Em breve
morrerei
também.
Pessoa - Livro do Desassossego
] considera arritmias no decurso majestoso do seu ritmo metafísico.
Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevolência.
Concordo que é um argumento de mais difícil resposta, mas é-o só aparentemente.
Podemos dizer que não sabemos bem o que é o mal, não podendo por isso afirmar se uma coisa é má ou boa.
O certo, porém, é que uma dor, ainda que para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para que haja mal no mundo.
Basta uma dor de dentes para fazer descrer na bondade do Criador.
Ora o erro essencial deste argumento parece residir no nosso completo desconhecimento do plano de Deus, e nosso igual desconhecimento do que possa ser, como pessoa inteligente, o Infinito Intelectual.
Uma coisa é a existência do mal, outra a razão dessa existência.
A distinção é talvez sutil ao ponto de parecer sofística, mas o certo é que é justa.
A existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência do mal pode não ser aceita.
Confesso que o problema subsiste, mas subsiste porque subsiste a nossa imperfeição.
[255]
Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse, e assim, não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual, morreríamos na alma de anemia. Ninguém conhece outro, e ainda bem que o não conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele, ainda que mãe, mulher ou filho, o íntimo, metafísico inimigo. Entendemo-nos porque nos ignoramos. Que seria de tantos cônjuges felizes se pudessem ver um na alma do outro, se pudessem compreender-se, como dizem os românticos, que não sabem o perigo — se bem que o perigo fútil — do que dizem. Todos os casados do mundo são mal casados, porque cada um guarda consigo, nos secretos onde a alma é do Diabo, a imagem sutil do homem desejado que não é aquele, a figura volúvel da mulher sublime, que aquela não realizou. Os mais felizes ignoram em si mesmos estas suas disposições frustradas; os menos felizes não as ignoram, mas não as conhecem, e só um ou outro arranco frusto, uma ou outra aspereza no trato, evoca, na superfície casual dos gestos e das palavras, o Demônio oculto, a Eva antiga, o Cavaleiro e a Sílfide. A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver. Somos contentes porque, até ao pensar e ao sentir, somos capazes de não acreditar na existência da alma. No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade, nem há para nós — salvo se, desertos, não dançamos — conhecimento do grande frio do alto da noite externa, do corpo mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente nós, mas afinal não é senão a paródia íntima da verdade do que nos supomos. Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenômeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como crianças que brincam a jogos sérios.
Um ou outro de nós, liberto ou maldito, vê de repente — mas até esse raras vezes vê — que tudo quanto somos é o que não somos, que nos enganamos no que está certo e não temos razão no que concluímos justo. E esse, que, num breve momento, vê o universo despido, cria uma filosofia, ou sonha uma religião; e a filosofia espalha-se e a religião propaga-se, e os que creem na filosofia passam a usá-la como veste que não veem, e os que creem na religião passam a pô-la como máscara de que se esquecem.
E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fúteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo.
Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é a razão dessa ilusão, e por que é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou por que é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram — isso, por certo, eles mesmos não sabem.
[256]
Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas — intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas — a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem — lá entre eles, exclusos todos nós outros — os grandes segredos que são os caboucos do mundo.
Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações coletivas.
O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver? Por que há-de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há-de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?
Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estranhos; gostaria, porém, que me provassem que o são por superioridade ao normal e não por impotência dele.
Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e dois para dar cinco: é um ato de distração, e a todos nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidável maioria.
[257]
O pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que não tiver elegância, perderá a ação sobre os outros. A força sem a destreza é uma simples massa.
[258]
O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação.
Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.
[259]
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem sequer mental ou de sonho —, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trêmulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. “Fabricou Salomão um palácio…” E fui lendo, até ao fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais — tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é — não — a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu veto manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
[260]
A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.
Tudo quanto é abstrato é difícil de compreender, porque é difícil de conseguir para ele a atenção de quem o leia. Darei, por isso, um exemplo simples, em que as abstrações que formei se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a escrever.
Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles; sem e nem há comunicação nem necessidade de a fazer. Procuro qual será a emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.
Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir — e esta evocação, se for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exatamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com infância.
Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e sutis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.
A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte — uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve.
Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o. estadista que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou, ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos.
[261]
Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas sinceramente. Tenho sido ator sempre, e a valer. Sempre que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo.
[262]
Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém.
Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado.
Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar.
Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas boiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo — vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.
E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.
E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrônico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.
Poder saber pensar! Poder saber sentir!
Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer…
[263]
Tão dado como sou ao tédio, é curioso que nunca, até hoje, me lembrou de meditar em que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da alma em que nem apetece a vida nem outra coisa. E emprego a súbita lembrança de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco factícia, do que ele seja.
Não o sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse entorpecimento. Em mim, o tédio é frequente, mas, que eu saiba, porque reparasse, não obedece a regras de aparecimento. Posso passar sem tédio um domingo inerte; posso sofrê-lo, repentinamente, como uma nuvem externa, em pleno trabalho atento. Não consigo relacioná-lo com um estado da saúde ou da falta dela; não alcanço conhecê-lo como produto de causas que estejam na parte evidente de mim.
Dizer que é uma angústia metafísica disfarçada, que é uma grande desilusão incógnita, que é uma poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida — dizer isto, ou o que seja irmão disto, pode colorir o tédio, como uma criança ao desenho cujos contornos transborde e apague, mas não me traz mais que um som de palavras a fazer eco nas caves do pensamento.
O tédio… Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer — tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que uma paráfrase ou uma translação. E, na sensação direta, como se de sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadiça, nem restasse, entre o castelo e as terras, mais que o poder olhá-las sem as poder percorrer. Há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento onde o que separa está estagnado como nós, água suja cercando o nosso desentendimento.
