, muito conscientemente, da inutilidade e de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar, futilissimamente.
Tecer grinaldas para, logo que acabadas, as desmanchar totalmente e minuciosamente.
Pegar em tintas e misturá-las na paleta sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar sem ter buril nem ser escultor. Fazer de tudo um absurdo e requintar para fúteis todas as nossas estéreis horas. Jogar às escondidas com a nossa consciência de viver.
Ouvir as horas dizer-nos que existimos com um sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não só falso mas vão.
Pensar em frases que se contradigam, falando alto em sons que não são sons e cores que não são cores. Dizer — e compreendê-lo, o que é aliás impossível — que temos consciência de não ter consciência, e que não somos o que somos. Explicar isto tudo por um sentido oculto e paradoxo que as coisas tenham no seu aspecto outro-lado e divino, e não acreditar demasiado na explicação para que não hajamos de a abandonar.
Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar. Estagnar em torpor todos os nossos pensamentos de ação.
E sobre tudo isto, como um céu uno e azul, o horror de viver paira alheadamente.
[414]
Mas as paisagens sonhadas são apenas fumos de paisagens conhecidas e o tédio de as sonhar também é quase tão grande como o tédio de olharmos para o mundo.
[415]
As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.
O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve, de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei. Que leais! Tenho saudades deles porque, como os outros, passam…
[416]
Às vezes, nos meus diálogos comigo, nas tardes requintadas da Imaginação, em colóquios cansados em crepúsculos de salões supostos, pergunto-me, naqueles intervalos da conversa em que fico a sós com um interlocutor mais eu do que os outros, por que razão verdadeira não haverá a nossa época científica estendido a sua vontade de compreender até aos assuntos que são artificiais. E uma das perguntas em que com mais languidez me demoro é a por que se não faz, a par da psicologia usual das criaturas humanas e sub-humanas, uma psicologia também — que a deve haver — das figuras artificiais e das criaturas cuja existência se passa apenas nos tapetes e nos quadros. Triste noção tem da realidade quem a limita ao orgânico, e não põe a ideia de uma alma dentro das estatuetas e dos lavores. Onde há forma há alma.
Não são uma ociosidade estas minhas considerações comigo, mas uma elucubração científica como qualquer outra que o seja. Por isso, antes de e sem ter uma resposta, suponho o possível atual e entrego-me, em análises interiores, à visão imaginada de aspectos possíveis deste clesia eratum realizado. Mal nisso penso, logo dentro da visão do meu espírito surgem cientistas curvados sobre estampas, sabendo bem que elas são vidas; microscopistas da tessitura surgem dos tapetes; fisicistas do seu desenho largo e bruxuleante nos contornos; químicos, sim, da ideia das formas e das cores nos quadros; geologistas das camadas estráticas dos camafeus; psicólogos, enfim — e isto mais importa — que uma a uma notam e congregam as sensações que deve sentir uma estatueta, as ideias que devem passar pelo psiquismo estreito de uma figura de quadro ou de vitral, os impulsos loucos, as paixões sem freio, as compaixões e ódios ocasionais e que têm nesses universos especiais de fixidezas e morte nos gestos eternos dos baixos-relevos, nos universos mortos dos figurantes das telas.
Mais do que outras artes, são a literatura e a música propícias às sutilezas de um psicólogo. As figuras de romance são — como todos sabem — tão reais como qualquer de nós. Certos aspectos de sons têm uma alma alada e rápida, mas susceptíveis de psicologia e sociologia. Porque — bom é que os ignorantes o saibam — as sociedades existem dentro das cores, dos sons, das frases, e há regimes e revoluções, reinados, políticas e — há-os em absoluto e sem metafísica — no conjunto instrumental das sinfonias, no todo organizado das novelas, nos metros quadrados de um quadro complexo, onde gozam, sofrem, e misturam as atitudes coloridas de guerreiros, de amorosos ou de simbólicos.
Quando se quebra uma chávena da minha coleção japonesa, eu sonho que mais do que um descuido das mãos de uma criada tenha sido a causa, ou tenham estado os anseios das figuras que habitam as curvas daquela de louça; a resolução tenebrosa de suicídio que as tomou não me causa espanto: serviram-se da criada, como um de nós de um revólver. Saber isto é estar além da ciência moderna, e com que precisão eu sei isto!
[417]
Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia — era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.
As minhas leituras prediletas são a repetição de livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam nunca — A Retórica do Padre Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa, do Padre Freire. Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os li todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li em sequência. Devo a esses livros uma disciplina que quase creio impossível em mim — uma regra de escrever objetivado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.
