A ideia de que o que eu fazia pudesse ser
aproveitável
magoou-me, secou-me para mim.
Pessoa - Livro do Desassossego
Numa grande dispersão unificada, ubiquito-me neles e eu crio e sou, a cada momento da conversa, uma multidão de seres, conscientes e inconscientes, analisados e analíticos, que se reúnem em leque aberto.
[306]
Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de ação, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta conosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.
Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.
Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossível esforço, em que[m] não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.
Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.
Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no gênero de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir.
[307] Estética do desalento
Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual.
Se a vida [não] nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras de nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.
Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar. Como nunca soube fazer um esforço ou ativar uma intenção, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos que desejaria poder fazer.
[308]
À minha incapacidade de viver crismei de gênio, à minha covardia cobri-a de lhe chamar requinte. Pus-me a mim, Deus dourado com ouro falso, num altar de papelão pintado para parecer mármore.
Mas a mim não enganei nem a consciência do meu enganar-me.
[309]
O prazer de nos elogiarmos a nós próprios…
Paisagem de chuva
Cheira-me a frio, a mágoa, a serem impossíveis todos os caminhos, a ideia de todos os ideais.
As mulheres contemporâneas tais arranjos do seu porte e do seu vulto talham, que dão uma dolorosa impressão de efêmeras e de insubstituíveis…
Os seus e adereços tais as pintam e cobram, que mais decorativas se tornam do que carnalmente viventes. Frisas, painéis, quadros — não são, na realidade da vista, mais do que tanto…
O mero voltear dum xaile para cima dos ombros usa hoje mais consciência à visão do gesto em quem o faz do que antigamente. Dantes o xaile era parte do traje; hoje é um detalhe resultante de intuições de puro gozo estético.
Assim, nestes nossos dias, tão vívidos através de fazerem tudo arte, tudo arranca pétalas ao consciente e se integra em volubilidades de extático.
Trânsfugas de quadros não feitos essas figuras femininas todas… Há por vezes detalhes a mais nelas… Certos perfis existem com exagerada nitidez. Brincam a irreais pelo excesso com que se separam, linhas puras, do ambiente fundo.
[310]
Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.
Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho morto.
As tuas mãos são rolas presas. Os teus lábios são rolas mudas (que aos meus olhos vêm arrulhar).
Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente. É toda ranger de asas, como do s, a lagoa de eu te ver.
Tu és toda alada, toda
Chove, chove, chove…
Chove constantemente, gemedoramente
Meu corpo treme-me a alma de frio… Não um frio que há no espaço, mas um frio que há em ver a chuva…
Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.
[311]
Às vezes, sem que o espere ou deva esperá-lo, a sufocação do vulgar me toma a garganta e tenho a náusea física da voz e do gesto do chamado semelhante. A náusea física direta, sentida diretamente no estômago e na cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta… Cada indivíduo que me fala, cada cara cujos olhos me fitam, afeta-me como um insulto ou como uma porcaria. Extravaso horror de tudo. Entonteço de me sentir senti-los.
E acontece, quase sempre, nestes momentos de desolação estomacal, que há um homem, uma mulher, uma criança até, que se ergue diante de mim como um representante real da banalidade que me agonia. Não representante por uma emoção minha, subjetiva e pensada, mas por uma verdade objetiva, realmente conforme de fora com o que sinto de dentro que surge por magia analógica e me traz o exemplo para a regra que penso.
[312]
Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos, e, ou isolados ou ligando-se, formam uma escrita poética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas com os usuais, os desabituais que encontro, são dizeres para que me falta o dicionário mas não de todo o entendimento. Falam, exprimem, porém não é de si que falam, nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores.
Passando às vezes na rua, ouço trechos de conversas íntimas, e quase todas são da outra mulher, do outro homem, do rapaz da terceira ou da amante daquele. Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é afinal o tudo em que se ocupam a maioria das vidas conscientes, um tédio de nojo, uma angústia de exílio entre aranhas e a consciência súbita do meu amarfanhamento entre gente real; a condenação de ser vizinho igual, perante o senhorio e o sítio, dos outros inquilinos do aglomerado, espreitando com nojo, por entre as grades traseiras do armazém da loja, o lixo alheio que se entulha à chuva no saguão que é a minha vida.
[313]
Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna — a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!
[314]
Desejaria construir um código de inércia para os superiores nas sociedades modernas. A sociedade governar-se-ia espontaneamente e a si própria, se não contivesse gente de sensibilidade e de inteligência. Acreditem que é a única coisa que a prejudica. As sociedades primitivas tinham uma feliz existência mais ou menos assim. Pena é que a expulsão dos superiores da sociedade resultaria em eles morrerem, porque não sabem trabalhar. E talvez morressem de tédio, por não haver espaços de estupidez entre eles. Mas eu falo do ponto de vista da felicidade humana. Cada superior que se manifestasse na sociedade seria expulso para a ilha dos superiores. Os superiores seriam alimentados, como animais em jaula, pela sociedade normal. Acreditem: se não houvesse gente inteligente que apontasse os vários mal-estares humanos, a humanidade não dava por eles. E as criaturas de sensibilidade fazem sofrer os outros por simpatia. Por enquanto, visto que vivemos em sociedade, o único dever dos superiores é reduzirem ao mínimo a sua participação na vida da tribo. Não ler jornais, ou lê-los só para saber o que de pouco importante e curioso se passa. Ninguém imagina a volúpia que arranco ao noticiário sucinto das províncias. Os meros nomes abrem-me portas sobre o vago. O supremo estado honroso para um homem superior é não saber quem é o chefe de Estado do seu país, ou se vive sob monarquia ou sob república. Toda a sua atitude deve ser colocar-se a alma de modo que a passagem das coisas, dos acontecimentos não o incomode. Se o não fizer terá que se interessar pelos outros, para cuidar de si próprio.