O tédio… Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio… É como a possessão por um demônio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma. Dizem que os bruxos, ou os pequenos magos, conseguem, fazendo de nós imagens, e a elas infligindo maus tratos, que esses maus tratos, por uma transferência astral, se reflitam em nós. O tédio surge-me, na sensação transposta desta imagem, como o reflexo maligno de bruxedos de um demônio das fadas, exercidas, não sobre uma imagem minha, senão sobre a sua sombra. E na sombra íntima de mim, no exterior do interior da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu.
O tédio… Trabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da ação chamariam o meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande esforço nem notável desinteligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim.
De mim porquê, se não pensava em mim? De que outra coisa, se não pensava nela? O mistério do universo, que baixa às minhas contas ou ao meu reclínio? A dor universal de viver que se particulariza subitamente na minha alma mediúnica? Para quê enobrecer tanto quem não se sabe quem é? É uma sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer, tão nobre como estas sensações do simples cérebro, do simples estômago, vindas de fumar demais ou de não digerir bem.
O tédio… E talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir…
O tédio… Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o ceticismo não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.
[264]
Conheço, translata, a sensação de ter comido demais. Conheço-a com a sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu demais. Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma.
Mas nessas ocasiões, como fato impropício, sói surgir, do meu modorrar indene, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho.
Nessas horas estranhas não é só a minha vida material, mas a minha própria vida moral, que me são só apensos — desleixo a ideia do dever mas também a ideia de ser, e tenho sono físico do universo inteiro. Durmo o que conheço e o que sonho com uma igualdade que me pesa nos olhos. Sim, nessas horas sei mais de mim do que nunca soube, e todo eu sou todas as sestas de mendigos entre as árvores da quinta de Ninguém.
[265]
A ideia de viajar seduz-me por translação, como se fosse a ideia própria para seduzir alguém que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das paisagens possíveis aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que estagnou.
E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo… Sonho uma vida erudita, entre o convívio mudo dos antigos e dos modernos, renovando as emoções pelas emoções alheias, enchendo-me de pensamentos contraditórios na contradição dos meditadores e dos que quase pensaram, que são a maioria dos que escreveram. Mas só a ideia de ler se me desvanece se tomo de cima da mesa um livro qualquer, o fato físico de ter que ler anula-me a leitura… Do mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou certo, de nulo também que sou — à minha vida quotidiana de transeunte incógnito, e aos meus sonhos como insônias de acordado.
E como as leituras tudo… Desde que qualquer coisa se possa sonhar como interrompendo deveras o decurso mudo dos meus dias, ergo olhos de protesto pesado para a sílfide que me é própria, aquela coitada que seria talvez sereia se tivesse aprendido a cantar.
[266]
Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que, por processos de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes.
Eu era criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual na recordação ao que era na verdade, e tem, perenemente presente, se se ergue de onde finge que dorme, a mesma lenta teclagem, a mesma rítmica monotonia. Invade-me, de o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa, minha.
Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstrata do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cérebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anônimo e longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.
Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que nunca vi, onde a aprendiz a que não conheci está ainda hoje relatando, dedo a dedo cuidadosos, as escalas sempre iguais do que já está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstruo vendo. E todo o lar lá do andar de cima, saudoso hoje mas não ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação desentendida.
Suponho, porém, que nisto tudo sou translato, que a saudade que sinto não é bem minha, nem bem abstrata, mas a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas emoções, que em mim são literárias, fossem — di-lo-ia Vieira — literais. E na minha suposição de sentir que me magoo e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e sinto.
E sempre, com uma constância que vem do fundo do mundo, com uma persistência que estuda metafisicamente, soam, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela espinha dorsal física da minha recordação. São as ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas; são pessoas mortas que me estão falando, através da transparência da falta delas hoje; são remorsos do que fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruídos lá em baixo na casa queda.
Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco gramofônico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar parar a alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na minha pele pelicular, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso e pessoal da nossa recordação.
E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro que se tornasse independente, soam, soam, soam escalas lá em baixo, lá em cima, da primeira casa de Lisboa onde vim habitar.
[267]
É a ultima morte do Capitão Nemo.
Em breve morrerei também.
Foi toda a minha infância passada que nesse momento ficou privada de poder durar.
[268]
O olfato é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo uma rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura.
[269]
Ter já lido os Pickwick Papers é uma das grandes tragédias da minha vida. (Não posso tornar a relê-los. )
[270]
A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis.
O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas têm cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.
Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.
[271]
Não o amor, mas os arredores é que vale a pena…
A repressão do amor ilumina os fenômenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento. Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade.
[272]
Cristo é uma forma da emoção.
No panteão há lugar para os deuses que se excluem uns aos outros, e todos têm assento e regência. Cada um pode ser tudo, porque aqui não há limites, nem até lógicos, e gozamos, no convívio de vários eternos, da coexistência de diferentes infinitos e de diversas eternidades.
[273]
A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.
Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro!
Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão prolixa do destino incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em sucessões de sonhos, e não são mais para mim do que foram para os que acreditaram neles. Manipansos dos negros de olhos incertos e espantados, deuses-bichos dos selvagens de sertões emaranhados, símbolos figurados de egípcios, claras divindades gregas, hirtos deuses romanos, Mitra senhor do Sol e da emoção, Jesus senhor da consequência e da caridade, critérios vários do mesmo Cristo, santos novos deuses das novas vilas, todos desfilam, todos, na marcha fúnebre (romaria ou enterro) do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás deles marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra — pobres conceitos sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um pouco para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido roubado por mendigos.
[274]
Ah, é um erro doloroso e crasso aquela distinção que os revolucionários estabelecem entre burgueses e povo, ou fidalgos e povo, ou governantes e governados. A distinção é entre adaptados e inadaptados: o mais é literatura, e má literatura. O mendigo, se é adaptado, pode amanhã ser rei, porém perdeu com isso a virtude de ser mendigo. Passou a fronteira e perdeu a nacionalidade.
