Banalizou-se tanto, não só o ato de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheado e desinteressado, meio atento, e sem
entusiasmo
nem fulgor.
Pessoa - Livro do Desassossego
Estagnei, como um lago deserto, entre paisagens que não há.
No entretanto, corria-me bem a monotonia variada dos dias, a sucessão nunca igual das horas iguais, a vida. Corria-me bem. Se dormisse, não me correria de outro modo. Estagnei, como um lago que não há, entre paisagens desertas.
É frequente o desconhecer-me — o que sucede com frequência aos que se conhecem. Assisto a mim nos vários disfarces com que sou vivo. Possuo de quanto muda o que é sempre o mesmo, de quanto se faz tudo o que é nada.
Relembro, longínquo em mim, como se viajara para dentro, a monotonia, todavia tão diferente, daquela casa de província… Ali passei a infância, mas não saberia dizer, se quisesse fazê-lo, se com mais ou menos felicidade do que passo a vida de hoje. Era outro o quem sou que ali vivia: são vidas diferentes, diversas, incomparáveis. As mesmas monotonias, que as aproximam por fora, eram sem dúvida diferentes por dentro. Não eram duas monotonias, mas duas vidas.
A que propósito relembro?
O cansaço. Lembrar é um repouso, porque é não agir. Que de vezes, para maior descanso, relembro o que nunca foi, e não há nitidez nem saudade nas minhas memórias das províncias onde estive como os que moram; tábua a tábua do soalho, oscilo o oscilar de outrem, nas vastas salas onde nunca morei.
De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação — a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar em mim.
De tal modo me desvesti do meu próprio ser que existir é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E em torno de mim todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens que nunca verei.
[457]
As coisas modernas são
A evolução dos espelhos;
Os guarda-fatos.
Passamos a ser criaturas vestidas, de corpo e alma.
E, como a alma corresponde sempre ao corpo, um traje espiritual estabeleceu-se. Passamos a ter a alma essencialmente vestida, assim como passamos — homens, corpos — à categoria de animais vestidos.
Não é só o fato de que o nosso traje se torna uma parte de nós. É também a complicação desse traje e a sua curiosa qualidade de não ter quase nenhuma relação com os elementos da elegância natural do corpo nem com os dos seus movimentos.
Se me pedissem que explicasse o que é este meu estado de alma, através de uma razão social, eu responderia mudamente apontando para um espelho, para um cabide e para uma caneta com tinta.
[458]
No nevoeiro leve da manhã de meia-primavera, a Baixa desperta entorpecida e o sol nasce como que lento. Há uma alegria sossegada no ar com metade de frio, e a vida, ao sopro leve da brisa que não há, tirita vagamente do frio que já passou, pela lembrança do frio mais que pelo frio, pela comparação com o verão próximo, mais que pelo tempo que está fazendo.
Não abriram ainda as lojas, salvas as leitarias e os cafés, mas o repouso não é de torpor, como o de domingo; é de repouso apenas. Um vestígio louro antecede-se no ar que se revela, e o azul cora palidamente através da bruma que se esfina. O começo do movimento rareia pelas ruas, destaca-se a separação dos peões, e nas poucas janelas abertas, altas, madrugam também aparecimentos. Os elétricos traçam a meio-ar o seu vinco móbil amarelo e numerado. E, de minuto a minuto, sensivelmente, as ruas desdesertam-se.
Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem emoção. Despertei cedo; vim para a rua sem preconceitos. Examino como quem cisma. Vejo como quem pensa. E uma leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a bruma que vai saindo do exterior parece que se me infiltra lentamente.
Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um biombo branco onde a realidade projeta cores e luz em vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se nega, e o meu próprio abstrato observar era uma negação ainda.
Tolda-se o ar de falta de névoa, tolda-se de luz pálida, em a qual a névoa como que se misturou. Reparo subitamente que o ruído é muito maior, que muito mais gente existe. Os passos dos mais transeuntes são menos apressados. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa dos outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, e [a] igualdade divergente das vendedeiras de tudo mais desmonotoniza-se só no conteúdo das cestas, onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais do seu ofício andante. Os polícias estagnam nos cruzamentos, desmentido parados da civilização ao movimento invisível da subida do dia.
Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo — contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independentemente de se lhe chamar varina, e de saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do Mistério, mas diretamente como florações da Realidade.
Soam — devem ser oito as que não conto — badaladas de horas de sino ou relógio grande. Acordo de mim pela banalidade de haver horas, clausura que a vida social impõe à continuidade do tempo fronteira no abstrato, limite no desconhecido. Acordo de mim e, olhando para tudo, agora já cheio de vida e de humanidade costumada, vejo que a névoa que saiu de todo do céu, salvo o que no azul ainda paira de ainda não bem azul, me entrou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as coisas, que é por onde elas têm contato com a minha alma. Perdi a visão do que via. Ceguei com vista. Sinto já com a banalidade do conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida.
Sim, a vida a que eu também pertenço, e que também me pertence a mim; não já a Realidade, que é só de Deus, ou de si mesma, que não contém mistério nem verdade, que, pois que é real ou o finge ser, algures exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, ideia de uma alma que fosse exterior.
Volvo lentos os passos mais rápidos do que julgo ao portão para onde subirei de novo para casa. Mas não entro; hesito; sigo para diante. A Praça da Figueira, bocejando venderes [sic] de várias cores, cobre-me, esfreguesando-se o horizonte de ambulante. Avanço lentamente, morto, e a minha visão já não é minha, já não é nada: é só a do animal humano que herdou, sem querer, a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã e todas as mais ilusões que formam a civilização em que sinto. Onde estarão os vivos?
[459]
Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade. Gosto, sem isso, de estar na cidade, porém com isso o meu gosto seria dois.
[460]
Quanto mais alta a sensibilidade, e mais sutil a capacidade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas. É precisa uma prodigiosa inteligência para ter angústia ante um dia escuro. A humanidade, que é pouco sensível, não se angustia com o tempo, porque faz sempre tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em cima.
O dia baço e mole escalda umidamente. Sozinho no escritório, passo em revista a minha vida, e o que vejo nela é como o dia que me oprime e me aflige. Vejo-me criança contente de nada, adolescente aspirando a tudo, viril sem alegria nem aspiração. E tudo isto se passou na moleza e no embaciado, como o dia que mo faz ver ou lembrar.
Qual de nós pode, voltando-se no caminho onde não há regresso, dizer que o seguiu como o devia ter seguido?
[461]
Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque das coisas mais pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol, como não há-de sofrer no escuro do dia sempre encoberto da sua vida?
O meu isolamento não é uma busca de felicidade, que não tenho alma para conseguir; nem de tranquilidade, que ninguém obtém senão quando nunca a perdeu — mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.
As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada, o antessabor da morte e do apagamento.
Nunca tive alguém a quem pudesse chamar “Mestre”. Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou um caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apolo ou Atena me apareceu, para que me iluminasse a alma.
[462]
Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contato com as coisas levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contato, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contato com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os fatos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incômodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara à infância antes da análise, ainda que antes da vontade!
Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insetos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir.
Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe, a graça morta dos bancos de pedra para os que foram — pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei.
[463]
Sossego enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício some-se-me da alma como se não fora nunca. Fico só e calmo. A hora que passo é como aquela em que me convertesse a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se deixasse de existir, conservando a consciência disso.