[315]
Perder tempo comporta uma estética. Há, para os sutis nas sensações, um formulário da inércia que inclui receitas para todas as formas de lucidez.
A estratégia com que se luta com a noção das conveniências sociais, com os impulsos dos instintos, com as solicitações do sentimento exige um estudo que qualquer mero esteta não suporta fazer. A uma acurada etiologia dos escrúpulos deve seguir-se uma diagnose irônica das subserviências à normalidade. Há a cultivar, também, a agilidade contra as intrusões da vida; um cuidado deve couraçar-nos contra sentir as opiniões alheias, e uma mole indiferença encamar-nos a alma contra os golpes surdos da coexistência com os outros.
[316]
Um quietismo estético da vida, pelo qual consigamos que os insultos e as humilhações, que a vida e os viventes nos infligem, não cheguem a mais que a uma periferia desprezível da sensibilidade, ao recinto externo da alma consciente.
Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.
[317]
Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única. Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me faz gestos que são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo, porém, me sucede com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam através dos atores que as figuram.
Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anônimo de diferença, uma desvantagem materializada. Há figuras de tempos idos, imagens espíritos em livros, que são para nós realidades maiores que aquelas indiferenças encarnadas que falam conosco por cima dos balcões, ou nos olham por acaso nos elétricos, ou nos roçam, transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais que paisagem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.
Tenho por mais minhas, com maior parentesco e intimidade, certas figuras que estão escritas em livros, certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso. E “carne e OSSO”, de fato, as descreve bem: parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e costeletas do Destino.
Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao fato, parece que abstruso, de que os outros são almas também.
Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ente espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma capaz de sofrer.
Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida… Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra coisa se não deve matar alguém… Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. É uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu?
Tenho subitamente a visão do cadáver, do caixão em que o meteram, da cova, inteiramente alheia, a que o haviam de ter levado. E vejo, de repente, que o caixeiro da tabacaria era, em certo modo, casaco torto e tudo, a humanidade inteira.
Foi só um momento. Hoje, agora, claramente, como homem que sou, ele morreu. Mais nada.
Sim, os outros não existem… É para mim que este poente estagna, pesadamente alado, as suas cores nevoentas e duras. Para mim, sob o poente, treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo aberto sobre o rio cuja maré chega. Foi enterrado hoje na vala comum o caixeiro da tabacaria? Não é para ele o poente de hoje. Mas, de o pensar, e sem que eu queira, também deixou de ser para mim…
[318]
barcos que passam na noite e se nem saúdam nem conhecem.
[319]
Reconheço hoje que falhei; só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa dos loucos… Era lúcido e triste como um dia frio.
As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confortam. Ver passar a vida sob um dia azul compensa-me de muito. Esqueço indefinidamente, esqueço mais do que podia lembrar. O meu coração translúcido e aéreo penetra-se da suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente. Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via.
Tenho elementos espirituais de boêmio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boêmio — o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boêmio isolado, o que é um absurdo; ou um boêmio místico, o que é uma coisa impossível.
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a Natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais; mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá esbatido na minha sonolência de viver.
Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um Narciso cego, que gozasse a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e noturna, segredada às emoções abstratas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
Os teus colares de pérolas fingidas amaram comigo as minhas horas melhores. Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes. Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino? Era por o conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus lábios desistidos. A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a água era pelúcida de silêncios. Nas pequenas cavidades rugosas das pedras, por onde a água escolhia, havia segredos que tivéramos quando crianças, sonhos do tamanho parado dos nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras da cascata, na execução estática duma grande ação militar, sem que faltasse nada aos nossos sonhos, nem nada tardasse às nossas suposições.
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim.
[320]
Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser duros no sol baço, começava o outono antes que viesse, numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais claro, outras mais verde, da própria ausência de substância da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens, púrpuras diferentes e esbatidas; era, não já um torpor, mas um tédio, em toda a solidão quieta por onde nuvens atravessam.
A entrada do verdadeiro outono era depois anunciada por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das cores que ainda se não haviam esbatido, por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das paisagens e o aspecto disperso das coisas. Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para a vida.
Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de vento; soavam folhas num tom seco, ainda que não fossem folhas secas; toda a terra tomava a cor e a forma impalpável de um paul incerto. Descobria-se o que fora sorriso último, num cansaço de pálpebras, numa indiferença de gestos. E assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava, íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de redemoinho num átrio flutuava através da nossa consciência de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verdadeiramente a vida.
Mas as primeiras chuvas de inverno, vindas ainda no outono já duro, lavavam estas meias tintas como sem respeito. Ventos altos chiando em coisas paradas, barulhando coisas presas, arrastando coisas móveis, erguiam, entre os brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto anônimo, sons tristes e quase raivosos de desespero sem alma.
E por fim o outono cessava, a frio e cinzento. Era um outono de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do inverno traz de bom — verão duro findo, primavera por chegar, outono definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.
Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, é porque o lembro. O outono que tenho é o que perdi.