Isto me consola neste escritório estreito, cujas janelas mal lavadas dão sobre uma rua sem alegria. Isto me consola, em o qual tenho por irmãos os criadores da consciência do mundo — o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, e até, se a citação se permite, aquele Jesus Cristo que não foi nada no mundo, tanto que se duvida dele pela história. Os outros são de outra espécie — o conselheiro de estado Johann Wolfgang von Goethe, o senador Victor Hugo, o chefe Lenine, o chefe Mussolini.
Nós na sombra, entre os moços de fretes e os barbeiros, constituímos a humanidade.
De um lado estão os reis, com o seu prestígio, os imperadores, com a sua glória, os gênios, com a sua aura, os santos, com a sua auréola, os chefes do povo, com o seu domínio, as prostitutas, os profetas e os ricos… Do outro estamos nós — o moço de fretes da esquina, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o barbeiro das anedotas, o mestre-escola John Milton, o marçano da tenda, o vadio Dante Alighieri, os que a morte esquece ou consagra, e [a] vida esqueceu sem consagrar.
[275]
O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não ter ilusões. Ver claro é não agir.
[276]
Uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera.
Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.
[277]
Tudo ali é quebrado, anônimo e impertencente. Vi ali grandes movimentos de ternura, que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimentos não duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz — quantas vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos — na analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relação sistematizada entre os humanitarismos e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.
Essas criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo da plebe infernal, avarento de sordidezas e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e do ócio, e morriam molemente, entre coxins de palavras, num amarfanhamento de lacraus de cuspo.
O mais extraordinário de toda essa gente era a nenhuma importância, em nenhum sentido, de toda ela. Uns eram redatores dos principais jornais, e conseguiam não existir; outros tinham lugares públicos em vista no anuário e conseguiam não figurar em nada da vida; outros eram poetas até consagrados, mas uma mesma poeira de cinza lhes tornava lívidas as faces parvas, e tudo era um túmulo de embalsamados hirtos, postos com a mão nas costas em posturas de vidas.
Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exílio da esperteza mental uma recordação de bons momentos de graça franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de alguns perfis recortados no nada, de alguns gestos dados às serventes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física e a memória de algumas anedotas com espírito.
Neles se intercalavam, como espaços, uns homens de mais idade, alguns com ditos de espírito pregresso, que diziam mal como os outros, e das mesmas pessoas.
Nunca senti tanta simpatia pelos inferiores da glória pública como quando os vi malsinar por estes inferiores sem querer essa pobre glória. Reconheci a razão do triunfo porque os párias do Grande triunfavam em relação a estes, e não em relação à humanidade.
Pobres diabos sempre com fome — ou com fome de almoço, ou com fome de celebridade, ou com fome das sobremesas da vida. Quem os ouve, e os não conhece, julga estar escutando os mestres de Napoleão e os instrutores de Shakespeare.
Há os que vencem no amor, há os que vencem na política, há os que vencem na arte. Os primeiros têm a vantagem da narrativa, pois se pode vencer largamente no amor sem haver conhecimento célebre do que sucedeu. É certo que, ao ouvir contar a qualquer desses indivíduos as suas Maratonas sexuais, uma vaga suspeita nos invade, pela altura do sétimo desfloramento. Os que são amantes de senhoras de título, ou muito conhecidas (são, aliás, quase todos), fazem um tal gasto de condessas que uma estatística das suas conquistas não deixaria sérias e comedidas nem as bisavós dos títulos presentes.
Outros especializam no conflito físico, e mataram os campeões de boxe da Europa numa noite de pândega, à esquina do Chiado. Uns são influentes junto de todos os ministros de todos os ministérios, e estes são aqueles de que menos há que duvidar, pois não repugna.
Uns são grandes sádicos, outros são grandes pederastas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta, que são brutais com mulheres. Trouxeram-nas ali, a chicote, pelos caminhos da vida. No fim ficam a dever o café.
Há os poetas, há-os.
Não conheço melhor cura para toda esta enxurrada de sombras que o conhecimento direito da vida humana corrente, na sua realidade comercial, por exemplo, como a que surge no escritório da Rua dos Douradores. Com que alívio eu volvia daquele manicômio de títeres para a presença real do Moreira, meu chefe, guarda-livros autêntico e sabedor, mal vestido e mal tratado, mas, o que nenhum dos outros conseguia ser, o que se chama um homem…
[278]
A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia.
A maioria da gente é outra gente, disse Oscar Wilde, e disse bem. Uns gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem; outros empregam-se na busca do que querem e lhes não serve; outros, ainda, se perdem.
Mas a maioria é feliz e goza a vida sem isso valer. Em geral, o homem chora pouco, e, quando se queixa, é a sua literatura. O pessimismo tem pouca viabilidade como fórmula democrática. Os que choram o mal do mundo são isolados — não choram senão o próprio. Um Leopardi, um Antero não têm amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado? O mundo é um cárcere. Um Chateaubriand sonha mais que o possível? A vida humana é tédio. Um Job é coberto de bolhas? A terra está coberta de bolhas. Pisam os calos do triste? Ai dos pés dos sóis e das estrelas.
Alheia a isto, e chorando só o preciso e no menos tempo que pode — quando lhe morre o filho que esquecerá pelos anos fora, salvo nos aniversários; quando perde dinheiro e chora enquanto não arranja outro, ou se não adapta ao estado de perda — a humanidade continua digerindo e amando.
A vitalidade recupera e reanima. Os mortos ficam enterrados. As perdas ficam perdidas.
[279]
Foi-se hoje embora, diz-se que definitivamente, para a terra que é natal dele, o chamado moço do escritório, aquele mesmo homem que tenho estado habituado a considerar como parte desta casa humana, e, portanto, como parte de mim e do mundo que é meu. Foi-se hoje embora. No corredor, encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida, dei-lhe eu um abraço timidamente retribuído, e tive contra-alma bastante para não chorar, como, em meu coração, desejavam sem mim meus olhos quentes.