Sossego, sim, sossego. Uma grande calma, suave como uma inutilidade, desce em mim ao fundo do meu ser. As páginas lidas, os deveres cumpridos, os passos e os acasos de viver — tudo isso se me tornou numa vaga penumbra, num halo mal visível, que cerca qualquer coisa tranquila que não sei o que é. O esforço, em que pus, uma ou outra vez, o esquecimento da alma; o pensamento, em que pus, uma vez ou outra, o esquecimento da ação — ambos se me volvem numa espécie de ternura sem sentimento, de compaixão frusta e vazia.
Não é o dia lento e suave, nublado e brando. Não é a aragem imperfeita, quase nada, pouco mais do que o ar que já se sente. Não é a cor anônima do céu aqui e ali azul, frouxamente. Não. Não, porque não sinto. Vejo sem intenção nem remédio. Assisto atento a espetáculo nenhum. Não sinto alma, mas sossego. As coisas externas, que estão nítidas e paradas, ainda as que se movem, são para mim como para o Cristo seria o mundo, quando, da altura de tudo, Satã o tentou. São nada, e compreendo que o Cristo se não tentasse. São nada, e não compreendo como Satã, velho de tanta ciência, julgasse que com isso tentaria.
Corre leve, vida que se não sente, riacho em silêncio móbil sob árvores esquecidas! Corre branda, alma que se não conhece, murmúrio que se não vê para além de grandes ramos caídos! Corre inútil, corre sem razão, consciência que o não é de nada, vago brilho ao longe, entre clareiras de folhas, que não se sabe de onde vem nem onde vai! Corre, corre, e deixa-me esquecer!
Vago sopro do que não ouso viver, hausto frustai do que não pôde sentir, murmúrio inútil do que não quis pensar, vai lento, vai frouxo, vai em torvelinhos que tens que ter e em declives que te dão, vai para a sombra ou para a luz, irmão do mundo, vai para a glória ou para o abismo, filho do Caos e da Noite, lembrando ainda, em qualquer recanto teu, de que os Deuses vieram depois, e de que os Deuses passam também.
[464]
Quem tenha lido as páginas deste livro, que estão antes desta, terá sem dúvida formado a ideia de que sou um sonhador. Ter-se-ia enganado se a formou. Para ser sonhador falta-me o dinheiro.
As grandes melancolias, as tristezas cheias de tédio, não podem existir senão com um ambiente de conforto e de sóbrio luxo. Por isso o Egeus de Poe, concentrado horas e horas numa absorção doentia, o faz num castelo antigo, ancestral, onde, para além das portas da grande sala onde jaz a vida, mordomos invisíveis administram a casa e a comida.
O grande sonho requer certas circunstâncias sociais. Um dia que, embevecido por certo movimento rítmico e dolente do que escrevera, me recordei de Chateaubriand, não tardou que me lembrasse de que eu não era visconde, nem sequer bretão. Outra vez que julguei sentir, no sentido do que dissera, uma semelhança com Rousseau, não tardou, também, que me ocorresse que, não [tendo] tido o privilégio de ser fidalgo e castelão, também o não tivera de ser suíço e vagabundo.
Mas, enfim, também há universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver. E por isso, se são pobres, como a paisagem de carroças e caixotes, os sonhos que consigo extrair de entre as rodas e as tábuas, ainda assim são para mim o que tenho, e o que posso ter.
Alhures, sem dúvida, é que os poentes são. Mas até deste quarto andar sobre a cidade se pode pensar no infinito. Um infinito com armazéns em baixo, é certo, mas com estrelas ao fim… É o que me ocorre, neste acabar de tarde, à janela alta, na insatisfação do burguês que não sou e na tristeza do poeta que nunca poderei ser.
[465]
Quando o estio entra entristeço. Parece que a luminosidade, ainda que acre, das horas estivais devera acarinhar quem não sabe quem é. Mas não, a mim não me acarinha. Há um contraste demasiado entre a vida externa que exubera e o que sinto e penso, sem saber sentir nem pensar — o cadáver perenemente insepulto das minhas sensações. Tenho a impressão de que vivo, nesta pátria informe chamada o universo, sob uma tirania política que, ainda que me não oprima diretamente, todavia ofende qualquer oculto princípio da minha alma. E então desce em mim, surdamente, lentamente, a saudade antecipada do exílio impossível.
Tenho principalmente sono. Não um sono que traz latente, como todos os sonos, ainda os mórbidos, o privilégio físico do sossego. Não um sono que, porque vai esquecer a vida, e porventura trazer sonhos, traz na bandeja com que nos vem até à alma as oferendas plácidas de uma grande abdicação. Não: este é um sono que não consegue dormir, que pesa nas pálpebras sem as fechar, que junta num gesto que se sente ser de estupidez e repulsa as comissuras sentidas dos beiços descrentes. Este é um sono como o que pesa inutilmente sobrei o corpo nas grandes insônias da alma.
Só quando vem a noite de algum modo sinto, não uma alegria, mas um repouso que, por outros repousos serem contentes, se sente contente por analogia dos sentidos. Então o sono passa, a confusão do lusco-fusco mental que esse sono dera esbate-se, esclarece-se, quase se ilumina. Vem, um momento, a esperança de outras coisas. Mas essa esperança é breve. O que sobrevém é um tédio sem sono nem esperança, o mau despertar de quem não chegou a dormir. E da janela do meu quarto fito, pobre alma cansada de corpo, muitas estrelas; muitas estrelas, nada, o nada, mas muitas estrelas…
[466]
O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.
Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver.
O criador do espelho envenenou a alma humana.
[467]
Ouvia-me lendo os meus versos — que nesse dial li bem, porque me distraí — e disse-me, com a simplicidade de uma lei natural: “Você, assim, e com outra cara, seria um grande fascinador. ” A palavra “cara”, mais que a referência que continha, ergueu-me de mim pela gola do que me não conheço.
Vi o espelho do meu quarto, o meu pobre rosto de mendigo sem pobreza; e de repente o espelho virou-se e o espectro da Rua dos Douradores abriu-se diante de mim como um nirvana do carteiro.
A acuidade das minhas sensações chega a ser uma doença que me é alheia. Sofre-a outro de quem eu sou a parte doente, porque verdadeiramente sinto como em dependência de uma maior capacidade de sentir. Sou como um tecido especial, ou até uma célula, sobre a qual pesasse toda a responsabilidade de um organismo.
Se penso, é porque divago; se sonho, é porque estou desperto. Tudo em mim se embrulha comigo, e não tem forma de saber de ser.
[468]
Quando vivemos constantemente no abstrato — seja o abstrato do pensamento, seja o da sensação pensada —, não tarda que, contra nosso mesmo sentimento ou vontade, se nos tornem fantasmas aquelas coisas da vida real que, em acordo com nós mesmos, mais deveríamos sentir.
Por mais amigo, e verdadeiramente amigo, que eu seja de alguém, o saber que ele está doente, ou que morreu, não me dá mais que uma impressão vaga, incerta, apagada, que me envergonho de sentir. Só a visão direta do caso, a sua paisagem, me daria emoção. À força de viver de imaginar, gasta-se o poder de imaginar, sobretudo o de imaginar o real. Vivendo mentalmente do que não há nem pode haver, acabamos por não poder cismar o que pode haver.
Disseram-me hoje que tinha entrado para o hospital, para ser operado, um velho amigo meu, que não vejo há muito tempo, mas que sinceramente lembro sempre com o que suponho ser saudade. A única sensação que recebi, de positiva e de clara, foi a da maçada que forçosamente me daria o ter de ir visitá-lo, com a alternativa irônica de, não tendo paciência para a visita, ficar arrependido de a não fazer.