[321]
A oportunidade é como o dinheiro, que, aliás, não é mais que uma oportunidade. Para quem age, a oportunidade é um episódio da vontade, e a vontade não me interessa. Para quem, como eu, não age, a oportunidade é o canto da falta de sereias. Tem que ser desprezado com volúpia, arrumado alto para nenhum uso.
Ter ocasião de… Nesse campo se disporá a estátua da renúncia.
Ó largos campos ao sol, o espectador, por quem só sois vivos, contempla-vos da sombra.
O álcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a respiração do seu ritmo e se desfazem sorrindo, na ironia das cobras da espuma, na magnificência triste das penumbras.
[322]
Por fácil que seja, todo o gesto representa a violação de um segredo espiritual. Todo o gesto é um ato revolucionário; um exílio, talvez, da verdadeira dos nossos propósitos.
A ação é uma doença do pensamento, um cancro da imaginação. Agir é exilar-se. Toda a ação é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizá-lo. No mito de Jesus está escrito isto; Deus, ao tornar-se homem, não pode acabar senão pelo martírio. O supremo sonhador tem por filho o martírio supremo.
As sombras rotas das folhagens, o canto trêmulo das aves, os braços estendidos dos rios, trepidando ao sol o seu luzir fresco, as verduras, as papoulas, e a simplicidade das sensações — ao sentir isto, sinto dele saudades, como se ao senti-lo o não sentisse.
As horas, como um carro ao entardecer, regressam chiando pelas sombras dos meus pensamentos. Se ergo os olhos de sobre o meu pensamento, elas ardem-me do espetáculo do mundo.
Para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. Por isso realizar é não realizar. A vida está cheia de paradoxos como as rosas de espinhos.
Eu desejaria fazer a apoteose de uma incoerência nova, que ficasse sendo como que a constituição negativa da nova anarquia das almas. Compilar um digesto dos meus sonhos pareceu-me sempre que seria útil à humanidade. Por isso mesmo me abstive de o tentar.
A ideia de que o que eu fazia pudesse ser aproveitável magoou-me, secou-me para mim.
Tenho quintas nos arredores da vida. Passo ausências de cidade da minha ação entre as árvores e as flores do meu devaneio. Ao meu retiro verde nem chegam os ecos da vida dos meus gestos. Durmo a minha memória como procissões infinitas. Nos cálices da minha meditação só bebo o sorriso do vinho louro; só o bebo com os olhos, fechando-os, e a Vida passa como uma vela longínqua.
Os dias de sol sabem-me ao que eu não tenho. O céu azul, e as nuvens brancas, as árvores, a flauta que ali falta — éclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos… Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos.
A academia vegetal dos silêncios… teu nome soando como as papoulas… os tanques… o meu regresso… o padre louco que endoideceu na missa. Estas recordações são dos meus sonhos… Não fecho os olhos mas não vejo nada… Não estão aqui as coisas que vejo… Águas…
Numa confusão de emaranhamentos, o verdor das árvores é parte do meu sangue. Bate-me a vida no coração distante. Eu não fui destinado à realidade, e a vida quis vir ter comigo.
A tortura do destino! Quem sabe se morrerei amanhã! Quem sabe se não vai acontecer-me hoje qualquer coisa de terrível para a minha alma! … Às vezes, quando penso nestas coisas, apavora-me a tirania suprema que nos faz ter de olhar puros não sabendo de que acontecimento a incerteza de mim vai ao encontro.
[323]
… a chuva caía ainda triste, mas mais branda, como num cansaço universal; não havia relâmpagos, e apenas, de vez em quando, com o som de já longe, um trovão curto resmungava duro, e às vezes como que se interrompia, cansado também. Como que subitamente, a chuva abrandou mais ainda. Um dos empregados abriu as janelas para a Rua dos Douradores. Um ar fresco, com restos mortos de quente, insinuou-se na sala grande. A voz do patrão Vasques soou alta no telefone do gabinete: “Então, ainda está a falar? ” E houve um som de fala seca e à parte — comentário, obsceno (adivinha-se), à menina longínqua.
[324]
Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos.
Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os senti-los se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se entrepenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstratas, e as abstratas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde.
[325]
Ficções do interlúdio, cobrindo coloridamente o marasmo e a desídia da nossa íntima descrença.
[326]
de resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante ação, nunca desaparecem o do contato com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
O Universo, a Vida — seja isso real ou ilusão — é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo — ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.
[327]
Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver senão suavidade.
[328]
Junta as mãos, põe-as entre as minhas e escuta-me, ó meu amor.
Eu quero, falando numa voz suave e embaladora, como a dum confessor que aconselha, dizer-te o quanto a ânsia de atingir fica aquém do que atingimos.
Quero rezar contigo, a minha voz com a tua atenção, a litania da desesperança.
Não há obra de artista que não pudera ter sido mais perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos versos tem que não pudessem ser melhores, poucos episódios que não pudessem ser mais intensos, e nunca o seu conjunto é tão perfeito que o não pudesse ser muitíssimo mais.
Ai do artista que repara para isto! que um dia pensa nisto! Nunca mais o seu trabalho é alegria, nem o seu sono sossego. É moço sem mocidade e envelhece descontente.
E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito.
Se eu bem pudesse compenetrar-me realmente de quanto a renúncia é bela, que dolorosamente feliz para sempre que eu seria!
Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os ouvidos com que me ouço falar alto não me escutam do mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço pensar palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar, tantas vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros quanto me não entenderão!
De quão complexas ininteligências não é feita a compreensão dos outros de nós.