Cada coisa que foi nossa, ainda que só pelos acidentes do convívio ou da visão, porque foi nossa se torna nós. O que se partiu hoje, pois, para uma terra galega que ignoro, não foi, para mim, o moço do escritório: foi uma parte vital, porque visual e humana, da substância da minha vida. Fui hoje diminuído. Já não sou bem o mesmo. O moço do escritório foi-se embora.
Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa. Tudo que foi, se o vimos quando era, é de nós que foi tirado quando se partiu. O moço do escritório foi-se embora.
É mais pesado, mais velho, menos voluntário que me sento à carteira alta e começo a continuação da escrita de ontem. Mas a vaga tragédia de hoje interrompe com meditações, que tenho que dominar à força, o processo automático da escrita como deve ser. Não tenho alma para trabalhar senão porque posso com uma inércia ativa ser escravo de mim. O moço do escritório foi-se embora.
Sim, amanhã, ou outro dia, ou quando quer que soe para mim o sino sem som da morte ou da ida, eu também serei quem aqui já não está, copiador antigo que vai ser arrumado no armário por baixo do vão da escada. Sim, amanhã, ou quando o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim que fui eu. Irei para a terra natal? Não sei para onde irei. Hoje a tragédia é visível pela falta, sensível por não merecer que se sinta. Meu Deus, meu Deus, o moço do escritório foi-se embora.
[280]
Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coisa do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que ilumine do futuro.
[281]
Primeiro é um som que faz um outro som, no côncavo noturno das coisas. Depois é um uivo vago, acompanhado pelo oscilar rasco das tabuletas da rua. Depois, ainda, há um alto de súbito na voz urrada do espaço, e tudo estremece, e não oscila, e há silêncio no medo disto tudo como um medo surdo que vê outro medo quando passado.
Depois não há mais nada senão o vento — só o vento, e reparo com sono que as portas estremecem presas e as janelas dão som de vidro que resiste.
Não durmo. Entresou. Tenho vestígios na consciência. Pesa em mim o sono sem que a inconsciência pese… Não sou. O vento… Acordo e redurmo e ainda não dormi. Há uma paisagem de som alto e torvo para além de que me desconheço. Gozo, recatado, a possibilidade de dormir. Com efeito durmo, mas não sei se durmo. Há sempre no que julgamos que é o som um som de fim de tudo, o vento no escuro, e, se escuto ainda, o som comigo dos pulmões e do coração.
[282]
Depois que o fim dos astros esbranqueceu para nada no céu matutino, e a brisa se tornou menos fria no amarelo mal alaranjado da luz sobre as poucas nuvens baixas, pude enfim, eu que não dormira, erguer lentamente o corpo exausto de nada da cama de onde pensara o universo.
Cheguei à janela com os olhos quentes de não estarem fechados. Por sobre os telhados densos a luz fazia diferenças de amarelo pálido. Fiquei a contemplar tudo com a grande estupidez da falta de sono. Nos vultos erguidos das casas altas o amarelo era aéreo e nulo. Ao fundo do ocidente, para onde eu estava virado, o horizonte era já de um branco verde.
Sei que o dia vai ser para mim pesado como não perceber nada. Sei que tudo quanto hoje fizer vai participar, não do cansaço do sono que não tive, mas da insônia que tive. Sei que vou viver um sonambulismo mais acentuado, mais epidérmico, não só porque não dormi, mas porque não pude dormir.
Há dias que são filosofias, que nos insinuam interpretações da vida, que são notas marginais, cheias de grande crítica, no livro do nosso destino universal. Este dia é um dos que sinto tais. Parece-me, absurdamente, que é com meus olhos pesados e meu cérebro nulo que, lápis absurdo, se vão traçando as letras do comentário inútil e profundo.
[283]
A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor veem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram veem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.
Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.
[284]
Não toquemos na vida nem com as pontas dos dedos.
Não amemos nem com o pensamento.
Que nenhum beijo de mulher, nem mesmo em sonhos, seja uma sensação nossa.
Artífices da morbidez, requintemo-nos em ensinar a desiludir-se.
Curiosos da vida, espreitemos a todos os muros, antecansados de saber que não vamos ver nada de novo ou belo.
Tecelões da desesperança, teçamos mortalhas apenas — mortalhas brancas para os sonhos que nunca sonhamos, mortalhas negras para os dias que morremos, mortalhas cor de cinza para os gestos que apenas sonhamos, mortalhas imperiais — de púrpura — para as nossas sensações inúteis.
Pelos montados e pelos vales e pelas margens dos pântanos, caçam caçadores o lobo e a corça, e o pato-bravo também. Odiemo-los, não porque caçam, mas porque gozam (e nós não gozamos).
Seja a expressão do nosso rosto um sorriso pálido, como de alguém que vai chorar, um olhar vago, como de alguém que não quer ver, um desdém esparso por todas as feições, como o de alguém que despreza a vida e a vive apenas para ter que desprezar. E seja o nosso desprezo para os que trabalham e lutam e o nosso ódio para os que esperam e confiam.
[285]
Estou quase convencido de que nunca estou desperto. Não sei se não sonho quando vivo, se não vivo quando sonho, ou se o sonho e a vida não são em mim coisas mistas, intersecionadas, de que meu ser consciente se forme por interpenetração.
Às vezes, em plena vida ativa, em que, evidentemente, estou tão claro de mim como todos os outros, vem até à minha suposição uma sensação estranha de dúvida; não sei se existo, sinto possível o ser um sonho de outrem, afigura-se-me, quase carnalmente, que poderei ser personagem de uma novela, movendo-me, nas ondas longas de um estilo, na verdade feita de uma grande narrativa.