Nada mais… De tanto lidar com sombras, eu mesmo me converti numa sombra — no que penso, no que sinto, no que sou. A saudade do normal que nunca fui entra então na substância do meu ser. Mas é ainda isso, e só isso, que sinto. Não sinto propriamente pena do amigo que vai ser operado. Não sinto propriamente pena de todas as pessoas que vão ser operadas, de todos quantos sofrem e penam neste mundo. Sinto pena, tão-somente, de não saber ser quem sentisse pena.
E, num momento, estou pensando em outra coisa, inevitavelmente, por um impulso que não sei o que é. E então, como se estivesse delirando, mistura-se-me com o que não cheguei a sentir, com o que não pude ser, um rumor de árvores, um som de água correndo para tanques, uma quinta inexistente… Esforço-me por sentir, mas já não sei como se sente. Tornei-me a sombra de mim mesmo, a quem entregasse o meu ser. Ao contrário daquele Peter Schlemil do conto alemão, não vendi ao Diabo a minha sombra, mas a minha substância. Sofro de não sofrer, de não saber sofrer. Vivo ou finjo que vivo? Durmo ou estou desperto? Uma vaga aragem, que sai fresca do calor do dia, faz-me esquecer tudo. Pesam-me as pálpebras agradavelmente… Sinto que este mesmo sol doura os campos onde não estou e onde não quero estar… Do meio dos ruídos da cidade sai um grande silêncio… Que suave! Mas que mais suave, talvez, se eu pudesse sentir! …
[469]
O próprio escrever perdeu a doçura para mim.
Banalizou-se tanto, não só o ato de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheado e desinteressado, meio atento, e sem entusiasmo nem fulgor.
[470]
Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morrem o peixe e Oscar Wilde.
[471]
Desde que possamos considerar este mundo uma ilusão e um fantasma, poderemos considerar tudo que nos acontece como um sonho, coisa que fingiu ser porque dormíamos. E então nasce em nós uma indiferença sutil e profunda para com todos os desaires e desastres da vida. Os que morrem viraram a uma esquina, e por isso os deixamos de ver; os que sofrem passam perante nós, se sentimos, como um pesadelo, se pensamos, como um devaneio ingrato. E o nosso próprio sofrimento não será mais que esse nada. Neste mundo dormimos sobre o lado esquerdo e ouvimos nos sonhos a existência opressa do coração.
Mais nada… Um pouco de sol, um pouco de brisa, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir… Mais nada, mais nada… Sim, mais nada…
[472]
Atingir, no estado místico, só o que esse estado tem de grato sem o que tem de exigente; ser o extático de deus nenhum, o místico ou epopta sem iniciação; passar o curso dos dias na meditação de um paraíso em que se não crê — isto tudo sabe bem à alma, se ela conhece o que é desconhecer.
Vão altas, por cima de onde estou, corpo dentro de uma sombra, as nuvens silenciosas; vão altas, por cima de onde estou, alma cativa num corpo, as verdades incógnitas… Vai alto tudo… E tudo passa no alto como em baixo, sem nuvem que deixe mais do que chuva ou verdade que deixe mais do que dor… Sim, tudo o que é alto passa alto, e passa; tudo o que é de apetecer está longe e passa longe… Sim, tudo atrai, tudo é alheio e tudo passa.
Que me importa saber, ao sol ou à chuva, corpo ou alma, que passarei também? Nada, salvo a esperança de [que] tudo seja nada e portanto o nada seja tudo.
[473]
Em qualquer espírito, que não seja disforme, existe a crença em Deus. Em qualquer espírito, que não seja disforme, não existe crença em um Deus definido. É qualquer ente, existente e impossível, que rege tudo; cuja pessoa, se a tem, ninguém pode definir; cujos fins, se deles usa, ninguém pode compreender. Chamando-lhe Deus dizemos tudo, porque, não tendo a palavra Deus sentido algum preciso, assim o afirmamos sem dizer nada. Os atributos de infinito, de eterno, de onipotente, de sumamente justo ou bondoso, que por vezes lhe colamos, descolam-se por si como todos os adjetivos desnecessários quando o substantivo basta. E Ele, a que, por indefinido, não podemos dar atributos, é, por isso mesmo, o substantivo absoluto. A mesma certeza e o mesmo vago existem quanto à sobrevivência da alma. Todos nós sabemos que morremos; todos nós sentimos que não morreremos. Não é bem um desejo, nem uma esperança, que nos traz essa visão no escuro de que a morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito com as entranhas, que repudia [. . . ]
[474]
Um dia
Em vez de almoçar — necessidade que tenho de fazer acontecer-me todos os dias — fui ver o Tejo, e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei útil à alma vê-lo. Ainda assim…
Viver não vale a pena. Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos. O êxtase que não incluísse a vida! …
Criar ao menos um pessimismo novo, uma nova negação, para que tivéssemos a ilusão que de nós alguma coisa, ainda que para mal, ficava!
[475]
De que é que você está a rir? , perguntou-me sem mal a voz do Moreira de entre para lá das duas prateleiras do meu alçado. [. . . ] Era uma troca de nomes que eu ia fazendo…, e acalmei [os] pulmões ao falar. [. . . ] Ah, disse o Moreira rapidamente, e a paz poeirosa desceu de novo sobre o escritório e sobre mim.
O senhor Visconde de Chateaubriand aqui a fazer contas! O senhor professor Amiel aqui num banco alto real! O senhor Conde Alfred de Vigny a debitar o Grandela! Senancour nos Douradores! Nem o Bourget, coitado, que custa a ler como uma escada sem elevador… Volto-me para trás do parapeito para ver bem de novo o meu Boulevard de Saint Germain, e justamente nesta altura o sócio do roceiro está cuspindo para a rua. E entre pensar tudo isto e estar fumando, e não ligar bem uma coisa e outra, o riso mental encontra o fumo, e, embrulhando-se na garganta, expande-se num ataque tímido de riso audível.
[476]
Parecerá a muitos que este meu diário, feito para mim, é artificial demais. Mas é de meu natural ser artificial. Com que hei-de eu entreter-me, depois, senão com escrever cuidadosamente estes apontamentos espirituais? De resto, não cuidadosamente os escrevo. E, mesmo, sem cuidado limador que os agrupo. Penso naturalmente nesta minha linguagem requintada. Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade. A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade constante que me rói a vida.
Há claustros na hora. Entardeceu nas esquivanças. Nos olhos azuis dos tanques um último desespero reflete a morte do sol. Nós éramos tanta coisa dos parques antigos; de tão voluptuoso modo estávamos incorporados na presença das estátuas, no talhado inglês das áleas. Os vestidos, os espadins, as perruques, os meneios e os cortejos pertenciam tanto à substância de que o nosso espírito era feito! Nós quem? O repuxo apenas, no jardim deserto, água alada indo já menos alta no seu ato triste de querer voar.
[477]
… e os lírios nas margens de rios remotos, frios e solenes, numa tarde eterna no fundo de continentes verdadeiros. Sem mais nada e contudo verdadeiros.
[478]
(lunar scene)
Toda a paisagem não está em parte nenhuma.
[479]
Em baixo, afastando-se do alto onde estou em desnivelamentos de sombra, dorme ao luar, álgida, a cidade inteira. Um desespero de mim, uma angústia de existir preso a mim extravasa-se por mim todo sem me exceder, compondo-me o ser em ternura, medo, dor e desolação. Um tão inexplicável excesso de mágoa absurda, uma dor tão desolada, tão órfã, tão metafisicamente minha.