A delícia de se ver compreendido, não a pode ter quem se quer não compreendido, porque só aos complexos e incompreendidos isso acontece; e os outros, os simples, aqueles que os outros podem compreender — esses nunca têm o desejo de serem compreendidos.
[329]
Pensaste já, ó Outra, quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas uma voz que está dentro de si.
As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte, volúpias que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar sentido profundo.
A voz dos regatos que interpretas, pura explicadora, a voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio — ah, meu amor ignoto, quanto tudo isso é nós e fantasias tudo de cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!
[330]
Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir.
Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente — quem excederá, ó, o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se!
Não conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar coisas que não são precisas? Sabes o sabor aos caminhos que, se os tomássemos esquecidos, era por erro que os tomaríamos? Que ato humano tem uma cor tão bela como os atos espúrios — que mentem à sua própria natureza e desmentem o que lhes é a intenção?
A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!
Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas.
Que santificados de Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram coroá-la de nunca a fazer. (Se fora imperfeita, vá. )
Quão mais bela a Gioconda desde que a não pudéssemos ver! E se quem a roubasse a queimasse, quão artista seria, que maior artista que aquele que a pintou!
Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem desse a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficou, sublimemente, só o meio de uma estrada.
A beleza das ruínas? O não servirem já para nada.
A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser — o absurdo, meu amor, o absurdo.
E eu que digo isto — por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo, — eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.
E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.
E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer…
[331]
Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas, mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.
Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida — uma relação visual, direi — entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajeto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é menos.
Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espetáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.
O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anônima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer.
[332]
O pasmo que me causa a minha capacidade para a angústia. Não sendo, de natureza, um metafísico, tenho passado dias de angústia aguda, física mesmo, com a indecisão dos problemas metafísicos e religiosos… Vi depressa que o que eu tinha por a solução do problema religioso era resolver um problema emotivo em termos da razão.
[333]
Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.
Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.
Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.
[334]
Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.
Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.
Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer — tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo. Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório! ) pousada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anônimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!
Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demônios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que pousa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente, com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direção do teto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia.
[335]
“Sentir é uma maçada. ” Estas palavras casuais de não sei que conviva à conversa de uns minutos, ficou-me sempre brilhando no chão da memória. A própria forma plebeia da frase lhe dá sal e pimenta.
[336]
Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nela. Já este modo de dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efetivamente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreender isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível para quem não conheça mais que um burro.
As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e tipos da compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser entendidas.
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de fato a suporto. E um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim.
[337]
O que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gêmeo do cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho um receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo me parece antecipadamente frusto. O insuportável tédio de todas estas caras, alvares de inteligência ou de falta dela, grotescas até à náusea de felizes ou infelizes, horrorosas porque existem, maré separada de coisas vivas que me são alheias…
[338]
Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias ou por acaso. Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como diretamente realidades físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós. Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que me veem, como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia. Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há espelho que nos tire de nós mesmos. Era precisa outra alma, outra colocação do olhar e do pensar. Se eu fosse ator prolongado de cinema, ou gravasse em discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da minha consciência de mim.
Não sei se os outros serão assim, se a ciência da vida não consistirá essencialmente em ser tão alheio a si mesmo que instintivamente se consegue um alheamento e se pode participar da vida como estranho à consciência; ou se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de todo a bruteza de não serem senão eles, vivendo exteriormente por aquele milagre pelo qual as abelhas formam sociedades mais organizadas que qualquer nação, e as formigas comunicam entre si com uma fala de antenas mínimas que excede nos resultados a nossa complexa ausência de nos entendermos.
A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito demais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exatidão inscrita num livro irônico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras.
Tudo é complexo para quem pensa, e sem dúvida o pensamento o torna mais complexo por volúpia própria. Mas quem pensa tem a necessidade de justificar a sua abdicação com um vasto programa de compreender, exposto, como as razões dos que mentem, com todos os pormenores excessivos que descobrem, com o espalhar da terra, a raiz da mentira.
Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de qualquer modo, não importa porque, de qualquer modo, nada importa. Tudo isto, todas estas considerações extraviadas da rua larga, vegeta nos quintais dos deuses exclusos como trepadeiras longe das paredes. E sorrio, na noite em que concluo sem fim estas considerações sem engrenagem, da ironia vital que as faz surgir de uma alma humana, órfã, de antes dos astros, das grandes razões do Destino.
[339]
Paira-me à superfície do cansaço qualquer coisa de áureo que há sobre as águas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique esta imagem, ou este símbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é que vejo, como se de fato visse, um sol por trás de montes, dando raios perdidos sobre o lago que os recebe a ouro escuro.
Um dos malefícios de pensar é ver quando se está pensando. Os que pensam com o raciocínio estão distraídos, os que pensam com a emoção estão dormindo, os que pensam com a vontade estão mortos. Eu, porém, penso com a imaginação, e tudo quanto deveria ser em mim ou razão, ou mágoa, ou impulso, se me reduz a qualquer coisa indiferente e distante, como este lago porto entre rochedos onde o último do sol paira desalongadamente.
Porque parei, estremeceram as águas. Porque refleti, o sol recolheu-se. Cerro os olhos lentos e cheios de sono, e não há dentro de mim senão uma região lacustre onde a noite começa a deixar de ser dia num reflexo castanho escuro de águas de onde as algas surgem.
Porque escrevi, nada disse. Minha impressão é que o que existe é sempre em outra região, além de montes, e que há grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos.