Tenho reparado, muitas vezes, que certas personagens de romance tomam para nós um relevo que nunca poderiam alcançar os que são nossos conhecidos e amigos, os que falam conosco e nos ouvem na vida visível e real. E isto faz com que sonhe a pergunta se não será tudo neste total de mundo uma série entreinserta de sonhos e romances, como caixinhas dentro de caixinhas maiores — umas dentro de outras e estas em mais —, sendo tudo uma história com histórias, como as Mil e Uma Noites, decorrendo falsa na noite eterna.
Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho; se quero, o que quer é qualquer coisa em mim. Sempre que em mim há ação, reconheço que não fui eu. Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. Se quero, parece que me põem num veículo, como a mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.
[255]
Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse, e assim, não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual, morreríamos na alma de anemia. Ninguém conhece outro, e ainda bem que o não conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele, ainda que mãe, mulher ou filho, o íntimo, metafísico inimigo. Entendemo-nos porque nos ignoramos. Que seria de tantos cônjuges felizes se pudessem ver um na alma do outro, se pudessem compreender-se, como dizem os românticos, que não sabem o perigo — se bem que o perigo fútil — do que dizem. Todos os casados do mundo são mal casados, porque cada um guarda consigo, nos secretos onde a alma é do Diabo, a imagem sutil do homem desejado que não é aquele, a figura volúvel da mulher sublime, que aquela não realizou. Os mais felizes ignoram em si mesmos estas suas disposições frustradas; os menos felizes não as ignoram, mas não as conhecem, e só um ou outro arranco frusto, uma ou outra aspereza no trato, evoca, na superfície casual dos gestos e das palavras, o Demônio oculto, a Eva antiga, o Cavaleiro e a Sílfide. A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver. Somos contentes porque, até ao pensar e ao sentir, somos capazes de não acreditar na existência da alma. No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade, nem há para nós — salvo se, desertos, não dançamos — conhecimento do grande frio do alto da noite externa, do corpo mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente nós, mas afinal não é senão a paródia íntima da verdade do que nos supomos. Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenômeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como crianças que brincam a jogos sérios.
Um ou outro de nós, liberto ou maldito, vê de repente — mas até esse raras vezes vê — que tudo quanto somos é o que não somos, que nos enganamos no que está certo e não temos razão no que concluímos justo. E esse, que, num breve momento, vê o universo despido, cria uma filosofia, ou sonha uma religião; e a filosofia espalha-se e a religião propaga-se, e os que creem na filosofia passam a usá-la como veste que não veem, e os que creem na religião passam a pô-la como máscara de que se esquecem.
E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fúteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo.
Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é a razão dessa ilusão, e por que é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou por que é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram — isso, por certo, eles mesmos não sabem.
[256]
Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas — intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas — a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem — lá entre eles, exclusos todos nós outros — os grandes segredos que são os caboucos do mundo.
Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações coletivas.
O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver? Por que há-de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há-de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?
Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estranhos; gostaria, porém, que me provassem que o são por superioridade ao normal e não por impotência dele.
Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e dois para dar cinco: é um ato de distração, e a todos nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidável maioria.
[257]
O pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que não tiver elegância, perderá a ação sobre os outros. A força sem a destreza é uma simples massa.
[258]
O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação.
Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.
[259]
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem sequer mental ou de sonho —, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trêmulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. “Fabricou Salomão um palácio…” E fui lendo, até ao fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais — tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é — não — a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu veto manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
[260]
A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.
Tudo quanto é abstrato é difícil de compreender, porque é difícil de conseguir para ele a atenção de quem o leia. Darei, por isso, um exemplo simples, em que as abstrações que formei se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a escrever.
Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles; sem e nem há comunicação nem necessidade de a fazer. Procuro qual será a emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.
Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir — e esta evocação, se for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exatamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com infância.
Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e sutis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.
A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte — uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve.
Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o. estadista que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou, ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos.
[261]
Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas sinceramente. Tenho sido ator sempre, e a valer. Sempre que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo.
[262]
Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém.
Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado.
Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar.
Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas boiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo — vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.
E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.
E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrônico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.
Poder saber pensar! Poder saber sentir!
Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer…
[263]
Tão dado como sou ao tédio, é curioso que nunca, até hoje, me lembrou de meditar em que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da alma em que nem apetece a vida nem outra coisa. E emprego a súbita lembrança de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco factícia, do que ele seja.
Não o sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse entorpecimento. Em mim, o tédio é frequente, mas, que eu saiba, porque reparasse, não obedece a regras de aparecimento. Posso passar sem tédio um domingo inerte; posso sofrê-lo, repentinamente, como uma nuvem externa, em pleno trabalho atento. Não consigo relacioná-lo com um estado da saúde ou da falta dela; não alcanço conhecê-lo como produto de causas que estejam na parte evidente de mim.
Dizer que é uma angústia metafísica disfarçada, que é uma grande desilusão incógnita, que é uma poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida — dizer isto, ou o que seja irmão disto, pode colorir o tédio, como uma criança ao desenho cujos contornos transborde e apague, mas não me traz mais que um som de palavras a fazer eco nas caves do pensamento.
O tédio… Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer — tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que uma paráfrase ou uma translação. E, na sensação direta, como se de sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadiça, nem restasse, entre o castelo e as terras, mais que o poder olhá-las sem as poder percorrer. Há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento onde o que separa está estagnado como nós, água suja cercando o nosso desentendimento.
O tédio… Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio… É como a possessão por um demônio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma. Dizem que os bruxos, ou os pequenos magos, conseguem, fazendo de nós imagens, e a elas infligindo maus tratos, que esses maus tratos, por uma transferência astral, se reflitam em nós. O tédio surge-me, na sensação transposta desta imagem, como o reflexo maligno de bruxedos de um demônio das fadas, exercidas, não sobre uma imagem minha, senão sobre a sua sombra. E na sombra íntima de mim, no exterior do interior da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu.
O tédio… Trabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da ação chamariam o meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande esforço nem notável desinteligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim.