O estilo afetado, claustral, frusto, do Padre Figueiredo é uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A difusão, quase sempre sem disciplina, do Padre Freire, entretém o meu espírito sem o cansar, e educa-me sem me dar preocupação. São espíritos de eruditos e de sossegados que fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles, ou como qualquer outra pessoa.
Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim. Leio e adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das figuras de retórica do Padre Figueiredo, e por bosques de maravilha que ouço o Padre Freire ensinar que se deve dizer Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.
[418]
Detesto a leitura. Tenho um tédio antecipado das páginas desconhecidas. Sou capaz de ler só o que já conheço. O meu livro de cabeceira é A Retórica do Padre Figueiredo, onde leio todas as noites pela cada vez mais milésima vez a descrição, em estilo de um português conventual e certo, as figuras de retórica, cujos nomes, mil vezes lidos, não fixei ainda. Mas embala-me a linguagem, e se me faltassem as palavras jesuítas escritas com C dormiria irrequieto.
Devo contudo ao livro do Padre Figueiredo, com o seu exagero de purismo, o relativo escrúpulo que tenho — todo o que posso ter — de escrever a língua em que me registro com a propriedade que [. . . ]
E leio:
(um trecho do P. Figueiredo)
— pomposo, v[azio? ], e frio, e isto consola-me de viver.
Ou então
(um trecho sobre figuras) que volta no prefácio.
Não exagero uma polegada verbal: sinto tudo isto.
Como outros podem ler trechos da Bíblia, leio-os desta Retórica. Tenho a vantagem do repouso e da falta de devoção.
[419]
Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do usual e do reles, poeira que sublinha com um traço apagado e grotesco a sordidez e a vileza da minha vida humana — o Caixa aberto diante dos olhos cuja vida sonha com todos os orientes; a piada inofensiva do chefe do escritório que ofende todo o universo; o avisar o patrão que telefone, que é a amiga, por nome e dona, no meio da meditação do período mais insexual de uma tese estética e mental.
Depois os amigos, bons rapazes, bons rapazes, tão agradável estar falando com eles, almoçar com eles, jantar com eles, e tudo, não sei como, tão sórdido, tão reles, tão pequeno, sempre no armazém de fazendas ainda que na rua, sempre diante do livro caixa ainda que no estrangeiro, sempre com o patrão ainda que no infinito.
Todos têm um chefe de escritório com a piada sempre inoportuna e a alma fora do universo em seu conjunto. Todos têm o patrão e a amiga do patrão, e a chamada ao telefone no momento sempre impróprio em que a tarde admirável desce e as amantes inventam desculpas [? ] ou antes arriscam falar contra o amigo que está tomando chá chic, como os outros sabemos.
Mas todos os que sonham, ainda que não sonhem em escritórios da Baixa, nem diante de uma escrita do armazém de fazendas — todos têm um Caixa diante de si — seja a mulher com quem casaram, seja a administração dum futuro que lhes vem por herança, seja o que for, logo que positivamente seja.
Todos nós, que sonhamos e pensamos, somos ajudantes de guarda-livros num Armazém de fazendas, ou de outra qualquer fazenda, em uma Baixa qualquer. Escrituramos e perdemos; somamos e passamos; fechamos o balanço e o saldo invisível é sempre contra nós.
Escrevo sorrindo com as palavras, mas o meu coração está como se se pudesse partir, partir como as coisas que se quebram, em fragmentos, em cacos, em lixo, que o caixote leva num gesto de por cima dos ombros para o carro eterno de todas as Câmaras Municipais.
E tudo espera, aberto e decorado, o Rei que virá, e já chega, que a poeira do cortejo é uma nova névoa no oriente lento, e as lanças luzem já na distância com uma madrugada sua.
[420]
Marcha fúnebre
Figuras hieráticas, de hierarquias ignoras, se alinham nos corredores a esperar-te — pajens de doçura loura, jovens de em cintilares dispersos de lâminas nuas, em reflexos irregulares de capacetes e adornos altos, em vislumbres sombrios de ouro fosco e sedas.
Tudo quanto a imaginação adoece, o que de fúnebre dói nas pompas e cansa nas vitórias, o misticismo do nada, a ascese da absoluta negação.
Não os sete palmos de terra fria que se fecham sobre os olhos fechados sob o sol quente e ao lado da erva verde, mas a morte que excede a nossa vida e é uma vida ela mesma — uma morta presença em algum deus, o ignoto deus da religião dos meus Deuses.
O Ganges passa também pela Rua dos Douradores. Todas as épocas estão neste quarto estreito — a mistura a sucessão multicolor das maneiras, as distâncias dos povos, e a vasta variedade das nações.