[480]
Alastra ante meus olhos a cidade incerta e silente. As casas desigualam-se num aglomerado retido, e o luar, com manchas de incerteza, estagna de madrepérola os solavancos mortos da profusão. Há telhados e sombras, janelas e idade média. Não há de que haver arredores. Pousa no que se vê um vislumbre de longínquo. Por sobre de onde vejo há ramos negros de árvores, e eu tenho o sono da cidade inteira no meu coração dissuadido. Lisboa ao luar e o meu cansaço de amanhã! Que noite! Prouvera a quem causou os pormenores do mundo que não houvesse para mim melhor estado ou melodia que o momento lunar destacado em que me desconheço conhecido. Nem brisa, nem gente interrompe o que não penso. Tenho sono do mesmo modo que tenho vida. Só que sinto nas pálpebras como se houvesse o que fazer-mas pesar. Ouço a minha respiração. Durmo ou desperto?
Custa-me um chumbo dos sentidos o mover-me com os pés para onde moro. A carícia do apagamento, a flor dada do inútil, o meu nome nunca pronunciado, o meu desassossego entre margens, o privilégio de deveres cedidos, e, na última curva do parque avoengo, o outro século como um roseiral.
[481]
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança. “Morreu ontem”, respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais — se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim — sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um “o que será dele? ”. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
Os grandes trechos
A divina inveja
Sempre que tenho uma sensação agradável em companhia de outros, invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo, deles.
A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.
A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazer-me notar isso seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram ante a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.
Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a torná-lo irrefragavelmente meu — de alterar, mentindo — o momento belo e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente — e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.
Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquiteto muito mais.
Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais — curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há-de evocar.
O meu triunfo máximo no gênero foi quando, a certa hora ambígua de aspecto e luz, olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos — curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço-cetim, não sei como, sob o espaço que perdura na abominável terceira dimensão. E a hora cheirou-me verdadeiramente a um ruído arrastado e longínquo e com uma grande inveja de realidade…
Carta
Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos como sonhos, para que fossem apenas janelas abertas para paisagens novas da tua alma. De tal modo arquitetar o teu corpo em arremedos de sonho que não fora possível ver-te sem pensar noutra coisa, que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas ao fundo doutras épocas, onde invisíveis pares diversos vivem sentimentos que não temos.
Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando — nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impossíveis.
A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim, mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligar as duas margens escuras do rio que vai ter ao ancião mar onde as caravelas são nossas para sempre.
Sorris? Eu não sabia disso, mas nos meus céus interiores andavam as estrelas. Chamas-me dormindo. Eu não reparava nisso mas no barco longínquo cuja vela de sonho ia sob o luar, vejo longínquas marinhas.
Cascata
A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são!
Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem que importem os valores que os homens dão às coisas nem as relações que os homens estabelecem entre elas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar… E há argumento algum, com jeito lógico para convencer, que me prove que os soldados reais não devem andar de cabeça para baixo?
A criança não dá mais valor ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? A criança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios, e todos os nossos ódios, e todos os nossos amores?
Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdadeira das coisas, que nós vestimos de convenções no mais nu vê-las, que nós embrumamos de ideias nossas no mais direto olhá-las!
Será Deus uma criança muito grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa? Tão irreal, tão, tão [. . . ]
Lancei-vos, rindo, esta ideia ao ar, e vede como ao vê-la distante de mim de repente vejo o que de horrorosa ela é (Quem sabe se ela não contém a verdade? ). E ela cai e quebra-se-me aos pés, em pó de horror e estilhaços de angústia…
Acordo para saber que existo…
Um grande tédio incerto gorgoleja erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá no fundo estúpido do jardim.
Cenotáfio
Nem viúva nem filho lhe pôs na boca o óbolo, com que pagasse a Caronte. São velados para nós os olhos com que transpôs o Estige e viu nove vezes refletido nas águas ínferas o rosto que não conhecemos. Não tem nome entre nós a sombra agora errante nas margens dos rios soturnos; o seu nome é sombra também.
Morreu pela Pátria, sem saber como nem porquê. O seu sacrifício teve a glória de não se conhecer. Deu a vida com toda a inteireza da alma: por isso, não por dever; por amor à Pátria, não por consciência dela. Defendeu-a como quem defende uma mãe, de quem somos filhos não por lógica, senão nascimento. Fiel ao segredo primevo, não pensou nem quis, mas viveu a morte instintivamente, como havia vivido a sua vida. A sombra que usa agora se irmana com as que caíram em Termópilas, fiéis na carne ao juramento que haviam nascido. Morreu pela Pátria como o sol nasce todos os dias. Foi por natureza o que a Morte havia de torná-lo. Não caiu servo de uma fé ardente, não o mataram combatendo pela baixeza de um grande ideal. Livre da injúria da fé e do insulto do humanitarismo, não caiu em defesa de uma ideia política, ou do futuro da humanidade, ou de uma religião por haver. Longe da fé no outro mundo, com que se enganam os crédulos de Maomé e os sequazes de Cristo, viu a morte chegar sem esperar nela a vida, viu a vida passar sem que esperasse vida melhor.
Passou naturalmente, como o vento e o dia, levando consigo a alma, que o fizera diferente. Mergulhou na sombra como quem entra na porta onde chega.
Morreu pela Pátria, a única coisa superior a nós de que temos conhecimento e razão. O paraíso do maometano ou cristão, o esquecimento transcendente do budista não se lhe refletiram nos olhos quando neles se apagou a chama, que a vivo na terra.
Não soube quem foi, como não sabemos quem é. Cumpriu o dever, sem saber que cumpria. Guiou-o o que faz florir as rosas e ser bela a morte das folhas. A vida não tem razão melhor, nem a morte melhor galardão. Visita agora, conforme os deuses concedem, as regiões onde não há a luz, passando os lamentos de Cocito e o fogo de Flegetonte e ouvindo na noite o lapso leve da lívida onda Leteia.
Ele é anônimo como o instinto que o matou. Não pensou que ia morrer pela pátria; morreu por ela. Não determinou cumprir o seu dever; cumpriu-o. A quem não teve nome na alma, justo é que não perguntemos que nome definiu seu corpo. Foi português; não sendo tal português, é o português sem o seu lugar não é ao pé dos criadores de Portugal, cuja estatura é outra, e outra a consciência. Não lhe cabe a companhia dos semideuses, por cuja audácia cresceram os caminhos do mar e houve mais terra que caber no nosso alcance.
Nem estátua nem lápide narre quem foi o que foi todos nós; como é todo o povo, deve ter por túmulo toda esta terra. Em sua própria memória o devemos sepultar, e por lápide pôr-lhe o seu exemplo apenas.
Conselhos às mal-casadas
(As mal-casadas são todas as mulheres casadas e algumas solteiras. )
Livrai-vos sobretudo de cultivar os sentimentos humanitários. O humanitarismo é uma grosseria. Escrevo a frio, raciocinadamente, pensando em vosso bem-estar, pobres mal-casadas.
A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível, deixando ao corpo, que se submeta à vontade.
Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter, porém, contatos carnais inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até aos — eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas, é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse.
Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro, todos os crimes, que se dão, é só em sonhos que se cometem! Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós não conhecemos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, profusos, frutuosos, foi o nosso sonho de Bórgia, foi a ideia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido, tinha de o ser porque existir é sempre estúpido e banal.
Dou-vos estes conselhos desinteressadamente, aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente, os meus sonhos são de império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja, só para me arreliar, porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.