De mim porquê, se não pensava em mim? De que outra coisa, se não pensava nela? O mistério do universo, que baixa às minhas contas ou ao meu reclínio? A dor universal de viver que se particulariza subitamente na minha alma mediúnica? Para quê enobrecer tanto quem não se sabe quem é? É uma sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer, tão nobre como estas sensações do simples cérebro, do simples estômago, vindas de fumar demais ou de não digerir bem.
O tédio… E talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir…
O tédio… Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o ceticismo não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.
[264]
Conheço, translata, a sensação de ter comido demais. Conheço-a com a sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu demais. Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma.
Mas nessas ocasiões, como fato impropício, sói surgir, do meu modorrar indene, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho.
Nessas horas estranhas não é só a minha vida material, mas a minha própria vida moral, que me são só apensos — desleixo a ideia do dever mas também a ideia de ser, e tenho sono físico do universo inteiro. Durmo o que conheço e o que sonho com uma igualdade que me pesa nos olhos. Sim, nessas horas sei mais de mim do que nunca soube, e todo eu sou todas as sestas de mendigos entre as árvores da quinta de Ninguém.
[265]
A ideia de viajar seduz-me por translação, como se fosse a ideia própria para seduzir alguém que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das paisagens possíveis aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que estagnou.
E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo… Sonho uma vida erudita, entre o convívio mudo dos antigos e dos modernos, renovando as emoções pelas emoções alheias, enchendo-me de pensamentos contraditórios na contradição dos meditadores e dos que quase pensaram, que são a maioria dos que escreveram. Mas só a ideia de ler se me desvanece se tomo de cima da mesa um livro qualquer, o fato físico de ter que ler anula-me a leitura… Do mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou certo, de nulo também que sou — à minha vida quotidiana de transeunte incógnito, e aos meus sonhos como insônias de acordado.
E como as leituras tudo… Desde que qualquer coisa se possa sonhar como interrompendo deveras o decurso mudo dos meus dias, ergo olhos de protesto pesado para a sílfide que me é própria, aquela coitada que seria talvez sereia se tivesse aprendido a cantar.
[266]
Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que, por processos de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes.
Eu era criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual na recordação ao que era na verdade, e tem, perenemente presente, se se ergue de onde finge que dorme, a mesma lenta teclagem, a mesma rítmica monotonia. Invade-me, de o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa, minha.
Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstrata do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cérebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anônimo e longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.
Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que nunca vi, onde a aprendiz a que não conheci está ainda hoje relatando, dedo a dedo cuidadosos, as escalas sempre iguais do que já está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstruo vendo. E todo o lar lá do andar de cima, saudoso hoje mas não ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação desentendida.
Suponho, porém, que nisto tudo sou translato, que a saudade que sinto não é bem minha, nem bem abstrata, mas a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas emoções, que em mim são literárias, fossem — di-lo-ia Vieira — literais. E na minha suposição de sentir que me magoo e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e sinto.
E sempre, com uma constância que vem do fundo do mundo, com uma persistência que estuda metafisicamente, soam, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela espinha dorsal física da minha recordação. São as ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas; são pessoas mortas que me estão falando, através da transparência da falta delas hoje; são remorsos do que fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruídos lá em baixo na casa queda.
Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco gramofônico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar parar a alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na minha pele pelicular, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso e pessoal da nossa recordação.
E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro que se tornasse independente, soam, soam, soam escalas lá em baixo, lá em cima, da primeira casa de Lisboa onde vim habitar.
[267]
É a ultima morte do Capitão Nemo.
Em breve morrerei também.
Foi toda a minha infância passada que nesse momento ficou privada de poder durar.
[268]
O olfato é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo uma rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura.
[269]
Ter já lido os Pickwick Papers é uma das grandes tragédias da minha vida. (Não posso tornar a relê-los. )
[270]
A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis.
O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas têm cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.
Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.
[271]
Não o amor, mas os arredores é que vale a pena…
A repressão do amor ilumina os fenômenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento. Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade.
[272]
Cristo é uma forma da emoção.
No panteão há lugar para os deuses que se excluem uns aos outros, e todos têm assento e regência. Cada um pode ser tudo, porque aqui não há limites, nem até lógicos, e gozamos, no convívio de vários eternos, da coexistência de diferentes infinitos e de diversas eternidades.
[273]
A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.
Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro!
Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão prolixa do destino incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em sucessões de sonhos, e não são mais para mim do que foram para os que acreditaram neles. Manipansos dos negros de olhos incertos e espantados, deuses-bichos dos selvagens de sertões emaranhados, símbolos figurados de egípcios, claras divindades gregas, hirtos deuses romanos, Mitra senhor do Sol e da emoção, Jesus senhor da consequência e da caridade, critérios vários do mesmo Cristo, santos novos deuses das novas vilas, todos desfilam, todos, na marcha fúnebre (romaria ou enterro) do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás deles marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra — pobres conceitos sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um pouco para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido roubado por mendigos.
[274]
Ah, é um erro doloroso e crasso aquela distinção que os revolucionários estabelecem entre burgueses e povo, ou fidalgos e povo, ou governantes e governados. A distinção é entre adaptados e inadaptados: o mais é literatura, e má literatura. O mendigo, se é adaptado, pode amanhã ser rei, porém perdeu com isso a virtude de ser mendigo. Passou a fronteira e perdeu a nacionalidade.
Isto me consola neste escritório estreito, cujas janelas mal lavadas dão sobre uma rua sem alegria. Isto me consola, em o qual tenho por irmãos os criadores da consciência do mundo — o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, e até, se a citação se permite, aquele Jesus Cristo que não foi nada no mundo, tanto que se duvida dele pela história. Os outros são de outra espécie — o conselheiro de estado Johann Wolfgang von Goethe, o senador Victor Hugo, o chefe Lenine, o chefe Mussolini.
Nós na sombra, entre os moços de fretes e os barbeiros, constituímos a humanidade.