E ali, em êxtase, numa só rua, sei esperar a Morte entre gládios e ameias.
[421]
A viagem na cabeça
Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com a distância exposta para as viagens aos países incógnitos, ou supostos, ou somente impossíveis.
[422]
Surge dos lados do oriente a luz loura do luar de ouro. O rastro que faz no rio largo abre serpentes no mar.
[423]
São cetins prolixos, púrpuras perplexas e os impérios seguiram o seu rumo de morte entre embandeiramentos exóticos de ruas largas e luxúrias de dosséis sobre paragens. Pálios passaram. Havia ruas foscas ou limpas nos decursos das procissões. Faiscavam frio as armas levadas nas dolorosas lentidões das inúteis marchas. Esquecidos os jardins nos subúrbios e as águas nos repuxos mera continuação do deixado, caindo risos longínquos entre lembranças de luzes, não que as estátuas nas áleas falassem, nem que se perdessem, entre amarelos em sequência, os tons do outono orlando túmulos. As alabardas esquinas para épocas pomposas, verde-negro, roxo-velho e granada o tom das roupagens; praças desertas no meio das esquivanças; e nunca mais por entre canteiros onde se passa passearão as sombras que deixaram os contornos dos aquedutos.
Tanto os tambores, os tambores atroaram a trêmula hora.
[424]
Todos os dias acontecem no mundo coisas que não são explicáveis pelas leis que conhecemos das coisas. Todos os dias, faladas nos momentos, esquecem, e o mesmo mistério que as trouxe as leva, convertendo-se o segredo em esquecimento. Tal é a lei do que tem que ser esquecido porque não pode ser explicado. À luz do sol continua regular o mundo visível. O alheio espreita-nos da sombra.
[425]
O próprio sonho me castiga. Adquiri nele tal lucidez que vejo como real cada coisa que sonho. Era perda, portanto, tudo quanto a valorizava como sonhada.
Sonho-me famoso? Sinto todo o despimento que há na glória, toda a perda da intimidade e do anonimato com que ela é dolorosa para conosco.
[426]
Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na vida do universo, mas na da nossa mesma alma, é o princípio da sabedoria. Considerar isto em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira. No momento em que sofremos, parece que a dor humana é infinita. Mas nem a dor humana é infinita, pois nada há humano de infinito, nem a nossa dor vale mais que ser uma dor que nós temos.
Quantas vezes, sob o peso de um tédio que parece ser loucura, ou de uma angústia que parece passar além dela, paro, hesitante, antes que me revolte, hesito, parando, antes que me divinize. Dor de não saber o que é o mistério do mundo, dor de nos não amarem, dor de serem injustos conosco, dor de pesar a vida sobre nós, sufocando e prendendo, dor de dentes, dor de sapatos apertados — quem pode dizer qual é maior em si mesmo, quanto mais nos outros, ou na generalidade dos que existem?
Para alguns que me falam e me ouvem, sou um insensível. Sou, porém, mais sensível — creio — que a vasta maioria dos homens. O que sou, contudo, é um sensível que se conhece, e que, portanto, conhece a sensibilidade.
Ah, não é verdade que a vida seja dolorosa, ou que seja doloroso pensar na vida. O que é verdade é que a nossa dor só é séria e grave quando a fingimos tal. Se formos naturais, ela passará assim como veio, esbater-se-á assim como cresceu. Tudo é nada, e a nossa dor nele.
Escrevo isto sob a opressão de um tédio que parece não caber em mim, ou precisar de mais que da minha alma para ter onde estar; de uma opressão de todos e de tudo que me estrangula e desvaira; de um sentimento físico da incompreensão alheia que me perturba e esmaga. Mas ergo a cabeça para o céu azul alheio, exponho a face ao vento inconscientemente fresco, baixo as pálpebras depois de ter visto, esqueço a face depois de ter sentido. Não fico melhor, mas fico diferente. Ver-me liberta-me de mim. Quase sorrio, não porque me compreenda, mas porque, tendo-me tornado outro, me deixei de poder compreender. No alto do céu, como um nada visível, uma nuvem pequeníssima é um esquecimento branco do universo inteiro.
[427]
Meus sonhos: como me crio amigos ao sonhar ando com eles. A sua imperfeição outra.
Ser puro, não para ser nobre, ou para ser forte, mas para ser si próprio. Quem dá amor, perde amor.
Abdicar da vida para não abdicar de si próprio.
A mulher — uma boa fonte de sonhos. Nunca lhe toques.
Aprende a desligar as ideias de voluptuosidade e de prazer. Aprende a gozar em tudo, não o que ele é, mas as ideias e os sonhos que provoca. (Porque nada é o que é, e os sonhos sempre são os sonhos. ) Para isso precisas não tocar em nada. Se tocares, o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a tua sensação.
Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais. A única aristocracia é nunca tocar. Não se aproximar — eis o que é fidalgo.
Deus é bom mas o diabo também não é mau.
Apesar de tudo, o equilíbrio romântico é mais perfeito que o do século XVII em França.
[428]
Estética da indiferença
Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa.
Saber, com um imediato instinto, abstrair de cada objeto ou acontecimento o que ele pode ter de sonhável, deixando morto no Mundo Exterior tudo quanto ele tem de real — eis o que o sábio deve procurar realizar em si próprio.
Nunca sentir sinceramente os seus próprios sentimentos, e elevar o seu pálido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para as suas próprias ambições, ânsias e desejos; passar pelas suas alegrias e angústias como quem passa por quem não lhe interessa.
O maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio, tendo-se, alma e corpo, por a casa e a quinta onde o Destino quis que passássemos a nossa vida.
Tratar os seus próprios sonhos e íntimos desejos altivamente, en grand seigneue, pondo uma íntima delicadeza em não reparar neles. Ter o pudor de si próprio; perceber que na nossa presença não estamos sós, que somos testemunhas de nós mesmos, e que por isso importa agir perante nós mesmos como perante um estranho, com uma estudada e serena linha exterior, indiferente porque fidalga, e fria porque indiferente.
Para não descermos aos nossos próprios olhos, basta que nos habituemos a não ter nem ambições nem paixões, nem desejos nem esperanças, nem impulsos nem desassossegos. Para conseguir isto lembremo-nos sempre que estamos sempre em presença nossa, que nunca estamos sós, para que possamos estar à vontade. E assim dominaremos o ter paixões e ambições, porque paixões e ambições são desescudarmo-nos; não teremos desejos nem esperanças, porque desejos e esperanças são gestos baixos e deselegantes; nem teremos impulsos e desassossegos porque a precipitação é uma indelicadeza para com os olhos dos outros, e a impaciência é sempre uma grosseria.
O aristocrata é aquele que nunca esquece que nunca está só; por isso as praxes e os protocolos são apanágio das aristocracias. Interiorizemos o aristocrata. Arranquemo-lo aos salões e aos jardins passando-o para a nossa alma e para a nossa consciência de existirmos. Estejamos sempre diante de nós em protocolos e praxes, em gestos estudados e para-os-outros.
Cada um de nós é uma sociedade inteira, um bairro todos do Mistério, convém que ao menos tornemos elegante e distinta a vida desse bairro, que nas festas das nossas sensações haja requinte e recato, e porque sóbria a cortesia nos banquetes dos nossos pensamentos. Em torno a nós poderão as outras almas erguerem-se os seus bairros sujos e pobres; marquemos nitidamente onde o nosso acaba e começa, e que desde a frontaria dos nossos prédios até às alcovas das nossas timidezas, tudo seja fidalgo e sereno, esculpido numa sobriedade ou surdina de exibição.
Saber encontrar a cada sensação o modo sereno de ela se realizar. Fazer o amor resumir-se apenas a uma sombra de ser sonho de amor, pálido e trêmulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate. Tornar o desejo uma coisa inútil e inofensiva, no como que sorriso delicado da alma a sós consigo própria; fazer dela uma coisa que nunca pense em realizar-se nem em dizer-se. Ao ódio adormecê-lo como a uma serpente prisioneira, e dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar da nossa alma, única atitude compatível com ser estética.
[429]
Em todos os lugares da vida, em todas as situações e convivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora. Não digo que o fui, uma só vez sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios.
Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a falta de afeição merecida pelo intruso.
Não duvido que tudo isto, da atitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa intrínseca ao meu próprio temperamento. Sou porventura de uma frieza comunicativa, que involuntariamente obriga os outros a refletirem o meu modo de pouco sentir.
Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.
Não sei se sofra com isto, se o aceito como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fossem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objeto da afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.
Com isto ou sem isto a vida dói-me.
Os outros têm quem se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequer pensasse em se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.
Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição. Infelizmente não tenho feito nada com que justifique a si próprio esse respeito começado quem o sinta; de modo que nunca chegam a respeitar-me deveras.
Julgo às vezes que gozo sofrer. Mas na verdade eu preferiria outra coisa.
Não tenho qualidades de Chefe, nem de sequaz. Nem sequer as tenho de satisfeito, que são as que valem quando essas outras faltem.
Outros, menos inteligentes que eu, são mais fortes.
Talham melhor a sua vida entre gente; administram mais habilmente a sua inteligência.