Cessei, como o sol na minha paisagem. Não fica, do que foi dito ou visto, senão uma noite já fechada, cheia de brilho morto de lagos, numa planície sem patos bravos, morta, fluida, úmida e sinistra.
[340]
Não acredito na paisagem.
[306]
Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de ação, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta conosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.
Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.
Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossível esforço, em que[m] não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.
Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.
Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no gênero de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir.
[307] Estética do desalento
Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual.
Se a vida [não] nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras de nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.
Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar. Como nunca soube fazer um esforço ou ativar uma intenção, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos que desejaria poder fazer.
[308]
À minha incapacidade de viver crismei de gênio, à minha covardia cobri-a de lhe chamar requinte. Pus-me a mim, Deus dourado com ouro falso, num altar de papelão pintado para parecer mármore.
Mas a mim não enganei nem a consciência do meu enganar-me.
[309]
O prazer de nos elogiarmos a nós próprios…
Paisagem de chuva
Cheira-me a frio, a mágoa, a serem impossíveis todos os caminhos, a ideia de todos os ideais.
As mulheres contemporâneas tais arranjos do seu porte e do seu vulto talham, que dão uma dolorosa impressão de efêmeras e de insubstituíveis…
Os seus e adereços tais as pintam e cobram, que mais decorativas se tornam do que carnalmente viventes. Frisas, painéis, quadros — não são, na realidade da vista, mais do que tanto…
O mero voltear dum xaile para cima dos ombros usa hoje mais consciência à visão do gesto em quem o faz do que antigamente. Dantes o xaile era parte do traje; hoje é um detalhe resultante de intuições de puro gozo estético.
Assim, nestes nossos dias, tão vívidos através de fazerem tudo arte, tudo arranca pétalas ao consciente e se integra em volubilidades de extático.
Trânsfugas de quadros não feitos essas figuras femininas todas… Há por vezes detalhes a mais nelas… Certos perfis existem com exagerada nitidez. Brincam a irreais pelo excesso com que se separam, linhas puras, do ambiente fundo.
[310]
Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.
Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho morto.
As tuas mãos são rolas presas. Os teus lábios são rolas mudas (que aos meus olhos vêm arrulhar).
Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente. É toda ranger de asas, como do s, a lagoa de eu te ver.
Tu és toda alada, toda
Chove, chove, chove…
Chove constantemente, gemedoramente
Meu corpo treme-me a alma de frio… Não um frio que há no espaço, mas um frio que há em ver a chuva…
Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.
[311]
Às vezes, sem que o espere ou deva esperá-lo, a sufocação do vulgar me toma a garganta e tenho a náusea física da voz e do gesto do chamado semelhante. A náusea física direta, sentida diretamente no estômago e na cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta… Cada indivíduo que me fala, cada cara cujos olhos me fitam, afeta-me como um insulto ou como uma porcaria. Extravaso horror de tudo. Entonteço de me sentir senti-los.
E acontece, quase sempre, nestes momentos de desolação estomacal, que há um homem, uma mulher, uma criança até, que se ergue diante de mim como um representante real da banalidade que me agonia. Não representante por uma emoção minha, subjetiva e pensada, mas por uma verdade objetiva, realmente conforme de fora com o que sinto de dentro que surge por magia analógica e me traz o exemplo para a regra que penso.
[312]
Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos, e, ou isolados ou ligando-se, formam uma escrita poética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas com os usuais, os desabituais que encontro, são dizeres para que me falta o dicionário mas não de todo o entendimento. Falam, exprimem, porém não é de si que falam, nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores.
Passando às vezes na rua, ouço trechos de conversas íntimas, e quase todas são da outra mulher, do outro homem, do rapaz da terceira ou da amante daquele. Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é afinal o tudo em que se ocupam a maioria das vidas conscientes, um tédio de nojo, uma angústia de exílio entre aranhas e a consciência súbita do meu amarfanhamento entre gente real; a condenação de ser vizinho igual, perante o senhorio e o sítio, dos outros inquilinos do aglomerado, espreitando com nojo, por entre as grades traseiras do armazém da loja, o lixo alheio que se entulha à chuva no saguão que é a minha vida.
[313]
Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna — a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!
[314]
Desejaria construir um código de inércia para os superiores nas sociedades modernas. A sociedade governar-se-ia espontaneamente e a si própria, se não contivesse gente de sensibilidade e de inteligência. Acreditem que é a única coisa que a prejudica. As sociedades primitivas tinham uma feliz existência mais ou menos assim. Pena é que a expulsão dos superiores da sociedade resultaria em eles morrerem, porque não sabem trabalhar. E talvez morressem de tédio, por não haver espaços de estupidez entre eles. Mas eu falo do ponto de vista da felicidade humana. Cada superior que se manifestasse na sociedade seria expulso para a ilha dos superiores. Os superiores seriam alimentados, como animais em jaula, pela sociedade normal. Acreditem: se não houvesse gente inteligente que apontasse os vários mal-estares humanos, a humanidade não dava por eles. E as criaturas de sensibilidade fazem sofrer os outros por simpatia. Por enquanto, visto que vivemos em sociedade, o único dever dos superiores é reduzirem ao mínimo a sua participação na vida da tribo. Não ler jornais, ou lê-los só para saber o que de pouco importante e curioso se passa. Ninguém imagina a volúpia que arranco ao noticiário sucinto das províncias. Os meros nomes abrem-me portas sobre o vago. O supremo estado honroso para um homem superior é não saber quem é o chefe de Estado do seu país, ou se vive sob monarquia ou sob república. Toda a sua atitude deve ser colocar-se a alma de modo que a passagem das coisas, dos acontecimentos não o incomode. Se o não fizer terá que se interessar pelos outros, para cuidar de si próprio.