De um lado estão os reis, com o seu prestígio, os imperadores, com a sua glória, os gênios, com a sua aura, os santos, com a sua auréola, os chefes do povo, com o seu domínio, as prostitutas, os profetas e os ricos… Do outro estamos nós — o moço de fretes da esquina, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o barbeiro das anedotas, o mestre-escola John Milton, o marçano da tenda, o vadio Dante Alighieri, os que a morte esquece ou consagra, e [a] vida esqueceu sem consagrar.
[275]
O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não ter ilusões. Ver claro é não agir.
[276]
Uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera.
Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.
[277]
Tudo ali é quebrado, anônimo e impertencente. Vi ali grandes movimentos de ternura, que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimentos não duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz — quantas vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos — na analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relação sistematizada entre os humanitarismos e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.
Essas criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo da plebe infernal, avarento de sordidezas e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e do ócio, e morriam molemente, entre coxins de palavras, num amarfanhamento de lacraus de cuspo.
O mais extraordinário de toda essa gente era a nenhuma importância, em nenhum sentido, de toda ela. Uns eram redatores dos principais jornais, e conseguiam não existir; outros tinham lugares públicos em vista no anuário e conseguiam não figurar em nada da vida; outros eram poetas até consagrados, mas uma mesma poeira de cinza lhes tornava lívidas as faces parvas, e tudo era um túmulo de embalsamados hirtos, postos com a mão nas costas em posturas de vidas.
Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exílio da esperteza mental uma recordação de bons momentos de graça franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de alguns perfis recortados no nada, de alguns gestos dados às serventes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física e a memória de algumas anedotas com espírito.
Neles se intercalavam, como espaços, uns homens de mais idade, alguns com ditos de espírito pregresso, que diziam mal como os outros, e das mesmas pessoas.
Nunca senti tanta simpatia pelos inferiores da glória pública como quando os vi malsinar por estes inferiores sem querer essa pobre glória. Reconheci a razão do triunfo porque os párias do Grande triunfavam em relação a estes, e não em relação à humanidade.
Pobres diabos sempre com fome — ou com fome de almoço, ou com fome de celebridade, ou com fome das sobremesas da vida. Quem os ouve, e os não conhece, julga estar escutando os mestres de Napoleão e os instrutores de Shakespeare.
Há os que vencem no amor, há os que vencem na política, há os que vencem na arte. Os primeiros têm a vantagem da narrativa, pois se pode vencer largamente no amor sem haver conhecimento célebre do que sucedeu. É certo que, ao ouvir contar a qualquer desses indivíduos as suas Maratonas sexuais, uma vaga suspeita nos invade, pela altura do sétimo desfloramento. Os que são amantes de senhoras de título, ou muito conhecidas (são, aliás, quase todos), fazem um tal gasto de condessas que uma estatística das suas conquistas não deixaria sérias e comedidas nem as bisavós dos títulos presentes.
Outros especializam no conflito físico, e mataram os campeões de boxe da Europa numa noite de pândega, à esquina do Chiado. Uns são influentes junto de todos os ministros de todos os ministérios, e estes são aqueles de que menos há que duvidar, pois não repugna.
Uns são grandes sádicos, outros são grandes pederastas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta, que são brutais com mulheres. Trouxeram-nas ali, a chicote, pelos caminhos da vida. No fim ficam a dever o café.
Há os poetas, há-os.
Não conheço melhor cura para toda esta enxurrada de sombras que o conhecimento direito da vida humana corrente, na sua realidade comercial, por exemplo, como a que surge no escritório da Rua dos Douradores. Com que alívio eu volvia daquele manicômio de títeres para a presença real do Moreira, meu chefe, guarda-livros autêntico e sabedor, mal vestido e mal tratado, mas, o que nenhum dos outros conseguia ser, o que se chama um homem…
[278]
A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia.
A maioria da gente é outra gente, disse Oscar Wilde, e disse bem. Uns gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem; outros empregam-se na busca do que querem e lhes não serve; outros, ainda, se perdem.
Mas a maioria é feliz e goza a vida sem isso valer. Em geral, o homem chora pouco, e, quando se queixa, é a sua literatura. O pessimismo tem pouca viabilidade como fórmula democrática. Os que choram o mal do mundo são isolados — não choram senão o próprio. Um Leopardi, um Antero não têm amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado? O mundo é um cárcere. Um Chateaubriand sonha mais que o possível? A vida humana é tédio. Um Job é coberto de bolhas? A terra está coberta de bolhas. Pisam os calos do triste? Ai dos pés dos sóis e das estrelas.
Alheia a isto, e chorando só o preciso e no menos tempo que pode — quando lhe morre o filho que esquecerá pelos anos fora, salvo nos aniversários; quando perde dinheiro e chora enquanto não arranja outro, ou se não adapta ao estado de perda — a humanidade continua digerindo e amando.
A vitalidade recupera e reanima. Os mortos ficam enterrados. As perdas ficam perdidas.
[279]
Foi-se hoje embora, diz-se que definitivamente, para a terra que é natal dele, o chamado moço do escritório, aquele mesmo homem que tenho estado habituado a considerar como parte desta casa humana, e, portanto, como parte de mim e do mundo que é meu. Foi-se hoje embora. No corredor, encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida, dei-lhe eu um abraço timidamente retribuído, e tive contra-alma bastante para não chorar, como, em meu coração, desejavam sem mim meus olhos quentes.
Cada coisa que foi nossa, ainda que só pelos acidentes do convívio ou da visão, porque foi nossa se torna nós. O que se partiu hoje, pois, para uma terra galega que ignoro, não foi, para mim, o moço do escritório: foi uma parte vital, porque visual e humana, da substância da minha vida. Fui hoje diminuído. Já não sou bem o mesmo. O moço do escritório foi-se embora.
Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa. Tudo que foi, se o vimos quando era, é de nós que foi tirado quando se partiu. O moço do escritório foi-se embora.