Conselhos às mal-casadas
Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação.
Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual.
No entretanto, corria-me bem a monotonia variada dos dias, a sucessão nunca igual das horas iguais, a vida. Corria-me bem. Se dormisse, não me correria de outro modo. Estagnei, como um lago que não há, entre paisagens desertas.
É frequente o desconhecer-me — o que sucede com frequência aos que se conhecem. Assisto a mim nos vários disfarces com que sou vivo. Possuo de quanto muda o que é sempre o mesmo, de quanto se faz tudo o que é nada.
Relembro, longínquo em mim, como se viajara para dentro, a monotonia, todavia tão diferente, daquela casa de província… Ali passei a infância, mas não saberia dizer, se quisesse fazê-lo, se com mais ou menos felicidade do que passo a vida de hoje. Era outro o quem sou que ali vivia: são vidas diferentes, diversas, incomparáveis. As mesmas monotonias, que as aproximam por fora, eram sem dúvida diferentes por dentro. Não eram duas monotonias, mas duas vidas.
A que propósito relembro?
O cansaço. Lembrar é um repouso, porque é não agir. Que de vezes, para maior descanso, relembro o que nunca foi, e não há nitidez nem saudade nas minhas memórias das províncias onde estive como os que moram; tábua a tábua do soalho, oscilo o oscilar de outrem, nas vastas salas onde nunca morei.
De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação — a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar em mim.
De tal modo me desvesti do meu próprio ser que existir é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E em torno de mim todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens que nunca verei.
[457]
As coisas modernas são
A evolução dos espelhos;
Os guarda-fatos.
Passamos a ser criaturas vestidas, de corpo e alma.
E, como a alma corresponde sempre ao corpo, um traje espiritual estabeleceu-se. Passamos a ter a alma essencialmente vestida, assim como passamos — homens, corpos — à categoria de animais vestidos.
Não é só o fato de que o nosso traje se torna uma parte de nós. É também a complicação desse traje e a sua curiosa qualidade de não ter quase nenhuma relação com os elementos da elegância natural do corpo nem com os dos seus movimentos.
Se me pedissem que explicasse o que é este meu estado de alma, através de uma razão social, eu responderia mudamente apontando para um espelho, para um cabide e para uma caneta com tinta.
[458]
No nevoeiro leve da manhã de meia-primavera, a Baixa desperta entorpecida e o sol nasce como que lento. Há uma alegria sossegada no ar com metade de frio, e a vida, ao sopro leve da brisa que não há, tirita vagamente do frio que já passou, pela lembrança do frio mais que pelo frio, pela comparação com o verão próximo, mais que pelo tempo que está fazendo.
Não abriram ainda as lojas, salvas as leitarias e os cafés, mas o repouso não é de torpor, como o de domingo; é de repouso apenas. Um vestígio louro antecede-se no ar que se revela, e o azul cora palidamente através da bruma que se esfina. O começo do movimento rareia pelas ruas, destaca-se a separação dos peões, e nas poucas janelas abertas, altas, madrugam também aparecimentos. Os elétricos traçam a meio-ar o seu vinco móbil amarelo e numerado. E, de minuto a minuto, sensivelmente, as ruas desdesertam-se.
Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem emoção. Despertei cedo; vim para a rua sem preconceitos. Examino como quem cisma. Vejo como quem pensa. E uma leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a bruma que vai saindo do exterior parece que se me infiltra lentamente.
Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um biombo branco onde a realidade projeta cores e luz em vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se nega, e o meu próprio abstrato observar era uma negação ainda.
Tolda-se o ar de falta de névoa, tolda-se de luz pálida, em a qual a névoa como que se misturou. Reparo subitamente que o ruído é muito maior, que muito mais gente existe. Os passos dos mais transeuntes são menos apressados. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa dos outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, e [a] igualdade divergente das vendedeiras de tudo mais desmonotoniza-se só no conteúdo das cestas, onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais do seu ofício andante. Os polícias estagnam nos cruzamentos, desmentido parados da civilização ao movimento invisível da subida do dia.
Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo — contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independentemente de se lhe chamar varina, e de saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do Mistério, mas diretamente como florações da Realidade.
Soam — devem ser oito as que não conto — badaladas de horas de sino ou relógio grande. Acordo de mim pela banalidade de haver horas, clausura que a vida social impõe à continuidade do tempo fronteira no abstrato, limite no desconhecido. Acordo de mim e, olhando para tudo, agora já cheio de vida e de humanidade costumada, vejo que a névoa que saiu de todo do céu, salvo o que no azul ainda paira de ainda não bem azul, me entrou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as coisas, que é por onde elas têm contato com a minha alma. Perdi a visão do que via. Ceguei com vista. Sinto já com a banalidade do conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida.
Sim, a vida a que eu também pertenço, e que também me pertence a mim; não já a Realidade, que é só de Deus, ou de si mesma, que não contém mistério nem verdade, que, pois que é real ou o finge ser, algures exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, ideia de uma alma que fosse exterior.
Volvo lentos os passos mais rápidos do que julgo ao portão para onde subirei de novo para casa. Mas não entro; hesito; sigo para diante. A Praça da Figueira, bocejando venderes [sic] de várias cores, cobre-me, esfreguesando-se o horizonte de ambulante. Avanço lentamente, morto, e a minha visão já não é minha, já não é nada: é só a do animal humano que herdou, sem querer, a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã e todas as mais ilusões que formam a civilização em que sinto. Onde estarão os vivos?
[459]
Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade. Gosto, sem isso, de estar na cidade, porém com isso o meu gosto seria dois.
[460]
Quanto mais alta a sensibilidade, e mais sutil a capacidade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas. É precisa uma prodigiosa inteligência para ter angústia ante um dia escuro. A humanidade, que é pouco sensível, não se angustia com o tempo, porque faz sempre tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em cima.
O dia baço e mole escalda umidamente. Sozinho no escritório, passo em revista a minha vida, e o que vejo nela é como o dia que me oprime e me aflige. Vejo-me criança contente de nada, adolescente aspirando a tudo, viril sem alegria nem aspiração. E tudo isto se passou na moleza e no embaciado, como o dia que mo faz ver ou lembrar.
Qual de nós pode, voltando-se no caminho onde não há regresso, dizer que o seguiu como o devia ter seguido?
[461]
Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque das coisas mais pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol, como não há-de sofrer no escuro do dia sempre encoberto da sua vida?
O meu isolamento não é uma busca de felicidade, que não tenho alma para conseguir; nem de tranquilidade, que ninguém obtém senão quando nunca a perdeu — mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.
As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada, o antessabor da morte e do apagamento.
Nunca tive alguém a quem pudesse chamar “Mestre”. Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou um caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apolo ou Atena me apareceu, para que me iluminasse a alma.
[462]
Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contato com as coisas levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contato, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contato com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os fatos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incômodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara à infância antes da análise, ainda que antes da vontade!
Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insetos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir.
Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe, a graça morta dos bancos de pedra para os que foram — pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei.
[463]
Sossego enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício some-se-me da alma como se não fora nunca. Fico só e calmo. A hora que passo é como aquela em que me convertesse a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se deixasse de existir, conservando a consciência disso.