[315]
Perder tempo comporta uma estética. Há, para os sutis nas sensações, um formulário da inércia que inclui receitas para todas as formas de lucidez.
A estratégia com que se luta com a noção das conveniências sociais, com os impulsos dos instintos, com as solicitações do sentimento exige um estudo que qualquer mero esteta não suporta fazer. A uma acurada etiologia dos escrúpulos deve seguir-se uma diagnose irônica das subserviências à normalidade. Há a cultivar, também, a agilidade contra as intrusões da vida; um cuidado deve couraçar-nos contra sentir as opiniões alheias, e uma mole indiferença encamar-nos a alma contra os golpes surdos da coexistência com os outros.
[316]
Um quietismo estético da vida, pelo qual consigamos que os insultos e as humilhações, que a vida e os viventes nos infligem, não cheguem a mais que a uma periferia desprezível da sensibilidade, ao recinto externo da alma consciente.
Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.
[317]
Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única. Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me faz gestos que são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo, porém, me sucede com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam através dos atores que as figuram.
Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anônimo de diferença, uma desvantagem materializada. Há figuras de tempos idos, imagens espíritos em livros, que são para nós realidades maiores que aquelas indiferenças encarnadas que falam conosco por cima dos balcões, ou nos olham por acaso nos elétricos, ou nos roçam, transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais que paisagem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.
Tenho por mais minhas, com maior parentesco e intimidade, certas figuras que estão escritas em livros, certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso. E “carne e OSSO”, de fato, as descreve bem: parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e costeletas do Destino.
Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao fato, parece que abstruso, de que os outros são almas também.
Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ente espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma capaz de sofrer.
Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida… Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra coisa se não deve matar alguém… Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. É uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu?
Tenho subitamente a visão do cadáver, do caixão em que o meteram, da cova, inteiramente alheia, a que o haviam de ter levado. E vejo, de repente, que o caixeiro da tabacaria era, em certo modo, casaco torto e tudo, a humanidade inteira.
Foi só um momento. Hoje, agora, claramente, como homem que sou, ele morreu. Mais nada.
Sim, os outros não existem… É para mim que este poente estagna, pesadamente alado, as suas cores nevoentas e duras. Para mim, sob o poente, treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo aberto sobre o rio cuja maré chega. Foi enterrado hoje na vala comum o caixeiro da tabacaria? Não é para ele o poente de hoje. Mas, de o pensar, e sem que eu queira, também deixou de ser para mim…
[318]
barcos que passam na noite e se nem saúdam nem conhecem.
[319]
Reconheço hoje que falhei; só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa dos loucos… Era lúcido e triste como um dia frio.
As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confortam. Ver passar a vida sob um dia azul compensa-me de muito. Esqueço indefinidamente, esqueço mais do que podia lembrar. O meu coração translúcido e aéreo penetra-se da suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente. Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via.
Tenho elementos espirituais de boêmio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boêmio — o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boêmio isolado, o que é um absurdo; ou um boêmio místico, o que é uma coisa impossível.
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a Natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais; mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá esbatido na minha sonolência de viver.
Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um Narciso cego, que gozasse a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e noturna, segredada às emoções abstratas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
Os teus colares de pérolas fingidas amaram comigo as minhas horas melhores. Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes. Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino? Era por o conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus lábios desistidos. A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a água era pelúcida de silêncios. Nas pequenas cavidades rugosas das pedras, por onde a água escolhia, havia segredos que tivéramos quando crianças, sonhos do tamanho parado dos nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras da cascata, na execução estática duma grande ação militar, sem que faltasse nada aos nossos sonhos, nem nada tardasse às nossas suposições.
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim.
[320]
Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser duros no sol baço, começava o outono antes que viesse, numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais claro, outras mais verde, da própria ausência de substância da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens, púrpuras diferentes e esbatidas; era, não já um torpor, mas um tédio, em toda a solidão quieta por onde nuvens atravessam.
A entrada do verdadeiro outono era depois anunciada por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das cores que ainda se não haviam esbatido, por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das paisagens e o aspecto disperso das coisas. Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para a vida.
Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de vento; soavam folhas num tom seco, ainda que não fossem folhas secas; toda a terra tomava a cor e a forma impalpável de um paul incerto. Descobria-se o que fora sorriso último, num cansaço de pálpebras, numa indiferença de gestos. E assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava, íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de redemoinho num átrio flutuava através da nossa consciência de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verdadeiramente a vida.
Mas as primeiras chuvas de inverno, vindas ainda no outono já duro, lavavam estas meias tintas como sem respeito. Ventos altos chiando em coisas paradas, barulhando coisas presas, arrastando coisas móveis, erguiam, entre os brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto anônimo, sons tristes e quase raivosos de desespero sem alma.
E por fim o outono cessava, a frio e cinzento. Era um outono de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do inverno traz de bom — verão duro findo, primavera por chegar, outono definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.
Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, é porque o lembro. O outono que tenho é o que perdi.
[321]
A oportunidade é como o dinheiro, que, aliás, não é mais que uma oportunidade. Para quem age, a oportunidade é um episódio da vontade, e a vontade não me interessa. Para quem, como eu, não age, a oportunidade é o canto da falta de sereias. Tem que ser desprezado com volúpia, arrumado alto para nenhum uso.