É mais pesado, mais velho, menos voluntário que me sento à carteira alta e começo a continuação da escrita de ontem. Mas a vaga tragédia de hoje interrompe com meditações, que tenho que dominar à força, o processo automático da escrita como deve ser. Não tenho alma para trabalhar senão porque posso com uma inércia ativa ser escravo de mim. O moço do escritório foi-se embora.
Sim, amanhã, ou outro dia, ou quando quer que soe para mim o sino sem som da morte ou da ida, eu também serei quem aqui já não está, copiador antigo que vai ser arrumado no armário por baixo do vão da escada. Sim, amanhã, ou quando o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim que fui eu. Irei para a terra natal? Não sei para onde irei. Hoje a tragédia é visível pela falta, sensível por não merecer que se sinta. Meu Deus, meu Deus, o moço do escritório foi-se embora.
[280]
Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coisa do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que ilumine do futuro.
[281]
Primeiro é um som que faz um outro som, no côncavo noturno das coisas. Depois é um uivo vago, acompanhado pelo oscilar rasco das tabuletas da rua. Depois, ainda, há um alto de súbito na voz urrada do espaço, e tudo estremece, e não oscila, e há silêncio no medo disto tudo como um medo surdo que vê outro medo quando passado.
Depois não há mais nada senão o vento — só o vento, e reparo com sono que as portas estremecem presas e as janelas dão som de vidro que resiste.
Não durmo. Entresou. Tenho vestígios na consciência. Pesa em mim o sono sem que a inconsciência pese… Não sou. O vento… Acordo e redurmo e ainda não dormi. Há uma paisagem de som alto e torvo para além de que me desconheço. Gozo, recatado, a possibilidade de dormir. Com efeito durmo, mas não sei se durmo. Há sempre no que julgamos que é o som um som de fim de tudo, o vento no escuro, e, se escuto ainda, o som comigo dos pulmões e do coração.
[282]
Depois que o fim dos astros esbranqueceu para nada no céu matutino, e a brisa se tornou menos fria no amarelo mal alaranjado da luz sobre as poucas nuvens baixas, pude enfim, eu que não dormira, erguer lentamente o corpo exausto de nada da cama de onde pensara o universo.
Cheguei à janela com os olhos quentes de não estarem fechados. Por sobre os telhados densos a luz fazia diferenças de amarelo pálido. Fiquei a contemplar tudo com a grande estupidez da falta de sono. Nos vultos erguidos das casas altas o amarelo era aéreo e nulo. Ao fundo do ocidente, para onde eu estava virado, o horizonte era já de um branco verde.
Sei que o dia vai ser para mim pesado como não perceber nada. Sei que tudo quanto hoje fizer vai participar, não do cansaço do sono que não tive, mas da insônia que tive. Sei que vou viver um sonambulismo mais acentuado, mais epidérmico, não só porque não dormi, mas porque não pude dormir.
Há dias que são filosofias, que nos insinuam interpretações da vida, que são notas marginais, cheias de grande crítica, no livro do nosso destino universal. Este dia é um dos que sinto tais. Parece-me, absurdamente, que é com meus olhos pesados e meu cérebro nulo que, lápis absurdo, se vão traçando as letras do comentário inútil e profundo.
[283]
A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor veem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram veem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.
Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.
[284]
Não toquemos na vida nem com as pontas dos dedos.
Não amemos nem com o pensamento.
Que nenhum beijo de mulher, nem mesmo em sonhos, seja uma sensação nossa.
Artífices da morbidez, requintemo-nos em ensinar a desiludir-se.
Curiosos da vida, espreitemos a todos os muros, antecansados de saber que não vamos ver nada de novo ou belo.
Tecelões da desesperança, teçamos mortalhas apenas — mortalhas brancas para os sonhos que nunca sonhamos, mortalhas negras para os dias que morremos, mortalhas cor de cinza para os gestos que apenas sonhamos, mortalhas imperiais — de púrpura — para as nossas sensações inúteis.
Pelos montados e pelos vales e pelas margens dos pântanos, caçam caçadores o lobo e a corça, e o pato-bravo também. Odiemo-los, não porque caçam, mas porque gozam (e nós não gozamos).
Seja a expressão do nosso rosto um sorriso pálido, como de alguém que vai chorar, um olhar vago, como de alguém que não quer ver, um desdém esparso por todas as feições, como o de alguém que despreza a vida e a vive apenas para ter que desprezar. E seja o nosso desprezo para os que trabalham e lutam e o nosso ódio para os que esperam e confiam.
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Estou quase convencido de que nunca estou desperto. Não sei se não sonho quando vivo, se não vivo quando sonho, ou se o sonho e a vida não são em mim coisas mistas, intersecionadas, de que meu ser consciente se forme por interpenetração.
Às vezes, em plena vida ativa, em que, evidentemente, estou tão claro de mim como todos os outros, vem até à minha suposição uma sensação estranha de dúvida; não sei se existo, sinto possível o ser um sonho de outrem, afigura-se-me, quase carnalmente, que poderei ser personagem de uma novela, movendo-me, nas ondas longas de um estilo, na verdade feita de uma grande narrativa.
Tenho reparado, muitas vezes, que certas personagens de romance tomam para nós um relevo que nunca poderiam alcançar os que são nossos conhecidos e amigos, os que falam conosco e nos ouvem na vida visível e real. E isto faz com que sonhe a pergunta se não será tudo neste total de mundo uma série entreinserta de sonhos e romances, como caixinhas dentro de caixinhas maiores — umas dentro de outras e estas em mais —, sendo tudo uma história com histórias, como as Mil e Uma Noites, decorrendo falsa na noite eterna.
Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho; se quero, o que quer é qualquer coisa em mim. Sempre que em mim há ação, reconheço que não fui eu. Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. Se quero, parece que me põem num veículo, como a mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.