Sossego, sim, sossego. Uma grande calma, suave como uma inutilidade, desce em mim ao fundo do meu ser. As páginas lidas, os deveres cumpridos, os passos e os acasos de viver — tudo isso se me tornou numa vaga penumbra, num halo mal visível, que cerca qualquer coisa tranquila que não sei o que é. O esforço, em que pus, uma ou outra vez, o esquecimento da alma; o pensamento, em que pus, uma vez ou outra, o esquecimento da ação — ambos se me volvem numa espécie de ternura sem sentimento, de compaixão frusta e vazia.
Não é o dia lento e suave, nublado e brando. Não é a aragem imperfeita, quase nada, pouco mais do que o ar que já se sente. Não é a cor anônima do céu aqui e ali azul, frouxamente. Não. Não, porque não sinto. Vejo sem intenção nem remédio. Assisto atento a espetáculo nenhum. Não sinto alma, mas sossego. As coisas externas, que estão nítidas e paradas, ainda as que se movem, são para mim como para o Cristo seria o mundo, quando, da altura de tudo, Satã o tentou. São nada, e compreendo que o Cristo se não tentasse. São nada, e não compreendo como Satã, velho de tanta ciência, julgasse que com isso tentaria.
Corre leve, vida que se não sente, riacho em silêncio móbil sob árvores esquecidas! Corre branda, alma que se não conhece, murmúrio que se não vê para além de grandes ramos caídos! Corre inútil, corre sem razão, consciência que o não é de nada, vago brilho ao longe, entre clareiras de folhas, que não se sabe de onde vem nem onde vai! Corre, corre, e deixa-me esquecer!
Vago sopro do que não ouso viver, hausto frustai do que não pôde sentir, murmúrio inútil do que não quis pensar, vai lento, vai frouxo, vai em torvelinhos que tens que ter e em declives que te dão, vai para a sombra ou para a luz, irmão do mundo, vai para a glória ou para o abismo, filho do Caos e da Noite, lembrando ainda, em qualquer recanto teu, de que os Deuses vieram depois, e de que os Deuses passam também.
[464]
Quem tenha lido as páginas deste livro, que estão antes desta, terá sem dúvida formado a ideia de que sou um sonhador. Ter-se-ia enganado se a formou. Para ser sonhador falta-me o dinheiro.
As grandes melancolias, as tristezas cheias de tédio, não podem existir senão com um ambiente de conforto e de sóbrio luxo. Por isso o Egeus de Poe, concentrado horas e horas numa absorção doentia, o faz num castelo antigo, ancestral, onde, para além das portas da grande sala onde jaz a vida, mordomos invisíveis administram a casa e a comida.
O grande sonho requer certas circunstâncias sociais. Um dia que, embevecido por certo movimento rítmico e dolente do que escrevera, me recordei de Chateaubriand, não tardou que me lembrasse de que eu não era visconde, nem sequer bretão. Outra vez que julguei sentir, no sentido do que dissera, uma semelhança com Rousseau, não tardou, também, que me ocorresse que, não [tendo] tido o privilégio de ser fidalgo e castelão, também o não tivera de ser suíço e vagabundo.
Mas, enfim, também há universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver. E por isso, se são pobres, como a paisagem de carroças e caixotes, os sonhos que consigo extrair de entre as rodas e as tábuas, ainda assim são para mim o que tenho, e o que posso ter.
Alhures, sem dúvida, é que os poentes são. Mas até deste quarto andar sobre a cidade se pode pensar no infinito. Um infinito com armazéns em baixo, é certo, mas com estrelas ao fim… É o que me ocorre, neste acabar de tarde, à janela alta, na insatisfação do burguês que não sou e na tristeza do poeta que nunca poderei ser.
[465]
Quando o estio entra entristeço. Parece que a luminosidade, ainda que acre, das horas estivais devera acarinhar quem não sabe quem é. Mas não, a mim não me acarinha. Há um contraste demasiado entre a vida externa que exubera e o que sinto e penso, sem saber sentir nem pensar — o cadáver perenemente insepulto das minhas sensações. Tenho a impressão de que vivo, nesta pátria informe chamada o universo, sob uma tirania política que, ainda que me não oprima diretamente, todavia ofende qualquer oculto princípio da minha alma. E então desce em mim, surdamente, lentamente, a saudade antecipada do exílio impossível.
Tenho principalmente sono. Não um sono que traz latente, como todos os sonos, ainda os mórbidos, o privilégio físico do sossego. Não um sono que, porque vai esquecer a vida, e porventura trazer sonhos, traz na bandeja com que nos vem até à alma as oferendas plácidas de uma grande abdicação. Não: este é um sono que não consegue dormir, que pesa nas pálpebras sem as fechar, que junta num gesto que se sente ser de estupidez e repulsa as comissuras sentidas dos beiços descrentes. Este é um sono como o que pesa inutilmente sobrei o corpo nas grandes insônias da alma.
Só quando vem a noite de algum modo sinto, não uma alegria, mas um repouso que, por outros repousos serem contentes, se sente contente por analogia dos sentidos. Então o sono passa, a confusão do lusco-fusco mental que esse sono dera esbate-se, esclarece-se, quase se ilumina. Vem, um momento, a esperança de outras coisas. Mas essa esperança é breve. O que sobrevém é um tédio sem sono nem esperança, o mau despertar de quem não chegou a dormir. E da janela do meu quarto fito, pobre alma cansada de corpo, muitas estrelas; muitas estrelas, nada, o nada, mas muitas estrelas…
[466]
O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.
Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver.
O criador do espelho envenenou a alma humana.
[467]
Ouvia-me lendo os meus versos — que nesse dial li bem, porque me distraí — e disse-me, com a simplicidade de uma lei natural: “Você, assim, e com outra cara, seria um grande fascinador. ” A palavra “cara”, mais que a referência que continha, ergueu-me de mim pela gola do que me não conheço.
Vi o espelho do meu quarto, o meu pobre rosto de mendigo sem pobreza; e de repente o espelho virou-se e o espectro da Rua dos Douradores abriu-se diante de mim como um nirvana do carteiro.
A acuidade das minhas sensações chega a ser uma doença que me é alheia. Sofre-a outro de quem eu sou a parte doente, porque verdadeiramente sinto como em dependência de uma maior capacidade de sentir. Sou como um tecido especial, ou até uma célula, sobre a qual pesasse toda a responsabilidade de um organismo.
Se penso, é porque divago; se sonho, é porque estou desperto. Tudo em mim se embrulha comigo, e não tem forma de saber de ser.
[468]
Quando vivemos constantemente no abstrato — seja o abstrato do pensamento, seja o da sensação pensada —, não tarda que, contra nosso mesmo sentimento ou vontade, se nos tornem fantasmas aquelas coisas da vida real que, em acordo com nós mesmos, mais deveríamos sentir.
Por mais amigo, e verdadeiramente amigo, que eu seja de alguém, o saber que ele está doente, ou que morreu, não me dá mais que uma impressão vaga, incerta, apagada, que me envergonho de sentir. Só a visão direta do caso, a sua paisagem, me daria emoção. À força de viver de imaginar, gasta-se o poder de imaginar, sobretudo o de imaginar o real. Vivendo mentalmente do que não há nem pode haver, acabamos por não poder cismar o que pode haver.
Disseram-me hoje que tinha entrado para o hospital, para ser operado, um velho amigo meu, que não vejo há muito tempo, mas que sinceramente lembro sempre com o que suponho ser saudade. A única sensação que recebi, de positiva e de clara, foi a da maçada que forçosamente me daria o ter de ir visitá-lo, com a alternativa irônica de, não tendo paciência para a visita, ficar arrependido de a não fazer.