Ter ocasião de… Nesse campo se disporá a estátua da renúncia.
Ó largos campos ao sol, o espectador, por quem só sois vivos, contempla-vos da sombra.
O álcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a respiração do seu ritmo e se desfazem sorrindo, na ironia das cobras da espuma, na magnificência triste das penumbras.
[322]
Por fácil que seja, todo o gesto representa a violação de um segredo espiritual. Todo o gesto é um ato revolucionário; um exílio, talvez, da verdadeira dos nossos propósitos.
A ação é uma doença do pensamento, um cancro da imaginação. Agir é exilar-se. Toda a ação é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizá-lo. No mito de Jesus está escrito isto; Deus, ao tornar-se homem, não pode acabar senão pelo martírio. O supremo sonhador tem por filho o martírio supremo.
As sombras rotas das folhagens, o canto trêmulo das aves, os braços estendidos dos rios, trepidando ao sol o seu luzir fresco, as verduras, as papoulas, e a simplicidade das sensações — ao sentir isto, sinto dele saudades, como se ao senti-lo o não sentisse.
As horas, como um carro ao entardecer, regressam chiando pelas sombras dos meus pensamentos. Se ergo os olhos de sobre o meu pensamento, elas ardem-me do espetáculo do mundo.
Para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. Por isso realizar é não realizar. A vida está cheia de paradoxos como as rosas de espinhos.
Eu desejaria fazer a apoteose de uma incoerência nova, que ficasse sendo como que a constituição negativa da nova anarquia das almas. Compilar um digesto dos meus sonhos pareceu-me sempre que seria útil à humanidade. Por isso mesmo me abstive de o tentar.
A ideia de que o que eu fazia pudesse ser aproveitável magoou-me, secou-me para mim.
Tenho quintas nos arredores da vida. Passo ausências de cidade da minha ação entre as árvores e as flores do meu devaneio. Ao meu retiro verde nem chegam os ecos da vida dos meus gestos. Durmo a minha memória como procissões infinitas. Nos cálices da minha meditação só bebo o sorriso do vinho louro; só o bebo com os olhos, fechando-os, e a Vida passa como uma vela longínqua.
Os dias de sol sabem-me ao que eu não tenho. O céu azul, e as nuvens brancas, as árvores, a flauta que ali falta — éclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos… Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos.
A academia vegetal dos silêncios… teu nome soando como as papoulas… os tanques… o meu regresso… o padre louco que endoideceu na missa. Estas recordações são dos meus sonhos… Não fecho os olhos mas não vejo nada… Não estão aqui as coisas que vejo… Águas…
Numa confusão de emaranhamentos, o verdor das árvores é parte do meu sangue. Bate-me a vida no coração distante. Eu não fui destinado à realidade, e a vida quis vir ter comigo.
A tortura do destino! Quem sabe se morrerei amanhã! Quem sabe se não vai acontecer-me hoje qualquer coisa de terrível para a minha alma! … Às vezes, quando penso nestas coisas, apavora-me a tirania suprema que nos faz ter de olhar puros não sabendo de que acontecimento a incerteza de mim vai ao encontro.
[323]
… a chuva caía ainda triste, mas mais branda, como num cansaço universal; não havia relâmpagos, e apenas, de vez em quando, com o som de já longe, um trovão curto resmungava duro, e às vezes como que se interrompia, cansado também. Como que subitamente, a chuva abrandou mais ainda. Um dos empregados abriu as janelas para a Rua dos Douradores. Um ar fresco, com restos mortos de quente, insinuou-se na sala grande. A voz do patrão Vasques soou alta no telefone do gabinete: “Então, ainda está a falar? ” E houve um som de fala seca e à parte — comentário, obsceno (adivinha-se), à menina longínqua.
[324]
Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos.
Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os senti-los se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se entrepenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstratas, e as abstratas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde.
[325]
Ficções do interlúdio, cobrindo coloridamente o marasmo e a desídia da nossa íntima descrença.
[326]
de resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante ação, nunca desaparecem o do contato com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
O Universo, a Vida — seja isso real ou ilusão — é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo — ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.
[327]
Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver senão suavidade.
[328]
Junta as mãos, põe-as entre as minhas e escuta-me, ó meu amor.
Eu quero, falando numa voz suave e embaladora, como a dum confessor que aconselha, dizer-te o quanto a ânsia de atingir fica aquém do que atingimos.
Quero rezar contigo, a minha voz com a tua atenção, a litania da desesperança.
Não há obra de artista que não pudera ter sido mais perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos versos tem que não pudessem ser melhores, poucos episódios que não pudessem ser mais intensos, e nunca o seu conjunto é tão perfeito que o não pudesse ser muitíssimo mais.
Ai do artista que repara para isto! que um dia pensa nisto! Nunca mais o seu trabalho é alegria, nem o seu sono sossego. É moço sem mocidade e envelhece descontente.
E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito.
Se eu bem pudesse compenetrar-me realmente de quanto a renúncia é bela, que dolorosamente feliz para sempre que eu seria!
Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os ouvidos com que me ouço falar alto não me escutam do mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço pensar palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar, tantas vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros quanto me não entenderão!
De quão complexas ininteligências não é feita a compreensão dos outros de nós.
A delícia de se ver compreendido, não a pode ter quem se quer não compreendido, porque só aos complexos e incompreendidos isso acontece; e os outros, os simples, aqueles que os outros podem compreender — esses nunca têm o desejo de serem compreendidos.