Nada mais… De tanto lidar com sombras, eu mesmo me converti numa sombra — no que penso, no que sinto, no que sou. A saudade do normal que nunca fui entra então na substância do meu ser. Mas é ainda isso, e só isso, que sinto. Não sinto propriamente pena do amigo que vai ser operado. Não sinto propriamente pena de todas as pessoas que vão ser operadas, de todos quantos sofrem e penam neste mundo. Sinto pena, tão-somente, de não saber ser quem sentisse pena.
E, num momento, estou pensando em outra coisa, inevitavelmente, por um impulso que não sei o que é. E então, como se estivesse delirando, mistura-se-me com o que não cheguei a sentir, com o que não pude ser, um rumor de árvores, um som de água correndo para tanques, uma quinta inexistente… Esforço-me por sentir, mas já não sei como se sente. Tornei-me a sombra de mim mesmo, a quem entregasse o meu ser. Ao contrário daquele Peter Schlemil do conto alemão, não vendi ao Diabo a minha sombra, mas a minha substância. Sofro de não sofrer, de não saber sofrer. Vivo ou finjo que vivo? Durmo ou estou desperto? Uma vaga aragem, que sai fresca do calor do dia, faz-me esquecer tudo. Pesam-me as pálpebras agradavelmente… Sinto que este mesmo sol doura os campos onde não estou e onde não quero estar… Do meio dos ruídos da cidade sai um grande silêncio… Que suave! Mas que mais suave, talvez, se eu pudesse sentir! …
[469]
O próprio escrever perdeu a doçura para mim.
Banalizou-se tanto, não só o ato de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheado e desinteressado, meio atento, e sem entusiasmo nem fulgor.
[470]
Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morrem o peixe e Oscar Wilde.
[471]
Desde que possamos considerar este mundo uma ilusão e um fantasma, poderemos considerar tudo que nos acontece como um sonho, coisa que fingiu ser porque dormíamos. E então nasce em nós uma indiferença sutil e profunda para com todos os desaires e desastres da vida. Os que morrem viraram a uma esquina, e por isso os deixamos de ver; os que sofrem passam perante nós, se sentimos, como um pesadelo, se pensamos, como um devaneio ingrato. E o nosso próprio sofrimento não será mais que esse nada. Neste mundo dormimos sobre o lado esquerdo e ouvimos nos sonhos a existência opressa do coração.
Mais nada… Um pouco de sol, um pouco de brisa, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir… Mais nada, mais nada… Sim, mais nada…
[472]
Atingir, no estado místico, só o que esse estado tem de grato sem o que tem de exigente; ser o extático de deus nenhum, o místico ou epopta sem iniciação; passar o curso dos dias na meditação de um paraíso em que se não crê — isto tudo sabe bem à alma, se ela conhece o que é desconhecer.
Vão altas, por cima de onde estou, corpo dentro de uma sombra, as nuvens silenciosas; vão altas, por cima de onde estou, alma cativa num corpo, as verdades incógnitas… Vai alto tudo… E tudo passa no alto como em baixo, sem nuvem que deixe mais do que chuva ou verdade que deixe mais do que dor… Sim, tudo o que é alto passa alto, e passa; tudo o que é de apetecer está longe e passa longe… Sim, tudo atrai, tudo é alheio e tudo passa.
Que me importa saber, ao sol ou à chuva, corpo ou alma, que passarei também? Nada, salvo a esperança de [que] tudo seja nada e portanto o nada seja tudo.
[473]
Em qualquer espírito, que não seja disforme, existe a crença em Deus. Em qualquer espírito, que não seja disforme, não existe crença em um Deus definido. É qualquer ente, existente e impossível, que rege tudo; cuja pessoa, se a tem, ninguém pode definir; cujos fins, se deles usa, ninguém pode compreender. Chamando-lhe Deus dizemos tudo, porque, não tendo a palavra Deus sentido algum preciso, assim o afirmamos sem dizer nada. Os atributos de infinito, de eterno, de onipotente, de sumamente justo ou bondoso, que por vezes lhe colamos, descolam-se por si como todos os adjetivos desnecessários quando o substantivo basta. E Ele, a que, por indefinido, não podemos dar atributos, é, por isso mesmo, o substantivo absoluto. A mesma certeza e o mesmo vago existem quanto à sobrevivência da alma. Todos nós sabemos que morremos; todos nós sentimos que não morreremos. Não é bem um desejo, nem uma esperança, que nos traz essa visão no escuro de que a morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito com as entranhas, que repudia [. . . ]
[474]
Um dia
Em vez de almoçar — necessidade que tenho de fazer acontecer-me todos os dias — fui ver o Tejo, e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei útil à alma vê-lo. Ainda assim…
Viver não vale a pena. Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos. O êxtase que não incluísse a vida! …
Criar ao menos um pessimismo novo, uma nova negação, para que tivéssemos a ilusão que de nós alguma coisa, ainda que para mal, ficava!
[475]
De que é que você está a rir? , perguntou-me sem mal a voz do Moreira de entre para lá das duas prateleiras do meu alçado. [. . . ] Era uma troca de nomes que eu ia fazendo…, e acalmei [os] pulmões ao falar. [. . . ] Ah, disse o Moreira rapidamente, e a paz poeirosa desceu de novo sobre o escritório e sobre mim.
O senhor Visconde de Chateaubriand aqui a fazer contas! O senhor professor Amiel aqui num banco alto real! O senhor Conde Alfred de Vigny a debitar o Grandela! Senancour nos Douradores! Nem o Bourget, coitado, que custa a ler como uma escada sem elevador… Volto-me para trás do parapeito para ver bem de novo o meu Boulevard de Saint Germain, e justamente nesta altura o sócio do roceiro está cuspindo para a rua. E entre pensar tudo isto e estar fumando, e não ligar bem uma coisa e outra, o riso mental encontra o fumo, e, embrulhando-se na garganta, expande-se num ataque tímido de riso audível.
[476]
Parecerá a muitos que este meu diário, feito para mim, é artificial demais. Mas é de meu natural ser artificial. Com que hei-de eu entreter-me, depois, senão com escrever cuidadosamente estes apontamentos espirituais? De resto, não cuidadosamente os escrevo. E, mesmo, sem cuidado limador que os agrupo. Penso naturalmente nesta minha linguagem requintada. Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade. A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade constante que me rói a vida.
Há claustros na hora. Entardeceu nas esquivanças. Nos olhos azuis dos tanques um último desespero reflete a morte do sol. Nós éramos tanta coisa dos parques antigos; de tão voluptuoso modo estávamos incorporados na presença das estátuas, no talhado inglês das áleas. Os vestidos, os espadins, as perruques, os meneios e os cortejos pertenciam tanto à substância de que o nosso espírito era feito! Nós quem? O repuxo apenas, no jardim deserto, água alada indo já menos alta no seu ato triste de querer voar.
[477]
… e os lírios nas margens de rios remotos, frios e solenes, numa tarde eterna no fundo de continentes verdadeiros. Sem mais nada e contudo verdadeiros.
[478]
(lunar scene)
Toda a paisagem não está em parte nenhuma.
[479]
Em baixo, afastando-se do alto onde estou em desnivelamentos de sombra, dorme ao luar, álgida, a cidade inteira. Um desespero de mim, uma angústia de existir preso a mim extravasa-se por mim todo sem me exceder, compondo-me o ser em ternura, medo, dor e desolação. Um tão inexplicável excesso de mágoa absurda, uma dor tão desolada, tão órfã, tão metafisicamente minha.
[480]
Alastra ante meus olhos a cidade incerta e silente. As casas desigualam-se num aglomerado retido, e o luar, com manchas de incerteza, estagna de madrepérola os solavancos mortos da profusão. Há telhados e sombras, janelas e idade média. Não há de que haver arredores. Pousa no que se vê um vislumbre de longínquo. Por sobre de onde vejo há ramos negros de árvores, e eu tenho o sono da cidade inteira no meu coração dissuadido. Lisboa ao luar e o meu cansaço de amanhã! Que noite! Prouvera a quem causou os pormenores do mundo que não houvesse para mim melhor estado ou melodia que o momento lunar destacado em que me desconheço conhecido. Nem brisa, nem gente interrompe o que não penso. Tenho sono do mesmo modo que tenho vida. Só que sinto nas pálpebras como se houvesse o que fazer-mas pesar. Ouço a minha respiração. Durmo ou desperto?
Custa-me um chumbo dos sentidos o mover-me com os pés para onde moro. A carícia do apagamento, a flor dada do inútil, o meu nome nunca pronunciado, o meu desassossego entre margens, o privilégio de deveres cedidos, e, na última curva do parque avoengo, o outro século como um roseiral.
[481]
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança. “Morreu ontem”, respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais — se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim — sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um “o que será dele? ”. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
Os grandes trechos
A divina inveja
Sempre que tenho uma sensação agradável em companhia de outros, invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo, deles.
A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.
A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazer-me notar isso seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram ante a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.
Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a torná-lo irrefragavelmente meu — de alterar, mentindo — o momento belo e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente — e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.
Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquiteto muito mais.
Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais — curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há-de evocar.
O meu triunfo máximo no gênero foi quando, a certa hora ambígua de aspecto e luz, olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos — curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço-cetim, não sei como, sob o espaço que perdura na abominável terceira dimensão. E a hora cheirou-me verdadeiramente a um ruído arrastado e longínquo e com uma grande inveja de realidade…
Carta
Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos como sonhos, para que fossem apenas janelas abertas para paisagens novas da tua alma. De tal modo arquitetar o teu corpo em arremedos de sonho que não fora possível ver-te sem pensar noutra coisa, que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas ao fundo doutras épocas, onde invisíveis pares diversos vivem sentimentos que não temos.
Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando — nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impossíveis.
A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim, mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligar as duas margens escuras do rio que vai ter ao ancião mar onde as caravelas são nossas para sempre.
Sorris? Eu não sabia disso, mas nos meus céus interiores andavam as estrelas. Chamas-me dormindo. Eu não reparava nisso mas no barco longínquo cuja vela de sonho ia sob o luar, vejo longínquas marinhas.
Cascata
A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são!
Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem que importem os valores que os homens dão às coisas nem as relações que os homens estabelecem entre elas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar… E há argumento algum, com jeito lógico para convencer, que me prove que os soldados reais não devem andar de cabeça para baixo?
A criança não dá mais valor ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? A criança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios, e todos os nossos ódios, e todos os nossos amores?
Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdadeira das coisas, que nós vestimos de convenções no mais nu vê-las, que nós embrumamos de ideias nossas no mais direto olhá-las!
Será Deus uma criança muito grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa? Tão irreal, tão, tão [. . . ]
Lancei-vos, rindo, esta ideia ao ar, e vede como ao vê-la distante de mim de repente vejo o que de horrorosa ela é (Quem sabe se ela não contém a verdade? ). E ela cai e quebra-se-me aos pés, em pó de horror e estilhaços de angústia…
Acordo para saber que existo…
Um grande tédio incerto gorgoleja erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá no fundo estúpido do jardim.
Cenotáfio
Nem viúva nem filho lhe pôs na boca o óbolo, com que pagasse a Caronte. São velados para nós os olhos com que transpôs o Estige e viu nove vezes refletido nas águas ínferas o rosto que não conhecemos. Não tem nome entre nós a sombra agora errante nas margens dos rios soturnos; o seu nome é sombra também.
Morreu pela Pátria, sem saber como nem porquê. O seu sacrifício teve a glória de não se conhecer. Deu a vida com toda a inteireza da alma: por isso, não por dever; por amor à Pátria, não por consciência dela. Defendeu-a como quem defende uma mãe, de quem somos filhos não por lógica, senão nascimento. Fiel ao segredo primevo, não pensou nem quis, mas viveu a morte instintivamente, como havia vivido a sua vida. A sombra que usa agora se irmana com as que caíram em Termópilas, fiéis na carne ao juramento que haviam nascido. Morreu pela Pátria como o sol nasce todos os dias. Foi por natureza o que a Morte havia de torná-lo. Não caiu servo de uma fé ardente, não o mataram combatendo pela baixeza de um grande ideal. Livre da injúria da fé e do insulto do humanitarismo, não caiu em defesa de uma ideia política, ou do futuro da humanidade, ou de uma religião por haver. Longe da fé no outro mundo, com que se enganam os crédulos de Maomé e os sequazes de Cristo, viu a morte chegar sem esperar nela a vida, viu a vida passar sem que esperasse vida melhor.
Passou naturalmente, como o vento e o dia, levando consigo a alma, que o fizera diferente. Mergulhou na sombra como quem entra na porta onde chega.
Morreu pela Pátria, a única coisa superior a nós de que temos conhecimento e razão. O paraíso do maometano ou cristão, o esquecimento transcendente do budista não se lhe refletiram nos olhos quando neles se apagou a chama, que a vivo na terra.
Não soube quem foi, como não sabemos quem é. Cumpriu o dever, sem saber que cumpria. Guiou-o o que faz florir as rosas e ser bela a morte das folhas. A vida não tem razão melhor, nem a morte melhor galardão. Visita agora, conforme os deuses concedem, as regiões onde não há a luz, passando os lamentos de Cocito e o fogo de Flegetonte e ouvindo na noite o lapso leve da lívida onda Leteia.
Ele é anônimo como o instinto que o matou. Não pensou que ia morrer pela pátria; morreu por ela. Não determinou cumprir o seu dever; cumpriu-o. A quem não teve nome na alma, justo é que não perguntemos que nome definiu seu corpo. Foi português; não sendo tal português, é o português sem o seu lugar não é ao pé dos criadores de Portugal, cuja estatura é outra, e outra a consciência. Não lhe cabe a companhia dos semideuses, por cuja audácia cresceram os caminhos do mar e houve mais terra que caber no nosso alcance.
Nem estátua nem lápide narre quem foi o que foi todos nós; como é todo o povo, deve ter por túmulo toda esta terra. Em sua própria memória o devemos sepultar, e por lápide pôr-lhe o seu exemplo apenas.
Conselhos às mal-casadas
(As mal-casadas são todas as mulheres casadas e algumas solteiras. )
Livrai-vos sobretudo de cultivar os sentimentos humanitários. O humanitarismo é uma grosseria. Escrevo a frio, raciocinadamente, pensando em vosso bem-estar, pobres mal-casadas.
A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível, deixando ao corpo, que se submeta à vontade.
Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter, porém, contatos carnais inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até aos — eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas, é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse.
Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro, todos os crimes, que se dão, é só em sonhos que se cometem! Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós não conhecemos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, profusos, frutuosos, foi o nosso sonho de Bórgia, foi a ideia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido, tinha de o ser porque existir é sempre estúpido e banal.
Dou-vos estes conselhos desinteressadamente, aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente, os meus sonhos são de império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja, só para me arreliar, porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.
Conselhos às mal-casadas
Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação.
Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual.