[329]
Pensaste já, ó Outra, quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas uma voz que está dentro de si.
As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte, volúpias que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar sentido profundo.
A voz dos regatos que interpretas, pura explicadora, a voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio — ah, meu amor ignoto, quanto tudo isso é nós e fantasias tudo de cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!
[330]
Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir.
Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente — quem excederá, ó, o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se!
Não conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar coisas que não são precisas? Sabes o sabor aos caminhos que, se os tomássemos esquecidos, era por erro que os tomaríamos? Que ato humano tem uma cor tão bela como os atos espúrios — que mentem à sua própria natureza e desmentem o que lhes é a intenção?
A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!
Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas.
Que santificados de Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram coroá-la de nunca a fazer. (Se fora imperfeita, vá. )
Quão mais bela a Gioconda desde que a não pudéssemos ver! E se quem a roubasse a queimasse, quão artista seria, que maior artista que aquele que a pintou!
Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem desse a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficou, sublimemente, só o meio de uma estrada.
A beleza das ruínas? O não servirem já para nada.
A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser — o absurdo, meu amor, o absurdo.
E eu que digo isto — por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo, — eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.
E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.
E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer…
[331]
Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas, mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.
Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida — uma relação visual, direi — entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajeto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é menos.
Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espetáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.
O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anônima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer.
[332]
O pasmo que me causa a minha capacidade para a angústia. Não sendo, de natureza, um metafísico, tenho passado dias de angústia aguda, física mesmo, com a indecisão dos problemas metafísicos e religiosos… Vi depressa que o que eu tinha por a solução do problema religioso era resolver um problema emotivo em termos da razão.
[333]
Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.
Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.
Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.
[334]
Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.
Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.
Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer — tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo. Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório! ) pousada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anônimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!
Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demônios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que pousa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente, com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direção do teto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia.
[335]
“Sentir é uma maçada. ” Estas palavras casuais de não sei que conviva à conversa de uns minutos, ficou-me sempre brilhando no chão da memória. A própria forma plebeia da frase lhe dá sal e pimenta.
[336]
Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nela. Já este modo de dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efetivamente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreender isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível para quem não conheça mais que um burro.
As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e tipos da compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser entendidas.
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de fato a suporto. E um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim.
[337]
O que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gêmeo do cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho um receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo me parece antecipadamente frusto. O insuportável tédio de todas estas caras, alvares de inteligência ou de falta dela, grotescas até à náusea de felizes ou infelizes, horrorosas porque existem, maré separada de coisas vivas que me são alheias…
[338]
Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias ou por acaso. Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como diretamente realidades físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós. Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que me veem, como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia. Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há espelho que nos tire de nós mesmos. Era precisa outra alma, outra colocação do olhar e do pensar. Se eu fosse ator prolongado de cinema, ou gravasse em discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da minha consciência de mim.
Não sei se os outros serão assim, se a ciência da vida não consistirá essencialmente em ser tão alheio a si mesmo que instintivamente se consegue um alheamento e se pode participar da vida como estranho à consciência; ou se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de todo a bruteza de não serem senão eles, vivendo exteriormente por aquele milagre pelo qual as abelhas formam sociedades mais organizadas que qualquer nação, e as formigas comunicam entre si com uma fala de antenas mínimas que excede nos resultados a nossa complexa ausência de nos entendermos.
A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito demais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exatidão inscrita num livro irônico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras.
Tudo é complexo para quem pensa, e sem dúvida o pensamento o torna mais complexo por volúpia própria. Mas quem pensa tem a necessidade de justificar a sua abdicação com um vasto programa de compreender, exposto, como as razões dos que mentem, com todos os pormenores excessivos que descobrem, com o espalhar da terra, a raiz da mentira.
Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de qualquer modo, não importa porque, de qualquer modo, nada importa. Tudo isto, todas estas considerações extraviadas da rua larga, vegeta nos quintais dos deuses exclusos como trepadeiras longe das paredes. E sorrio, na noite em que concluo sem fim estas considerações sem engrenagem, da ironia vital que as faz surgir de uma alma humana, órfã, de antes dos astros, das grandes razões do Destino.
[339]
Paira-me à superfície do cansaço qualquer coisa de áureo que há sobre as águas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique esta imagem, ou este símbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é que vejo, como se de fato visse, um sol por trás de montes, dando raios perdidos sobre o lago que os recebe a ouro escuro.
Um dos malefícios de pensar é ver quando se está pensando. Os que pensam com o raciocínio estão distraídos, os que pensam com a emoção estão dormindo, os que pensam com a vontade estão mortos. Eu, porém, penso com a imaginação, e tudo quanto deveria ser em mim ou razão, ou mágoa, ou impulso, se me reduz a qualquer coisa indiferente e distante, como este lago porto entre rochedos onde o último do sol paira desalongadamente.
Porque parei, estremeceram as águas. Porque refleti, o sol recolheu-se. Cerro os olhos lentos e cheios de sono, e não há dentro de mim senão uma região lacustre onde a noite começa a deixar de ser dia num reflexo castanho escuro de águas de onde as algas surgem.
Porque escrevi, nada disse. Minha impressão é que o que existe é sempre em outra região, além de montes, e que há grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos.
Cessei, como o sol na minha paisagem. Não fica, do que foi dito ou visto, senão uma noite já fechada, cheia de brilho morto de lagos, numa planície sem patos bravos, morta, fluida, úmida e sinistra.
[340]
Não acredito na paisagem.
